O bolsonarismo é muito mais do que uma máquina de notícias falsas

Por Ronaldo Pagotto*

É preciso chamar as coisas pelo seu nome. Mas só nominar não basta. É preciso compreender como funcionam e suas bases de estruturação, especialmente se queremos (precisamos) derrotá-las.

A ascensão de forças neofascistas tem sido um dos aspectos mais assustadores da conjuntura brasileira e da profunda crise de múltiplas dimensões que estamos vivendo. No centro a crise do capitalismo é geradora de um quadro em que as forças mais atrasadas se lançam para disputar a sociedade.

A designação como neofascista é um tema recorrente, mas não é demais abordar. É uma designação que considera parte das forças políticas da direita com os mesmos métodos daquelas experiências fascistas nascidas nas crises no século XX. Mas não só isso. É distinta. Ainda está em desenvolvimento e não alcança os contornos das experiências do passado, especialmente a presença de um forte movimento ultraconservador de massas. E isso ainda não há.

A superação da etapa de como chamar essa força e fenômeno político em curso exige passar para o tema de compreender o seu modus operandi. E não basta resumir a uma máquina de notícias falsas. Isso é uma parte da engenharia do caos bolsonarista em uma referência do italiano Giuliano da Empoli.

A arquitetura da força bolsonarista é muito sofisticada. Científica. Combina, como na realidade, caos e ordem e sem compreender isso o nosso diagnóstico nos levará a erros graves. Uma advertência precisa ser feita: sofisticada não significa impecável ou uma fórmula imbatível. Significa só que precisamos superar as visões de que se trata de um método baseado nas notícias falsas circulando em grande amplitude. Não é essa “Brastemp”, mas é eficiente para disputar e por isso é importante compreender sua sofisticação.

Sobre essa engenharia complexa e sofisticada, apresentamos doze principais pilares para sua sustentação:

Primeiro: a democracia brasileira tem sido incapaz de enfrentar os graves problemas brasileiros. Um país com a maior desigualdade social do mundo e uma das maiores concentrações de renda e riqueza. Dentre muitos outros. A crise econômica atual é um aditivo importante para que essa democracia seja objeto de questionamento, desconfiança, crítica e até mesmo desprezo. Para grande parte do Brasil as conquistas advindas dos governos liderados pelo PT foram fruto do trabalho ou de graça divina. Nem quando ela cumpre um papel na vida real a percepção é distinta. Há um desapego a essa conquista e promessa de meio para enfrentar os grandes problemas e o bolsonarismo usa isso.

Segundo: a utilidade do ceticismo. Pessoas estimuladas a não acreditarem em nada e a contestar notícias, grande imprensa, estado e demais instituições. Não sem auxílio dos desacreditados, com destaque para a grande imprensa, que é useira e vezeira em desinformar e manipular a opinião pública. Isso facilita a construção do ceticismo. E essa pessoa que não acredita em nada é um perfil muito útil para ser manipulado pelas emoções, pelo medo, pelos estímulos direcionados a partir dos grupos são os caminhos para manipular as pessoas. Para isso o estímulo permanente a descrença, descrédito das instituições e até mesmo da ciência. Tem bases aparentemente irracionais, mas são claramente um método útil para manipular a população.

Terceiro: não te convenço de uma ideia, mas te mostro que as outras são falsas saídas , assim como as lideranças e organizações. Não há apresentação de uma proposta de conjunto para o Brasil e os graves problemas, mas sim um apanhado de proposições costuradas com linha frágil e em grande medida são medidas reativas: menos estado na economia, contra o politicamente correto, contra os ataques a família, Deus, as tradições e outros. A força da mensagem é um aspecto importante da capacidade da disputa política. E as organizações políticas expressam a mensagem por ações e sobretudo por suas lideranças. Atacar e destruir a imagem de figuras públicas e as organizações políticas é parte desse método. Antes de conquistar a simpatia para propostas concretas apresenta contra o quê se luta e quem deve ser destruído. Cotidianamente figuras como Lula, Dilma, Haddad, Ciro e Boulos são atacados para alavancar a rejeição a eles. Por ela se alcança a rejeição das propostas vinda deles e de suas organizações. É uma estratégia muito mais eficaz do que silenciar os opositores porque tira da mensagem qualquer sentido em razão da rejeição racional e irracional construída sobre as pessoas e organizações políticas.

