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O Brasil de Luzia

Por Marcelo Tognozzi*

Brasil debate superficialidades

Discutir bobagens não gera emprego

Não faz governos mais competentes

Brasileiros estão em situações vexatórias

Um beijo gay numa HQ vira o principal assunto nacional no dia da Independência. O debate estético sobre os atributos da primeira dama da França mobiliza deputados, senadores, movimentos sociais, ministros, feministas, diplomatas e ONGs.

A nomeação do procurador-geral da República, dever legal do presidente, virou risco capaz de minar o combate à corrupção, como se esta atividade fosse privativa de meia dúzia de ungidos e o sindicato dos procuradores estivesse acima do chefe da Nação em legitimidade de votos e representatividade.

Grande Brasil, moderno, desenvolvido, com uma agenda de dar inveja aos países da União Europeia. É muita energia desperdiçada. Gostar ou não do governo é secundário num país onde as ruas tiraram do poder 2 presidentes e a pressão da sociedade foi capaz de mudar muita coisa com as Diretas-já, anistia, constituinte ou as manifestações de 2013.

Luzia é uma cabocla guajajara, de Caxias, no Maranhão. Tem 43 anos e não sabe ler e escrever. Veio para Brasília há 1 ano e meio com 2 das 3 filhas em busca de trabalho e um pouco de dignidade. Conheceu a neta recém-nascida. Demorou 3 meses para conseguir um emprego, passa a semana fora de casa. Sua luta pela sobrevivência é a mesma de milhões de brasileiros. Em pouco tempo conseguiu dar um passo importante para mudar de vida. Não teve medo, encarou. Era a única alternativa.

Na realidade de Luzia não existe Brigite Macron, Amazônia em chamas e a corrupção roubou sua alfabetização, deu-lhe uma gravidez precoce e uma força para sobreviver que ela não sabe de onde vem. “Vou sempre pra frente, né? Fiquei 3 meses sem emprego aqui em Brasília, mas a primeira oportunidade que apareceu eu agarrei”.

No país de Luzia crianças continuam morrendo de diarreia, faltam vacinas, uma legião de mendigos e pedintes perambula pelas ruas sem destino nem acolhimento, estradas esburacadas encarecem o transporte de alimentos e bens e o desperdício de dinheiro público é um poço sem fundo.

Na agenda deste Brasil a prioridade são temas essenciais e urgentes como emprego, saúde, educação, assistência social e infraestrutura. Redes sociais e blábláblá mudam o humor, mas não mudam a realidade nem a vida das pessoas como Luzia. O que traz prosperidade é trabalho, foco, vontade de vencer. Este é seu cotidiano.

Há poucos dias uma advogada de 26 anos foi morta em Brasília. O ônibus demorou e ela embarcou num veículo de transporte pirata conduzido por um serial killer. Se houvesse transporte público eficiente na capital do país esta mulher estaria viva.

A imprensa cobriu o crime sem entrar na questão essencial: o transporte público é um direito de todo cidadão, porque, antes de tudo, significa a garantia do direito fundamental de ir e vir. Brasília tem um problema crônico nesta área. Uma cidade plana, que não conseguiu ter nem um VLT, segue aos trancos e barrancos construindo e ampliando rodovias e viadutos quando deveria investir em trens urbanos e metrô.

Nos países ricos e desenvolvidos há transporte público e a garantia do direito de ir e vir. Lá o povo pode se dar ao luxo de ter uma agenda, digamos, mais sofisticada, porque mulheres não morrem a caminho do trabalho assassinadas por maníacos disfarçados de motoristas e os analfabetos são raros.

Não tratamos do fundamental, a condição das pessoas, a transformação delas em cidadãos com direitos e capazes de fazer valer estes seus direitos. A trabalhadora ou o trabalhador de uma grande cidade do Brasil agradece a Deus e aos orixás todos os dias por voltar vivo e inteiro para casa. Um simples celular pode significar risco de vida. Num país desenvolvido os trabalhadores não têm esta preocupação, porque, ao contrário dos que aqui sobrevivem, lá eles vivem.

Temos 13 milhões de desempregados, gente apta para trabalhar, construir realizar e que deseja produzir. Quanto mais gente trabalhando, mais renda, mais economia girando, mais impostos. Estas pessoas estão ficando esquecidas, a elite intelectual e política está de costas para elas como se não existissem, porque não adianta um grande jornal mostrar uma fila de desempregados sem provocar os especialistas e os governantes – e por governante entenda-se todos que estão num governo, concursados ou não – e debater soluções. O desemprego é um problema de todos nós, não apenas dos desempregados.

A melhor coisa que pode acontecer a um país, antes de qualquer debate legítimo de costumes envolvendo liberdade sexual, de gênero ou até da liberdade de expressão, é todas as crianças conquistarem o direito de permanecer o dia todo numa escola decente, sejam vacinadas, alimentadas, aprendam sobre seus direitos e deveres, como funciona o país, as regras da eleição, onde sejam formados cidadãos conscientes capazes de entender o valor de um imposto. Uma questão de estado.

Enquanto não fizermos estas escolhas, continuaremos prisioneiros das superficialidades. Um beijo gay numa HQ não pode ter mais importância que uma epidemia de sarampo, o aumento exponencial da sífilis nas últimas décadas ou a volta da tuberculose e da poliomielite.

Discutir bobagens como a feiura da primeira-dama da França ou a importância da diversidade de gênero não dá emprego a ninguém, não tira crianças e velhos de situações vexatórias nem impede que mulheres jovens sejam mortas por falta de transporte público decente. Muito menos obriga governos a serem mais competentes.

Luzia é o exemplo dos brasileiros que não perderam a coragem e o ímpeto de crescer, vencer desafios, melhorar de vida, o mesmo espírito que moveu gente como JK, Pereira Passos, Rondon, Carlos Chagas, os irmãos Vilas Boas, Milton Santos ou Carlos Lacerda, e acreditam, como dizia Monteiro Lobato, que o Brasil cresce enquanto o governo dorme.

*É jornalista e consultor independente há 20 anos. É pós-graduado na Graduate School Of Political Management – The George Washington University e faz pós-graduação em Inteligência Econômica em Madrid.