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Entrevista

Transformação de lulismo em bolsonarismo é detectada em estudo na periferia

Paula Sperb

Folha de S. Paulo/PORTO ALEGRE

Há dez anos pesquisando a periferia de Porto Alegre, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado levou os resultados de um estudo com os jovens eleitores de Jair Bolsonaro (PSL) para os Estados Unidos. Lá, a professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) foi convidada a ministrar 28 conferências em um “tour” por 24 universidades, entre elas Columbia, Brown e Princeton.

Com o título “Da Esperança ao Ódio”, o trabalho apresentado teve início há dez anos, com a também pesquisadora Lúcia Scalco. Nos últimos dois anos, criaram 17 grupos e perceberam a transformação do lulismo em bolsonarismo.

Pesquisadora aponta mudança de compottamento do eleitor (Foto: Joana Berwanger/ Divulgação)

Qual o principal interesse dos americanos sobre a política brasileira? Eles têm muita curiosidade, têm ainda uma memória muito forte do PT. Querem entender como o Brasil, um “democratic player”, uma potência nova que surgia no mundo, elegeu um presidente saudosista da ditadura militar.

Como surgiu a pesquisa na periferia de Porto Alegre? Desde 2009 fazemos etnografia na periferia de Porto Alegre, estudando a inclusão social por meio do consumo, durante o governo Lula. A gente chama essa fase de “esperança”. A inclusão foi por meio do consumo, mas continuavam na fila do hospital, sofrendo racismo e com educação precária.

Porto Alegre é um dos lugares mais interessantes para estudar obolsonarismo, porque são muito diferentes o momento lulista e o auge do PT nos anos 1990 em Porto Alegre, com Olívio Dutra [ex-prefeito], onde se tinha uma inclusão via democracia radical. A inclusão pelo consumo esvazia o coletivo.

Em 2016, encontramos um núcleo muito forte de jovens bolsonaristas. O Bolsonaro entrou na comunidade pela juventude, via escola, igreja e quartel.

A pesquisa mostrou três fases do bolsonarismo. Quais são elas? É uma realidade específica de Porto Alegre, mas que pode dar “insights” para outros contextos. A primeira fase é o nicho engajado, de 2016 a 2017, quando só pessoas com internet sabiam do Bolsonaro. Eram jovens, focados numa coisa quase infantil de que ele “fala o que pensa, é engraçado, é mito” e atraídos pela questão das armas.

No primeiro semestre de 2018 começa a segunda fase, período de maior conhecimento da figura do Bolsonaro. As pessoas estão frustradas, não conseguem dinheiro, trabalham 15 horas como motorista de Uber e são assaltados, vivendo em uma das cidades mais violentas do país. O lulismo só deu, muitas vezes, condições materiais de comprar o boné, o celular.

O terceiro momento ocorre nos últimos dois meses da eleição. As pessoas não sabiam quem era o Haddad [candidato do PT]. “Se tentaram matar Bolsonaro, deve ser bom, as elites estão com medo dele”, diziam. Surgia esperança de novo. Nesse momento as fake newsantipetistas vão chegar na periferia. Os moradores começam a dizer que o PT quebrou o país e se contradiziam, porque diziam que a vida era melhor com o Lula.

A diferença política entre os meninos e meninas era grande? A bifurcação era clara e absoluta: meninas feministas e meninos bolsonaristas. As meninas rejeitavam Bolsonaro em maioria. Os meninos eram atraídos pela questão das armas, uma estética vinculada ao padrão da “hipermasculinidade” da periferia.

Bolsonaro prometeu facilitar o porte de armas. Como isso repercutiu? Entre as mulheres adultas, havia rejeição pelo medo de os filhos saírem armados em briga, de os maridos esquentados atirarem, de serem elas próprias vítimas desses homens. Já os homens foram a favor.

Há pelo menos dois anos eles falam que Bolsonaro vai liberar as armas, que a Taurus vai baixar o preço [de um revólver] de R$ 4.000 para R$ 2.000. Planejam que um só vai fazer o psicotécnico, mas que várias pessoas vão comprar juntas, vão alugar por R$ 150. Esse aluguel já existe na periferia. Mas eles conjecturam que não vão precisar comprar a arma do tráfico.

Qual sua avaliação dos primeiros cem dias de governoNo final do período eleitoral, a gente percebeu que havia esperança demasiada em Bolsonaro. Estava na cara que a decepção seria muito rápida.

pesquisa Datafolha confirmou o que a pesquisa de campo nos dizia. Hoje, conversando com alguns eleitores que não eram bolsonaristas convictos, a decepção é imediata. Alguns acham que ele é atrapalhado e que seus filhos mandam demais, outros voltam para o lugar comum de que político é “tudo farinha do mesmo saco”. O comportamento errante nas redes sociais é percebido pela população, que não sente a firmeza que tanto esperava de um militar aposentado.

Com os escândalos dos laranjas, a base mais fiel de Bolsonaro pode se revoltar? Pode torcer pela sua queda e a posse do Mourão? A parcela mais fiel ao Bolsonaro é muito de internet, aquele nicho inicial. A maioria que votou pela mudança radical já está decepcionada. Antes da eleição as pessoas tinham grande interesse pelo Mourão. Mas não acho que vão pedir um golpe. O que pode acontecer é desacreditarem ainda mais da política.

