O atraso da narrativa de “A elite do atraso”

Por Paulo Ghiraldelli Jr*

Os gregos antigos nos ensinaram a narrativa da tragédia. Nela, nunca se disse que não eram os homens os autores da própria história. Os homens eram de fato postos como fazendo a sua história, mas, por mais que quisessem fugir do destino traçado pelos deuses, pegando vários caminhos diferentes e mudando de percurso, sempre terminavam por realizar o traçado desenhado pelas divindades. Até hoje esse tipo de narrativa faz sucesso. A consciência popular diz: “ninguém foge de seu destino”.

Os historiadores modernos, entusiasmados pelo ideia de aventura, típica do mundo do Renascimento, deram crédito para os indivíduos intrépidos. A tragédia se separou da escrita da história definitivamente. Ela passou a contar para o teatro e tão somente para o teatro. Os pensadores vieram a falar de um outro modo e estilo, conferindo um poder de decisão aos indivíduos – noção esta então recém criada – jamais vista antes. Guardamos desse tipo de história, em nossos manuais escolares, as aventuras de Cristóvão Colombo, de Vasco da Gama e tantos outros. É nessa linha que, até hoje, falamos de Napoleão. Não raro ainda falamos de Stalin e Hitler assim! Isso quando não começamos, a partir daí, a falar no estilo das teorias conspiratórias!

Nos dias de hoje, quando a regra é a auto-intensificação, acreditamos na filosofia de Sartre em sua colaboração maior com a ideologia do momento. Para entendermos como nos vemos hoje em dia, vale aqui repetir Sloterdijk:

“O indivíduo é simplesmente o homem sem missão, o não-mensageiro. Constitui uma espécie de produto semi-acabado o que, de resto, é precisamente aquilo que a educação moderna pretende fazer da criatura humana: produtos semi-acabados que devem trabalhar-se até se tornarem produtos acabáveis utilizáveis – o que quase ninguém alcança. Foi Sartre quem forneceu a ideologia deste fenômeno ao dizer que o importante é fazermos alguma coisa do que fizeram de nós” (1)

Não sei o quanto eu gostaria de responsabilizar Sartre pela ideia de que, agora, temos de contar a história como sendo feita a partir de nossa intervenção pessoal e voluntariosa, uma história de reconstrução pessoal, de re-invenção (como está na moda falar). Mas sei bem que é assim que temos, ao menos alguns de nós, nos empenhado em narrativas históricas. Essas narrativas são diferentes daquelas que Marx, também no início da modernidade, exatamente por seu respeito a Hegel, nos ensinou escrever. Narrativas como as atuais, que fazem sucesso entre nossas esquerdas, esqueceram completamente de Marx, e passaram a gerar histórias em que os indivíduos agem como protagonistas exclusivos dos feitos. Fazem do que fizeram delas algo extraordinário! Mas, o que é mais grave, ao serem postos como donos de todo destino, logo esses indivíduos se apresentam também como senhores do bem e do mal, agindo então como mentirosos espertalhões, que sem convencimento do que dizem, enganam uma massa de tolos – ou seja, todos nós.

Vi esse último tipo de narrativa no livro de Jessé de Souza, A elite do atraso. É uma narrativa em que nós todos somos vistos como tontos, e a Lava Jato associada à Rede Globo, como donos do mundo e do destino, e sendo formadas por pessoas de profunda má fé, e que nunca fizeram qualquer denúncia séria sobre a corrupção. O que fizeram foi apenas exercer suas funções de bandidos com poderes quase mágicos de contarem mentiras, com o objetivo de nos levar a entregar a Petrobrás para estrangeiros milicianos. Esse tipo de narrativa é, a meu ver, menos útil para mim; não vejo como uma pessoa que a vive, que se situa nela. Inclusive, uma narrativa assim poderia estar extremamente a serviço de uma visão generosa demais para com os políticos da coalização governista imperante nos últimos entre 2002 e 2018. Um trecho do livro do Jessé exemplifica bem o que quero dizer:

“A Globo, em associação com a grande mídia a maior parte do tempo, e a Lava Jato fizeram o contrário disso tudo [proteger o patrimônio nacional] e a nós todos de perfeitos imbecis. A título de combater a corrupção dos tolos, turbinaram e legitimaram a corrupção real como nunca antes neste país das multidões de imbecilizados”. (2)

Nesse tipo de narrativa, a Globo e os homens da Lava Jato surgem como deuses malévolos, enganadores, e nós, então, tontinhos que precisamos do grande Jessé para deixarmos de sermos os imbecis que somos, para abrir os olhos e ver como que o único objetivo de tudo era a entrega do nosso petróleo aos … yankees! “O petróleo é nosso” brada Jessé, como se estivesse nos anos 50, servindo de bucha de Vargas que, na verdade, tomou tal frase para si após ter prendido o real defensor dela, Monteiro Lobato.