Quarto: a velha manipulação de massas. De Marx a Willian Reich as ideias hegemônicas da sociedade são sempre as ideias das classes dominantes. A manipulação é um estágio mais agudo dessa dominação e no quadro atual alcança níveis impressionantes. Por óbvio que isso não é sem esforços para contestação e contraditório, mas todos os esforços são muito inferiores ao necessário para enfrentar essa hegemonia conservadora. E a manipulação conjuga sempre emoção e razão e isso é parte da mensagem do bolsonarismo sempre. Não é um apelo a racionalidade, mas sim busca dialogar com as emoções e sentimentos. Isso é uma das lições da experiência de comunicação fascista e se baseia na comunicação buscando o emocional como caminho para o subconsciente para a alimentar ideias, sonhos, o desejo, medos, impulsos ou comportamentos.

O papel é chamar a atenção das pessoas para algo e não informar ou educar.

Quinto: alimentar fantasmas e medos. Uma sociedade é mais vulnerável politicamente se guia sua ação e ideias pelo medo, pela premência do fim, da morte etc. O medo é útil por induzir as pessoas a aceitarem coisas absurdas em nome de um combate a essa ameaça. A revolução, o comunismo e o sistema são os alvos corriqueiros e diariamente circulam pelos dutos da agitação e propaganda bolsonaristas.

A comunicação sempre contém a informação de um risco eminente, uma ameaça. Isso é mobilizador de paixões, do desespero e da permissividade. Esse “lugar” induzido pelo medo pode aceitar execuções sumárias, repressão, golpes e genocídios.

Sexto: demagogia com o “uso” dos quatro temas populares: pátria, família, corrupção e Deus. Esses temas são parte da adaptação do tema ao Brasil do século XXI. Diante dos grandes dilemas e em meio a uma crise de dimensões inédita nos últimos 100 anos pelo menos o olhar para o futuro pode ser inquietante e até mesmo perturbador. Essa inquietude e perturbação pode ser a base de uma indignação e revolta e indignação. Por isso precisa capturar temas centrais para as amplas massas, especialmente as camadas mais populares, para usar na disputa. E são quatro pontos para isso: a suposta defesa do Brasil contras os inimigos externos (que contam com a conivência de traidores internos), a defesa da família e das tradições, da obediência a Deus e do combate a política para enriquecimento pessoal e não para fazer “o bem”.

Os temas são capturados para, inclusive, dar conteúdo contraditório a sua defesa. Defendem a pátria com propostas de entrega das riquezas, a família com medidas puramente demagógicas, a Deus como um amparo onipresente ao projeto e contra os ateístas comunistas e religiões profanadores da fé, ou seja, definem o que é ser fiel e o tema da corrupção como a demagogia em estado puro.

A projeção do futuro é um olhar saudoso do passado, das velhas tradições, costumes e formas de pensar. Essa utopia de retrovisor funciona como um antídoto para não lidar com os problemas atuais e permite um horizonte futuro como uma continuidade do presente e suas mazelas. É a utopia sem conteúdo utópico ou, como queiramos, é a naturalização dos grandes problemas nacionais.

Setimo: a lógica do inimigo interno e a dinâmica da guerra. A mensagem tem um eixo padrão nesses dois temas e sempre apresenta inimigos internos e externos e governar seria conduzir uma guerra. Na mensagem os inimigos externos são o “Sistema” para tratar de maneira imprecisa das instituições multilaterais e de sustentação do capitalismo. E os internos são os de sempre: ameaça comunista, ameaça da guerra civil, centralmente os movimentos populares do MST, MTST e CUT. A dinâmica da guerra é muito nítida nas comunicações oficiais. Todo dia tem uma ameaça de golpe, de controle do governo, de derrubar e outros. Não passa um dia sem mensagens mobilizando a turma diante desse pilar muito consistente para garantir engajamentos e sacrifícios para defender o governo eleito.

Oitavo: o inimigo luta com regras, o neofascismo não. O padrão da luta de classes no Brasil e nos países de origem colonial é distinto. Por essas paragens a luta sempre foi uma combinação de força e convencimento, mas sempre com desequilíbrio para maior peso da força. Mas os padrões do neofascismo é totalmente diferente. Não respeita regras, existentes até mesmo para guerras, e subverte tudo. É uma força que combina a iniciativa por dentro e por fora das instituições. Governa e negocia com os partidos e organiza manifestações pedindo intervenção militar e o AI-5.

A dinâmica da luta é distinta em razão da natureza da força. O neofascismo é um projeto totalitário e não respeita limites, pactos sociais, políticos e jurídicos. É a lógica da subversão de tudo e usando todos os meios e caminhos. A lógica é uma só: vencer o que chamam de guerra.

A produção e veiculação de noticias falsas é uma das demonstrações mais cabais da ausência de limites e desrespeito a qualquer regras. São verdadeiros vertedouros de notícias falsas e isso está na base da ascensão do neofascismo, mas, o que esse artigo pretende demonstrar, as notícias falsas são parte do sistema e não o centro dele. O centro é a engenharia de organização, agitação e propaganda.

Nono: uma rede eficaz de organização, agitação e propaganda. A rede bolsonarista vem sendo construída desde os impasses de junho de 2013 e as eleições turbulentas de 2014. Com uma divisão clara de papeis essa rede é capaz de organizar a ação de milhares de pessoas todos os dias. É uma imensa capacidade de engajamento e organização.

As redes abertas como FB, YouTube e Instagram são espaços para propaganda de ideias. Figuras são destacadas e dezenas de pequenas organizações cuidam de amplificar essas ações. Sempre simplificando tudo, tratando o governo sempre sob ameaça e os inimigos sempre operando para derrubá-lo. A máquina é muito potente e alcança milhões de espectadores com mensagens para o engajamento político. Não é para que as pessoas pensem como o presidente, mas sejam capazes de defendê-lo com argumentos.

As redes fechadas são o Telegram e o WhatsApp e cuidam da orientação prática, da linha de ação e orientar concretamente a ação. São milhares de grupos com dezenas de milhares de pessoas sempre com mensagens dentro dos eixos aqui apresentados. Sempre adaptando os grupos a partir do público, com muita vigilância para conter ações que eles chamam de esquerdistas (todo e qualquer pergunta ou mísera crítica é tratada assim), para blindar os grupos de qualquer disputa. Nesse terreno secreto e só possível de participar por meio das iniciativas deles, que sempre conta com o apoio da vaidade em que os administradores (que é uma função política) apresentam uma coleção de grupos e sua imensa base. Para ampliar isso divulgam os convites e constroem os grupos amplamente, permitindo a entrada para observar e, quando muito, explorar algumas contradições internas.

E o Twitter é o campo de organização da ação, a linha de comando e o esforço para disputar a presença via iniciativas diárias desde antes das eleições de 2018 e ininterruptas. Com muita automação (robôs) para amplificar o alcance das ações e dar uma percepção de maior presença nas redes. Essas ações combinando a rede orgânica de militantes e os rôbos é algo muito potente e numa crescente.

Décimo: lições da educação popular: partir dos problemas reais para soluções falsas. A rede não discute projeto nacional, grandes problemas abstratos, debates intensos ou tem mensagens muito sofisticadas. Toda a ação de agitação e propaganda parte dos problemas simples e comezinhos e as propostas e soluções são igualmente simples. Não tem formulação de fôlego, muito menos teses, livros ou simpatia pelo método científico. Os livros mais populares são os de síntese e quase em formato de um agrupado de tuitadas.

Nesse tema o bolsonarismo se diferencia da esquerda, da direita tradicional e da grande mídia. Esses campos debatem grandes temas, ainda que com diferenças, mas tem debates mais profundos e formuladores. A direita se construiu com grandes referencias de formulação, mas estão fora de uso. São coisas do passado. O que seria uma figura de maior formulação é o astrólogo Olavo e uma meninada de “influencers” sempre com mensagens com a profundidade de um pires. Tudo é do simples para o simples. Com raciocínios breves e muito compreensíveis, com referências as lições da comunicação de massas: a agitação e propaganda deve ser feita a partir do nível de compreensão, abstração e intelectual da base da sociedade.

Décimo primeiro: os políticos escondem os interesses em fraseologia social. Nós falamos o simples e o direto, mesmo que isso seja duro. Isso é um antídoto para a rudeza dessas figuras, destoando do padrão de debates mais polidos e mesmo duros com algum decoro. Essa turma não tem isso. E acusam os “políticos” de usarem a fraseologia para esconder os reais interesses e passam uma ideia de que a mensagem simples das referencias do bolsonarismo como demonstração de que são do povo, são simples, não mentem e não mudaram com a política. Há um esforço de parecer verdadeiro com essa mensagem e isso é forte na própria figura do Jair Bolsonaro.

Há inclusive uma mensagem que encoraja o público e os engajados a se colocarem sem medo e que o desconhecimento, o uso de palavreado chulo, os preconceitos, a discriminação, etc não são problemas ou motivos para qualquer inibição. Que a vulgaridade floresça sem freios e controles dos padrões que seriam de uma elite política corrupta e só preocupada consigo.

Décimo segundo: as redes sociais e a dinâmica estímulo – resposta – estímulo novo…A política da atualidade se estrutura na análise de meta dados e isso precisa ser muito considerado. O bolsonarismo não entra em conflito com o que o povo pensa e o senso comum. Ele parte desse quadro e dialoga com esse pensamento. E o faz com amparo em um trabalho de redes e análises de dados que permitem mensurar a reação de milhões de pessoas diante dos problemas e de estímulos. Com essas informações o bolsonarismo constrói mensagens diárias, algumas incompreensíveis, já que aos olhos de quem busca compreendê-las utilizando o referencial do passado essa comunicação é incompreensível. Por que falar em tomada de três pinos no meio de uma reunião tensa? Ou falar de assuntos como aborto ou os pontos da carteira de habilitação em meio a uma pandemia?

A resposta está no formato de comunicação do guru Steve Bannon e da Cambridge Analytics. Nessa elaboração a sociedade é mapeada, as interações públicas são medidas, a reação a estímulos são mensurados tudo para organizar um padrão de comunicação para grandes grupos de perfis. A mensagem é submetida ao público, os resultados são observados e isso serve para o aprimoramento dos temas e propostas.

Esse quadro é um aditivo importante para a política. O que há pouco mais de uma década só seria conhecido com caríssimas e demoradas pesquisas de opinião ou no trabalho popular agora são produzidas em formatos simples e diários. É como se a sociedade estivesse sendo medida e monitorada o tempo todo. E está. E esses dados são a base para a criação de ações de propaganda, para a mensagem ser enraizada nos problemas do povo e guiadas por certeiros indicadores de opinião. Há aqui uma certa matemática ou ciência exata dentro da política e das ações. Novos tempos.

É importante repisar: não estamos tratando desse sofisticado sistema para passar uma idéia do que ele não é. Não estamos falando de um sistema indestrutível. Mas também não é mais um campo político dentro da fauna brasileira e a vitória em 2018 como parte de uma normal alternância de projetos e representantes. É muito mais do que isso. Se hoje esse sistema já se apresenta com esse grau de complexidade a cada dia ele se torna mais forte. E só será desmontado se for derrotado, isolado e suas frações radicais neutralizadas. É um projeto de poder para décadas. Com fascismo não se brinca, nem se menospreza. Se derrota.

*É advogado, integra a Consulta Popular e o Projeto Brasil Popular.

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