Quais as semelhanças e diferenças entre Trump e Bolsonaro? Trump vai inspirar o Bolsonaro a imitá-lo. O Bolsonaro vai jogar com essa figura do tiozão que usa [chinelo] Rider e come pão com leite condensado. E o Trump ilude com aquela imagem do sujeito que fica rico e é um grande realizador. Mas o Trump é uma continuidade da polarização americana. Bolsonaro é uma ruptura do sistema político, o que preocupa mais.

O Trump ganhou com o voto dos pobres, a elite bem-educada votou na Hillary. O Bolsonaro, apesar de ter sido uma votação apertada, é mais um fenômeno de elite e também teve muitos votos dos negros, o que nos EUA é impensável.

A senhora já recebeu ameaças por causa dos conteúdos das aulas. Já precisou lecionar acompanhada de segurança? Aconteceu de ser criticada por um desses colunistas pseudoliberais que incentivou um movimento misógino de perseguição na internet. As pessoas começaram a ligar para Oxford, onde eu era professora, para denunciar que eu era comunista, mandavam emails dizendo que eu tinha que morrer em Cuba. As pessoas ligavam para a Inglaterra. A diretora de Oxford colocou à disposição o serviço de segurança. A UnB também deixou de sobreaviso o guarda.

A senhora foi denunciada por citar o educador Paulo Freire? Sim. É o segundo processo que tentam colocar sobre mim. É uma fase persecutória, todo mundo tenta perseguir professores e eles procuram esses mecanismos legais. A UFSM não aceitou a denúncia e foi pior ainda.

O homem mandou emails para professores, foi extremamente violento. Estou muito preocupada em voltar para a UFSM. Hoje já penso em sair do Brasil. Tenho todos os ataques documentados. Se continuarem esses processos de denúncia, vou embora.

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Reportagem

Sociedade contra o estado: não tem essa de “mais” ou “menos” evoluído

ANDRÉ NOGUEIRA

Aventuras na História

Por muito tempo (ou mesmo ainda hoje), se acreditou que os indígenas na América eram seres primitivos que viviam nas fases iniciais do desenvolvimento político humano, que seria universal. Os índios viveriam em tribos, pois eles estariam numa fase inicial do desenvolvimento político, que iria evoluir para formas mais complexas até atingirem a forma do Estado burocrático, modelo europeu.

Porém, há muito tempo existem criticas à essa visão, que é extremamente evolucionista e cria a ideia de que os índios são menos evoluídos e capazes que o branco europeu. Uma das mais importantes obras que desmentem essa tese vem de um importante antropólogo francês do século XX, o pesquisador Pierre Clastres (1934-1977). Ele foi um dos pioneiros nos estudos atualizados de antropologia política entre ameríndios e desenvolveu sua principal tese sobre os guayakis do Paraguai em seu livro de 1974 A Sociedade contra o Estado.

Clastres (Wikimedia Commons)

Clastres era filósofo de formação, mas entrou no campo da antropologia da América do Sul por influência de Métraux e Levi-Strauss, grandes acadêmicos franceses que tiveram contato com os países sul-americanos (principalmente Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia).

Os estudos do antropólogo vão partir da análise destes pressupostos científicos de sua época, que colocavam os índios numa posição de inferioridade cultural e racial, dizendo que não há elementos reais para entendermos que a forma horizontalizada e mais próxima ao igualitarismo visíveis nas relações políticas no mundo tribal guarani tem origem em algum tipo de caráter primitivo dessa estrutura de poder. Ao contrário, o pesquisador vai analisar o mundo tribal a partir de uma perspectiva de ação política.

Clastres coloca que no mundo sul-americano, as atividades relativas ao poder não eram simplesmente negadas pela “incapacidade” dos índios de atuar numa sociedade complexa, que era vista no mundo mexicano e maia por terem criado Estados e sociedades hierárquicas. É um erro, para Clastres, entendermos a política tribal como desacompanhada de uma lógica política que é ativamente mantenedora da estrutura social.

Isso significa dizer que a sociedade sem Estado e que dissolve suas hierarquias internas é resultado de um esforço ativo de impedir o desenvolvimento de relações hierárquicas de política e mandatarismo. Então, para o autor, o mundo político dos índios guayaki é, antes de uma sociedade sem o Estado, uma sociedade contra o Estado, pois os povos que formam o tecido social dessas tribos agiriam conscientemente pela manutenção de um mundo político sem membros que mandam e membros que obedecem, não estando presos a uma realidade de incapacidade de atuar de forma complexa e hierárquica. Sendo assim, não estando sujeitos a uma força evolutiva acima deles, que o levariam a uma sociedade estatizada.

Clastres no Brasil (Reprodução)

Em Clastres, não se ignora a figura de um pajé, por exemplo. Ou mesmo a noção de chefia. Mas a partir da noção antropológica que faz do autor partir das formas internas de compreensão de mundo, é possível ver entre os guarani na América do Sul uma tendência a uma lógica de sociabilidade que é repleta de marcos e mecanismos culturais que impedem o nascimento de figuras de comando e controle. Ao contrário, os chefes tribais não possuem poder de mando, somente reconhecimento social de sua fala como conselho. Há, portanto, o isolamento e a destituição de posições que possibilitem o desenvolvimento de uma camada dominante dentro dos grupos sociais.

Portanto, o mundo político dos índios é um mundo sem dirigentes, não sem articulação política. O estudo de Clastres é útil até hoje para uma análise não etnocêntrica da antropologia política indígena, nos lembrando de que análises simplistas e evolucionistas não são aplicáveis nos estudos sérios sobre a vida ameríndia.