A mentalidade bolsonarista

Por Carlos Andreazza

Que Paulo Guedes se acautele sobre a viabilidade de um ambicioso programa de reformas liberais sob um governo que, dirigido pela lógica da ruptura, age como oposição — afluente do conflito — e opera em campanha permanente, elegendo e cevando inimigos para manter excitada a tropa.

A discussão sobre 1964 — sobre se terá sido golpe etc. — é a mais recente expressão narrativa do processo revolucionário bolsonarista; e deve ser compreendida sobretudo à luz da circunstância em que o bolsonarismo — chancelado por Jair Bolsonaro — tenta emparedar o Parlamento, aquele outrora fechado pela ditadura. Tudo calculado. Um debate anacrônico, artificial, forjado desde dentro do Planalto também para, apostando no confronto, desviar atenções, fatigar o olhar crítico e mitigar a constatação dos verdadeiros problemas brasileiros em 2019: aqueles derivados da incompetência do presidente para liderar uma agenda prática a partir da qual, reforma da Previdência como gatilho, a economia volte a crescer.

Os anestesiados que saem no braço nas ruas — engalfinhando-se acerca de versões sobre um passado que não viveram — são os mesmos que ora estão desempregados. Uma conta que não fecha; que explodirá.

Convém a Guedes, homem brilhante, folhear a história e avaliar a compatibilidade entre o projeto liberal que encarna e a dinâmica de um governo reacionário como o que integra. O ministro fala, com gosto e frequência, em “sociedade aberta”, aquela, antidogmática, cujo principal valor talvez seja o questionamento permanente e pouco mediado; mas deve atentar para como a sociedade se comprime quando, aterrada a importância da mediação, instrumentaliza-se a mobilização popular — o povo como ferramenta de pressão — em prol de um projeto de poder.

O apoio constante das massas é um fetiche do bolsonarismo, ilusão cultivada pela capacidade de mobilização bolsonarista nas redes. Tem lastro, porém, em desastres pretéritos, na trajetória das revoluções ditas populares. E sempre se materializa na necessidade elitista de ser liderado por alguém. Mas: por quem? Quem poderia assegurar a mobilização popular capaz de impulsionar a agenda rompedora da “nova era”?

Antes de responder, é preciso reconsiderar a influência do núcleo militar sobre o presidente. Estará equivocado aquele que a avaliar como grande. Não é. Ou seremos obrigados a julgar os generais governistas ou como incompetentes ou como corresponsáveis pela depauperação institucional promovida — com método — pelo governo.

Que não nos iludamos. É a mentalidade revolucionária a que dirige Bolsonaro; aquela apregoada pela ala que se nomeia antiestablishment, o grupo dos filhos Carlos e Eduardo, e que tem Filipe Martins, o intelectual do novo regime, dentro do Planalto. Segundo o próprio Martins, seria essa a única ala capaz de garantir e nortear a pressão popular sem a qual agenda alguma do governo prosperará. Inclusive a de Guedes. A reforma liberal, portanto, dependente da revolução reacionária.

Trato aqui de um processo revolucionário que se quer plantar como permanente — e cuja estratégia de enraizamento obedece ao seguinte infinito: depois de haver vencido o establishment na eleição, o bolsonarismo ora enfrenta, desde dentro do governo, a batalha por novamente vencer o mesmo establishment, desta vez em sua facção aparelhada na máquina pública, guerra de guerrilha cujo êxito dependerá de aplicação ininterrupta.

Já escrevi algumas vezes que um dos mais sólidos agentes do bolsonarismo é a criminalização da atividade política; ação que alcançou o estado da arte a partir do momento em que Bolsonaro, uma vez presidente, incorporou a Lava-Jato — na figura de Sergio Moro — ao governo, e que, na prática, manifesta-se em investimento sistemático contra a democracia representativa. A conflagração recente entre Executivo e Legislativo é simbólica desse movimento.

Foi a ala antiestablishment o centro difusor dos ataques à necessidade de o governo dialogar com o Parlamento e articular politicamente em benefício da reforma da Previdência. O conceito é objetivo — está na convenção da fábrica de algozes: não se conversa com bandido, o qual deve ser submetido. Ou o Congresso, espécie de sindicato do crime, casa de traidores da pátria, poder intermediário a ser esmagado, aprova o que deseja Bolsonaro ou se acertará com a única força legítima para além do presidente: a pressão popular.

Crer que desse modus operandi estabelecido se possa extrair alguma paz institucional duradoura será negar a natureza da mentalidade que preside o país. A regra é o choque. Que estimemos, pois, as possibilidades de um pacote reformista estrutural numa estrada cuja pavimentação é a rachadura.

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto