Por que Pondé e outros conservadores adoram falar de Marx sem o terem lido?

Por Paulo Ghiraldelli Jr.*

 

Pondé poderia escrever sobre religião. Mas teima em enveredar pelo que não estudou. A fama lhe subiu a cabeça. Acha que pode falar do que não leu. Já faz um tempo que vem fazendo isso, e dando pitacos sobre marxismo – até de Paulo Freire já falou sem ler e sem entender de fenomenologia, base de vários escritos do educador. Não conhece Hegel e não conhece Marx. Não sabe nada da história do marxismo. Nem o básico sabe. Se leu o Manifesto Comunista, que todo garoto sabido lê no ensino médio, então não entendeu.

Na Folha de S. Paulo (17/09) ele escreve como que fundindo o marxismo ao marxismo-leninismo, e faz acusações à teoria de Marx que cabe na boca de um militante anti-Marx meio tosco, não na de um professor universitário. Eis o que ele faz: “( …) a própria teoria marxista, que tem desprezo pelo vocabulário e imaginário da democracia liberal burguesa”. A teoria marxista “tem desprezo pelo vocabulário e imaginário da democracia liberal burguesa”?  Talvez nem Lênin faça isso todo o tempo. Mas Marx, certamente, não faz. O que Marx faz é oscilar entre a crítica (e não desprezo) por ideias liberais que devem ser abandonados e o endosso de ideias liberais que devem ser realizados e aprofundados. Há momentos que Marx diz que o socialismo é a destruição do mundo liberal. Há momentos que Marx diz que o liberalismo não realizou os ideais de liberdade e igualdade que prometeu, que os abafou pelo peso do dinheiro, e que o que se tem de fazer é fazer acontecer a igualdade e a liberdade. Há escritos em que Marx chega a elencar promessas liberais não realizadas, e que não deveriam ser deixadas de lado.

Marx colocou no horizonte a ideia de homem que os pensadores liberais sonharam em suas utopias mais fecundas, o ser humano como aquele que se livraria do trabalho e do estado, e poderia viver escolhendo suas atividades diárias, todas elas prazerosas. Marx tirou de onde esse paraíso filosófico? De sua leitura dos filósofos do movimento Iluminista. Marx se empanturrou do vocabulário e do imaginário dos burgueses e de sua democracia, mas levada a um grau maior de perfeição. Seu sonho de criar o homem de múltiplas faces e possibilidades cognitivas e morais nunca foi senão a ideia de realização de um homem burguês sem a preocupação com o suor do rosto para o ganha pão.

Essa oscilação de Marx, entre o elogio de aspectos do liberalismo e a sua critica, não é a oscilação de mudança de opinião. Ela, às vezes, aparece na mesma obra, e não raro até na mesma página de seus escritos. É preciso nunca ter lido Marx para achar que ele foi um defensor da “ditadura do proletariado” como um ditadura simples, como qualquer ditadura cubana ou brasileira, e ponto final. Nada disso. O termo “ditadura” em Marx é relativo ao termo “democracia burguesa” que, tendo ficado presa ao poder do dinheiro, não foi adiante e poderia ser chamada de “ditadura burguesa”. Lênin sim, já envolvido com guerra interna na Revolução, contra a direita e contra a esquerda de caráter libertário, radicalizou o aparato repressivo revolucionário e, enfim, quando as coisas caíram nas mãos de Stalin, então a “ditadura do proletariado” perdeu de fato seu caráter relativo e se transformou numa ditadura simples, aliás, simplória.

O debate sobre esse assunto coube na II Internacional que gerou a social democracia, que Pondé pensa ser de gente rica – coisa tola, pois a social democracia européia é de base operária, e os países europeus são ricos agora, não quando fundaram suas centrais operárias que se filiaram à II Internacional. Esse debate sobre o aprofundamento do liberalismo por meio da social democracia na Europa, e pelo New Deal na América, foi feita no Velho Continente sob a ótica do marxismo, e nos Estados Unidos sob a ótica do liberalismo social de John Dewey (na época, chamado também de neoliberalismo, o oposto do neoliberalismo atual). No Brasil, esse debate foi feito dentro do PT e também entre o PT e os velhos partidos comunistas. Os livros de Carlos Nelson Coutinho e de Francisco Weffort deram o tom desse debate nos anos 80, temperados por obras de outros autores, inclusive Florestan Fernandes (um reflexo do debate de Bobbio com os comunistas, na Itália). Só depois que Weffort saiu do PT é que as coisas foram mudando. Aí veio o “mensalão” e o PT perdeu substância teórica e acabou se tornando um grupo de amigos que defendem Lula, uma vez que já não podem mais nada fazer senão tentar manter viva a quadrilha.

Pondé não sabe da história da esquerda europeia e americana. Não sabe da história da esquerda brasileira. Ouviu falar do PT só agora, já nos anos 2000. Pegou o bonde andando e, tendo sido lançado à mídia, acabou acreditando que todo mundo é tonto e que ele pode falar do que não sabe. É horrível isso, esse tipo de presunção. E mais horrível ainda é a deseducação que causa nos mais jovens. A falta de responsabilidade chegou ali e fez eco. Talvez não à toa ele tenha feito um vídeo elogiando o repetente maluco chamado Olavo de Carvalho. Perdeu a medida.

*É filósofo

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto