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Primeira medida a ser adotada pela URSAL: melhorar o ensino de História

Leonardo Sakamoto

Um dos pontos altos do debate entre os presidenciáveis, na noite desta quinta (9), na TV Bandeirantes, foram os devaneios do Cabo Daciolo sobre um plano secreto para implementar a União das Repúblicas Socialistas da América Latina (Ursal).

A esquerda é um dos maiores sacos de gatos, com pessoas que brigam até sobre qual o lado correto de quebrar um ovo. Não raro, ela é tratada como um bloco monolítico – que pensa igual, age igual, reclama igual. Talvez por isso, há quem acredite que comunistas e socialistas estejam prestes a dominar o continente. Mal sabem que as esquerdas desses países são diferentes, brigam entre si e não conseguem nem fazem com que um gato faça cocô na caixinha, quanto mais unificar a América Latina em uma ”pátria grande” revolucionária.

”A democracia é uma delícia, uma beleza, mas ela tem certos custos”, lamentou de forma bem-humorada Ciro Gomes diante do surto do colega, que o acusou de estar por trás desses planos.

Coincidentemente (ou não), Cabo Daciolo era bombeiro antes de ser eleito deputado federal, mesma profissão de Guy Montag, protagonista de ”Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury – que foi transposto para a tela por François Truffaut (1966) e Ramin Bahrani (2018). Na obra de ficção, bombeiros não apagavam incêndios, mas os provocavam. Queimavam livros, proibidos sob o argumento de que opiniões individuais tornavam pessoais antissociais e infelizes. O pensamento crítico era combatido. Quem lia era preso e ”reeducado”. Se uma casa tinha livros, bombeiros eram chamados para por tudo a baixo.

O incendiário Daciolo, que propôs alterar a Constituição Federal de ”todo o poder emana do povo” para ”todo o poder emana de Deus” também acredita no poder da reeducação – à sua imagem e semelhança. ”Eu quero deixar uma mensagem para os ateus, para os cristãos de forma geral, o espírita, o católico, a Umbanda, o evangélico, que vamos levar a nação a clamar o Senhor”, afirmou no debate.

No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões que eles queriam impor. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos por ousarem pensar diferente da maioria. A Alemanha ”purificou pelo fogo” as ”ideias imundas deles”, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Santa Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar.

O bombeiro Daciolo foi uma mão na roda para o capitão Jair Bolsonaro, que acabou parecendo até comedido diante da fúria do colega de Câmara dos Deputados. Mas, antes do fim do debate, fez questão de defender a imposição das ideias do movimento Escola Sem Partido, caso seja eleito.

Educar por educar, passando apenas dados e técnicas, sem conscientizar o futuro trabalhador e o cidadão do papel que ele pode vir a desempenhar na sociedade, sem considerar a realidade à sua volta, sem ajudá-lo a construir um senso crítico e questionador sobre o poder, seja ele vindo de tradições, corporações, religiões ou governos, é o mesmo que mostrar a uma engrenagem o seu lugar na máquina. A um tijolo, em qual parte do muro deve permanecer – na base da opressão, se necessário for. Se não entendeu, ouça The Wall, do Pink Floyd.

Repito o que já disse aqui várias vezes: uma das principais funções da escola deveria ser ”produzir” pessoas pensantes e contestadoras que podem – no limite – colocar em risco a própria sociedade do jeito que a conhecemos, fazendo ruir a estrutura política e econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está. Em outras palavras, educar pode significar libertar ou enquadrar. Pode ajudar às pessoas a descobrirem como quebrar suas próprias correntes ou ser o pior cativeiro possível, fazendo com que oprimidos atuem gratuitamente como cães de guarda de seus opressores.

Que tipo de educação estamos oferecendo hoje? Que tipo de educação precisamos ter? Que tipo de educação um movimento como o Escola Sem Partido e tantas outras propostas fundamentalistas querem implantar? Ou, em suma: Como qualificar o debate público com políticos que não discutem políticas públicas?

Se o debate público e o debate eleitoral fossem mais qualificados, o cidadão comum se sentiria motivado a ler determinados textos até para não ser questionado coletivamente nas redes sociais ao expor argumentos ruins, preconceituosos e superficiais. Como dizer que o nazismo é de esquerda por conta do nome do partido alemão (Hitler se revira no mármore do inferno quando alguém o chama de comunista); que a Terra é plana e é o centro do universo, apesar de séculos de provas científico e imagens; que toda vacinação adoece crianças e serve apenas para a indústria farmacêutica ganhar dinheiro; que a ação humana não impacta o clima.

O que temos contudo, é que o discurso violento e simplificador – mais palatável e que mexe com nossos sentimentos mais primitivos e simples – ecoa e repercute. Esse discurso basta em si mesmo. Não precisa de nada mais do que si próprio para ser ouvido, entendido e absorvido. Em um debate qualificado quem usa esses argumentos toscos nem seria ouvido. Contudo, fazem sucesso na rede. Colam rápido, colam fácil. Viralizam. Memetizam.

Se há um exército que retuíta, compartilha e dá ”like” sem checar esse discurso, porque para ele isso basta, também existe uma miríade que preenche o vácuo deixado pela informação insuficiente que recebe com suas fantasias a fim de dar sentido à sua existência ao invés de ir atrás de mais conhecimento. Guiados apenas pela emoção ao invés de razão, tornam-se terreno fértil para as conspirações.

Não que elas não existam, porque existem. Mas são importantes demais para que o impacto de sua descoberta seja enfraquecido pela sua banalização no cotidiano sem graça. Como a revelação da criação de uma Ursal em um debate eleitoral.

Uma mentira contada repetidas vezes para si mesmo vira verdade e, para os outros, torna-se religião. Se a mensagem está bem estruturada, usando elementos simbólicos comuns ao universo do destinatário, que ele consegue consumir facilmente, e que faz algum sentido, por que não acreditar? Ainda mais por que questionar com profundidade leva tempo e paciência, commodities que estão cada vez mais difíceis de juntar.

O mundo sem teorias da conspiração seria menos divertido e romântico. E teríamos que assumir muitas de nossas responsabilidades sem jogar a culpa no desconhecido, no oculto, no sobrenatural, no estrangeiro.

Os cantos mais sombrios de nossa alma sempre buscaram juntar cacos de informações e dar sentido a um ocorrido de forma mágica quando não conseguimos ter acesso à visão geral. Imagine que chato seria um mundo em que as pessoas se dedicassem a aprender História a fim de compreender como chegaram até o aqui e o agora, garantindo uma boa parte dessa visão geral.

Mas, enfim, se tudo der errado, pelo menos teremos a Ursal e suas nove Copas do Mundo.