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Crônica

Um larápio sedutor

Arsène Lupin é personagem criado por Maurice Leblanc (Foto: cedida)

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

O Netflix acaba de lançar a série “Lupin”, baseada na personagem Arsène Lupin, o “gentleman cambrioleur” (espécie de ladrão e cavalheiro), criada pelo escritor francês Maurice Leblanc (1864-1941). O site oficial do Netflix afirma que, na adaptação para a pequena tela, “o ladrão gentil Assane Diop [esse é o nome dado ao anti-herói da série] quer se vingar de uma família rica por uma injustiça cometida contra o pai dele”. Não assisti ainda. Mas pretendo.

De toda sorte, essa série do Netflix me fez lembrar que “Les Aventures d’Arsène Lupin”, numa publicação da Hachette – Français langue étrangère, foi um dos primeiros livros que li na língua falada em Paris, quando ali estive, acho que em 2006, como aluno da Alliance Française. Que saudade daquele tempo!

Maurice Leblanc é um grande achado para um amante da literatura policial/detetivesca. Para quem não sabe, Leblanc é natural de Rouen, na Normandia francesa, descendente de uma família de ricos industriais. Ainda criança, conheceu seus conterrâneos normandos Gustave Flaubert (1821-1880) e Guy de Maupassant (1850-1893). Foi protegido deste. Estudou direito. Trabalhou nos negócios do pai. Morou no estrangeiro. Abandonou o direito e a indústria. Foi ser escritor em Paris. Misturou-se com gente como Edmond de Goncourt (1822-1896), Émile Zola (1840-1902) e Stéphane Mallarmé (1842-1898), entre outros. Dizia-se socialista e livre pensador. Ao final, nos deixou diversos romances e contos.

Entretanto, foi com o seu Arsène Lupin, cujas aventuras foram originalmente publicadas, a partir de 1905, na revista Je sais tout, que Leblanc alcançou pleno sucesso. Foi comparado – ou mesmo tido como herdeiro – a Edgar Allan Poe (1809-1849) e Arthur Conan Doyle (1859-1930). As aventuras de Lupin se passam na França da Belle Époque (que maravilha!) ou da virada dos anos 1920. Lupin é um “gentleman cambrioleur” do tipo anarquista. É alegadamente inspirado em um personagem real, Alexandre Marius Jacob (1879-1954), celebrado anarquista/fora da lei francês. Mas, em razão da 1ª Grande Guerra, Lupin torna-se também um patriota (para meu desgosto, pois desconfio deveras desse tipo quase sempre impostor). E, à medida que o tempo passa, ele vai transmudando de larápio para detetive. Lupin é sobretudo uma figura cativante. Esportista e bom de briga. Mestre dos disfarces. Misterioso e ao mesmo tempo divertido e sedutor. Um “ladrão de casaca”. Sagaz, suas peripécias para resolver qualquer enigma são surpreendentes. No dossier pédagogique da citada edição de “Les Aventures d’Arsène Lupin” consta: “Figura insólita do romance policial e de aventura, Arsène Lupin tornou-se um verdadeiro mito popular em França e no mundo inteiro”. Encontramos um pouco dele já em Hercule Poirot e James Bond, por exemplo. E, claro, Lupin foi bater no cinema, na TV, no teatro, no desenho animado e até no excelente mangá japonês.

Para mim, uma das coisas mais interessantes em Arsène Lupin é ser ele é uma “resposta francesa” ao meu querido Sherlock Holmes, do britânico/escocês Conan Doyle. Isso até deu confusão. Uma querela. E, por instância de Conan Doyle, Leblanc teve de mudar o nome da personagem Sherlock Holmes (isso mesmo: havia um Sherlock nos casos de Lupin) para Herlock Sholmes. Acho que, aqui, Leblanc/Lupin não disfarçou muito bem.

Também acho maravilhoso o fato de Arsène Lupin ser uma personagem da Belle Époque francesa. Para quem já conhecia a ambiência dos casos do Inspetor Maigret, de George Simenon (1903-1989), mais pé no chão, próxima à realidade das ruas, foi uma viagem imaginária num mundo de glamour e sofisticação. Uma fuga das coisas da vida. E tipicamente francesa, bien sûr.

Para terminar, jogo a indagação: podemos gostar dessa mistura de ladrão e herói? Na ficção, pelo menos, parece que ela nos provoca grande atração. Vide a lenda inglesa de Robin

Hood, tantas vezes já contada e recontada, no papel e na tela. E na vida real, essa simbiose mocinho e bandido, é possível? No Brasil, parece que sim. Embora, nem na Inglaterra, nem em França, nem aqui, de vera, isso seja recomendável.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.