Para escapar desse tipo de narrativa, que repõe a história de indivíduos poderosos e a completa com chistes sobre mocinhos e bandidos, nada melhor que reinvocar Marx. Para este, as relações postas pelo capitalismo invertem a relação sujeito-objeto. As relações sociais e o dinheiro, que se completam formando o capital, saem da condição de objetos e se transformam em sujeitos. Nós viramos os objetos – somos coisificados, mas não nos tornamos tontos. Marx fornece a narrativa em que o capital se põe como sujeito e, então, não traça o jogo e o vencedor, nem chama os jogadores de bandidos de um lado e tolo de outros; mas, o que o capital faz, e o que é o importante de ver, é que, antes do jogo, ele traça o campo do jogo e a escolha do desporto praticado. Quem faz essa escolha é o capital. Ele é o sujeito da história. Se não atentamos para os seus deslocamentos, se não vemos que o jogo é jogado no campo do capitalismo financeiro, e não mais no capitalismo comercial e industrial, ficamos perdidos, e passamos a achar que a Globo e a Lava Jato são feitas de deuses que sabem tudo e mentem, e que nós não sabemos nada e que somos enganados pela nossa idiotia. Eu falaria assim para Jessé:  desculpe-me meu caro, mas eu não sou idiota, eu não preciso de sua narrativa pseudo-reveladora para entender um pouco da realidade que vivo. Falo isso por poder ver que os poderes da Lava Jato e da Globo não advém da mentira, mas do fato de estarem na perspectiva fortalecida de quem é o sujeito da história, o capital.

Quando pegamos um livro como o do professor Ladislau Dowbor, A era do capital improdutivo (3), temos o perfeito antídoto à narrativa policialesca de Jessé de Souza.  Nesse livro, o que interessa é o campo de jogo. Como o capital financeiro se fez presente? E então, por sua obra, como ele fez pessoas simplórias, que pronunciam “conje” ao invés de “cônjuge”, chegarem a ter poder? Os que aparentemente mentem, de fato não mentem não porque são virtuosos, mas simplesmente porque são simplórios e acreditam no que fazem. Ou acreditam no que fazem porque estudaram e encontraram na narrativa autojustificadora do capital um aspecto racional. Então eles, os poderosos, falam coisas que acolhem muito da verdade. A corrupção denunciada pela Lava Jato existiu. Essas pessoas simplórias que ganharam o poder e o prestígio e começaram a falar grosso, durante um tempo, assim puderam agir porque falam a voz do capital. Jogam o jogo traçado pelo campo posto pelo capital. Não destoam dos interesses do dinheiro-que-gera-dinheiro-sem-que-ocorra-produção, que é o mundo da felicidade da Bolsa de Valores.

Se olhamos assim a história, pela via de Marx, então podemos tratar nossos adversários políticos com seriedade. Entendemos a visão deles. Passamos a respeitá-los diante do que acreditam, e nos qualificamos para a discussão com eles, invocando o direito de fornecer nossa narrativa, por exemplo, para as mudanças das leis trabalhistas e a reforma da previdência. Não fazendo isso, não poderemos sentar à mesa para negociar e propor alternativas, pois, afinal, não teríamos o que falar para bandidos que sabem que estamos certos, mas teimam em advogar suas saídas para a crise mesmo não acreditando nelas.

Os homens do governo atual, de Bolsonaro, e os seus intelectuais, estão convictos que suas explicações da crise brasileira são corretas. E em parte, para os interesses do capital, estão mesmo! Eles falam da crise gerada pela necessidade de combater a inflação, não deixar a corrupção reaparecer, e então fazer o “ajuste fiscal”. Nós, vendo como o capitalismo financeiro funciona, queremos colocar que a crise é devido à dívida, que esta deveria ser auditada, e que se não trouxermos o capital para o campo da produção, com algum controle sobre a financeirização, não teremos chance de sobreviver. Podemos sentar para conversar e podemos por na mesa a nossa narrativa, levando a sério a deles, porque não estamos nos sentando com gente que sabe de tudo e que só nos ludibria com sacanagem, ainda que saibamos que os adversários jamais seriam canonizados pelo Papa Francisco.

Quando abandonamos o capital na sua tarefa invertida de ser sujeito, e começamos a olhar só para o jeitão de Dalagnol e William Waack, acreditando no poder enganador deles sobre nós, e achando que isso é a história, pegamos uma via que não é a da minha preferência. A narrativa de Jessé serve para a rede Globo fazer novela, ela até nos mobiliza emocionalmente, mas ela ajuda pouco na hora de enfrentarmos a política.

*É filósofo.

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto