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A questão do marco temporal

Por Rogério Tadeu Romano*

A chamada tese do marco temporal é uma proposta de interpretação do artigo 231 da Constituição. Trata-se de uma linha de corte. Por esse entendimento, que é defendido por ruralistas, uma terra indígena só poderia ser demarcada se for comprovado que os indígenas estavam sobre a terra requerida na data da promulgação da Constituição, ou seja, no dia 5 de outubro de 1988. Quem estivesse fora da área nesta data ou chegasse depois deste dia, não teria direito a pedir sua demarcação.

A proposta desagrada a ambientalistas e defensores dos indígenas. De acordo com eles, a aprovação do PL poderia mudar o curso de pelo menos 303 pedidos em andamento, ou seja, que estão em alguma fase do processo de demarcação, sem que este tenha sido concluído. Essas terras somam 11 milhões de hectares (equivalente a 1,30% do território brasileiro), onde vivem cerca de 197 mil indígenas (0,20% da população do País).

Lembrou o site de notícias do Estadão, em 30.5.23, que, de acordo com monitoramento do Instituto Socioambiental (ISA) com base em publicações feitas no Diário Oficial da União, o Brasil tem 421 terras indígenas devidamente homologadas, que somam 106,6 milhões de hectares e onde vivem cerca de 466 mil indígenas.

O indigenato é tradicional instituição jurídica que deita raízes nos velhos tempos da Colônia quando o Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, às terras outorgadas a particulares seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.

Terras tradicionalmente ocupadas não revelam uma relação temporal. Se formos ao Alvará de 1º de abril de 1680 que reconhecia aos índios as terras onde estão tal qual as terras que ocupavam no sertão, ver-se-á que a expressão ocupadas tradicionalmente não significa ocupação imemorial. Não se trata de posse ou de prescrição imemorial. Não quer dizer terras imemorialmente ocupadas, ou seja, terras que eles estariam ocupando desde épocas remotas que já se perderam na memória. Como bem alertou José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5º edição, pág. 716), o tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terra e ao modo tradicional de produção, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra.

O indigenato não se confunde com a ocupação, portanto, com a posse civil. O indigenato é fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. Essa a lição obtida de João Mendes Júnior é observada por José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, RT, 5ª edição, pág. 717). Esse desenvolvimento é feito sobre a tese de que as terras de índios, congenitamente apropriadas, não podem ser consideradas nem como res de ninguém, nem como res derelictae. Não é uma simples posse, mas um reconhecido direito originário e preliminarmente destinado ao indígena.

Sabe-se que o artigo 231 da Constituição Federal reconhece o direito ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras que tradicionalmente ocupam. Tal usufruto é intransferível como lembra Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969, t.IV/456 e 457).

Não está em jogo, no tema da posse indígena, como revelou o Ministro Victor Nunes Leal (voto proferido nos autos do recurso extraordinário nº 44.585 – MT, julgado a 28.6.61), um conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista dos vocábulos. Trata-se de um habitat de um povo. Assim, a Constituição Federal determina que num verdadeiro parque indígena, com todas as suas características naturais primitivas, possam permanecer os índios vivendo naquele território.

A posse indígena distingue-se da posse civil. Aquela é mais ampla, mais flexível como conceituado no artigo 23 da Lei nº 6001, de 19 de dezembro de 1973 ( Estatuto do Índio).

Nas terras indígenas, a propriedade é da União ( Constituição Federal, artigo 20, inciso XI). Dos índios é o usufruto exclusivo abrangendo o aproveitamento das riquezas do solo, dos rios e lagos neles existentes. Tais terras são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

José Afonso da Silva, em parecer, coloca que um suposto marco temporal só teria legitimidade se colocado em 1611, data da Carta Régia de Felipe III e reconhecimento jurídico inequívoco dos direitos originários indígenas, mas reitera que não há na Constituição Federal sinalização alguma de data a partir da qual se fariam valer os direitos territoriais das populações indígenas.

Há os que entendem que o direito dos indígenas é anterior à existência do Estado brasileiro, que apenas deve reconhecer suas posses.

Explica melhor José Afonso da Silva (Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. In: SANTILI, Juliana (Coord.). Os direitos indígenas e a constituição. Porto Alegre: Fabris, 1993. p. 50):

“Quando a Constituição declara que as terras indígenas ocupadas pelos índios se destinam a sua ‘posse permanente’, isso não significa um pressuposto do passado, como ocupação efetiva, mas especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat. Se ‘se destinam (destinar’ significa apontar para o futuro) à posse permanente é porque um direito sobre elas preexiste à posse mesma, e é o direito originário já mencionado. “

Mas há o óbice do marco temporal diante da Constituição de 1988.

Advieram decisões proferidas por turma do STF que já trouxeram interpretações levadas a efeito com base no marco temporal, v.g., ARE 803462 e RMS 29087 – objeto de recursos do MPF.

Destaco o ARE 803462:

EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TERRA INDÍGENA “LIMÃO VERDE”. ÁREA TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS (ART. 231, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MARCO TEMPORAL. PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO CUMPRIMENTO. RENITENTE ESBULHO PERPETRADO POR NÃO ÍNDIOS: NÃO CONFIGURAÇÃO.

  1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet 3.388, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1º/7/2010, estabeleceu como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena, a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
  2. Conforme entendimento consubstanciado na Súmula 650/STF, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado remoto. Precedente: RMS 29.087, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014.
  3. Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada.
  4. Agravo regimental a que se dá provimento.

Tem-se, por sua vez, o RMS 29.087/DF:

DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. O MARCO REFERENCIAL DA OCUPAÇÃO É A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DAS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS. PRECEDENTES. 1. A configuração de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 650, que dispõe: os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto. 2. A data da promulgação da Constituição Federal (5.10.1988) é referencial insubstituível do marco temporal para verificação da existência da comunidade indígena, bem como da efetiva e formal ocupação fundiária pelos índios ( RE 219.983, DJ 17.9.1999; Pet. 3.388, DJe 24.9.2009). 3. Processo demarcatório de terras indígenas deve observar as salvaguardas institucionais definidas pelo Supremo Tribunal Federal na Pet 3.388 (Raposa Serra do Sol). 4. No caso, laudo da FUNAI indica que, há mais de setenta anos, não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena na área contestada. Na hipótese de a União entender ser conveniente a desapropriação das terras em questão, deverá seguir procedimento específico, com o pagamento de justa e prévia indenização ao seu legítimo proprietário. 5. Recurso ordinário provido para conceder a segurança.

O “marco temporal da ocupação” é um argumento do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, que surgiu em 2009, ao lado das 19 “condicionantes” trazidas pelo também ex-ministro do STF Menezes, Direito no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Esse argumento é hoje utilizado pelos ruralistas para limitar as demarcações de terras indígenas.

Diz esse argumento que os direitos territoriais dos povos indígenas só têm validade se eles estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988. Queria o ministro Ayres Britto colocar uma “pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação da área indígena”.

A Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu um parecer que o presidente Michel Temer logo aprovou, e que foi objeto de publicação. Trata-se de ressuscitar, pela terceira vez, a portaria 303 de 2012 da AGU, tão controvertida que por duas vezes teve de ser suspensa. O parecer obriga toda a administração pública federal a cumprir as “condicionantes” que constaram do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a célebre demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em 2009.

Para fundamentá-lo, a AGU atribuiu ao STF o propósito de, naquele julgamento, ter tido a “deliberada intenção” de definir a interpretação dos artigos da Constituição Federal que tratam da demarcação das terras indígenas.

Dessa forma, tal entendimento deveria ser aplicado “para todo e qualquer processo de demarcação de terras indígenas no Brasil”.

Aponta um relatório do Núcleo de Justiça Racial da FGV (Fundação Getulio Vargas) Direito SP que “o marco temporal para terras indígenas não tem base na Constituição, cria insegurança jurídica para o Brasil e não vai resolver conflitos no campo. Pelo contrário, deve incentivar grilagem, prejudicar a segurança fundiária e econômica em territórios como a Amazônia e incentivar a violência.”

Para José Afonso da Silva e Manuela Carneiro da Cunha (STF poderá sustar o “marco temporal”?, in Folha de São Paulo, 13 de agosto de 2017), “isso é um engano: em várias ocasiões, ministros do Supremo que haviam participado do julgamento de 2009 afirmaram que as condicionantes da terra indígena de Raposa Serra do Sol eram específicas daquele caso e não vinculantes.

O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, criou uma argumentação própria – e peculiar – para se opor aos direitos pela posse imemorial garantidos pela Constituição aos povos indígenas. Ela ficou conhecida como a “tese de Copacabana”.

Em outubro de 2014, ao discordar do relator Ricardo Lewandowski, favorável a manter a demarcação da Terra Indígena Guyraroká, Mendes apelou para uma ironia. Ele disse que se a política de demarcação da Fundação Nacional do Índio (Funai) prosperar “podemos resgatar esses apartamentos de Copacabana, sem dúvida nenhuma, porque certamente, em algum momento, vai ter-se a posse indígena”.

O STF está a se debruçar sobre o tema, que envolve uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng. Eles requerem a demarcação da terra indígena Ibirama-Laklanõ, onde também vivem indígenas das etnias Guarani e Kaingang.

A matéria está em no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 pelo STF.

O julgamento do marco temporal começou em agosto de 2021, mas foi interrompido por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. O placar está em 1 a 1.

O relator da ação é o ministro Edson Fachin, que se posicionou contra a tese do marco temporal. Em seu voto, o ministro afirmou que “a data da promulgação da Constituição de 1988 não constitui marco temporal para a aferição dos direitos possessórios indígenas”.

Entendeu o ministro relator Edson Fachin em seu voto, que direitos fundamentais não são passíveis de retrocesso”,

Já o ministro Kassio Nunes Marques divergiu do relator e se manifestou pela aplicação do marco. Segundo ele, reconhecer pedidos de posse posteriores à data de promulgação da Constituição “implicaria o direito de expandi-las ilimitadamente para novas áreas já definitivamente incorporadas ao mercado imobiliário”.

O ministro Nunes Marques votou pelo desprovimento do RE 1017365, pois considera não ter sido comprovada a ocupação tradicional em 5/10/1988. Também entende que a ampliação seria indevida, por se sobrepor a uma área de proteção ambiental e por não ter sido homologada pelo presidente da República. Além disso, a falta de intimação das famílias de agricultores afetadas para que se defendessem viola o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, como se observa do noticiário do STF, em 15.9.21.

Ao apresentar sua divergência, o ministro Nunes Marques afirmou que a decisão do STF no julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol ( Petição 3388), em que foi adotado o marco temporal, é a solução que melhor concilia os interesses do país e os dos indígenas. Segundo ele, esse parâmetro tem sido utilizado em diversos casos, e a revisão da jurisprudência ocasionaria insegurança jurídica e retorno à situação de conflito fundiário.

Na avaliação do ministro Nunes Marques, a Constituição de 1988 reconheceu aos indígenas, entre outros pontos, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas essa proteção constitucional depende do marco temporal. Segundo ele, a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial, sendo necessária a comprovação de que a área estava ocupada na data da promulgação da Constituição ou que tenha sido objeto de esbulho, ou seja, que os indígenas tenham sido expulsos em decorrência de conflito pela posse.

O recurso tem repercussão geral reconhecida (Tema 1.031) e servirá de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 82 casos semelhantes que estão sobrestados.

A Casa aprovou regime de urgência para a tramitação do projeto, em uma tentativa de se antecipar à pauta do Supremo Tribunal Federal ( STF), que prevê avaliar a constitucionalidade de uma data limite como “trava” para a demarcação de terras indígenas em julgamento no dia 7 de junho.

A matéria do marco temporal é objeto de discussão no PL 490/2007.

O PL 490/2007 cita votos no julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) no STF, que fala em um fato indígena —a ocupação em outubro de 1988. A tese é rejeitada pelos críticos, que apontam assassinatos e deslocamentos de populações indígenas em décadas anteriores.

A Câmara dos Deputados aprovou no dia 30 de maio do corrente ano o projeto de lei sobre o marco temporal da ocupação de terras por povos indígenas (PL 490/07). A proposta será enviada ao Senado, consoante informou a Agência Câmara de Notícias.

Ainda como informado por aquela Agência de Notícia, a MP foi aprovada na forma de um substitutivo do relator, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA). Segundo o texto, para serem consideradas terras ocupadas tradicionalmente, deverá ser comprovado objetivamente que elas, na data de promulgação da Constituição, eram ao mesmo tempo habitadas em caráter permanente, usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural.

Dessa forma, se a comunidade indígena não ocupava determinado território antes desse marco temporal, independentemente da causa, a terra não poderá ser reconhecida como tradicionalmente ocupada.

O substitutivo prevê ainda:

permissão para plantar cultivares transgênicos em terras exploradas pelos povos indígenas;

proibição de ampliar terras indígenas já demarcadas;

adequação dos processos administrativos de demarcação ainda não concluídos às novas regras; e nulidade da demarcação que não atenda a essas regras.

O substitutivo do deputado Maia estabelece que o usufruto das terras pelos povos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional, permitindo a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Fundação Nacional do Índio (Funai). Tratar-se-ia de matéria de interesse público voltada para a segurança nacional.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Confira como votaram os deputados e senadores do RN na decisão que derrubou o veto de Bolsonaro ao aumento do fundo eleitoral

Dos 11 membros da bancada federal do Rio Grande do Norte apenas quatro votaram a favor de manter o veto do presidente Jair Bolsonaro (PL) ao aumento de R$ 2,1 bilhões para R$ 5,7 bilhões do Fundo Eleitoral para 2022.

Outros seis parlamentares votaram pela derrubada do veto sendo quatro deputados e dois senadores.

Da bancada federal do Rio Grande do Norte apenas Natália Bonavides (PT) se ausentou da votação. Conforme noticiou o Portal Agora RN ela estava em voo durante a apreciação do veto.

Deputados

Benes Leocádio (Republicanos): Sim;

Beto Rosado (PP): Não

Carla Dickson (Pros): Sim;

General Giral (PSL): Sim;

João Maia (PL): Não;

Natália Bonavides (PT): ausente;

Rafael Motta (PSB): Não;

Walter Alves (MDB): Não.

Snadores:

Jean Paul Prates (PT): Não;

Zenaide Maia (Pros): Não;

Styvenson Valentim (Podemos): Sim.

O veto ao fundo eleitoral foi derrubado por 317 x 146 na Câmara dos Deputados e 53 x 21 no Senado. As votações ocorreram na sexta-feira.

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Congresso derruba veto de Bolsonaro a projeto de Natália

Em Sessão Conjunta do Congresso Nacional, realizada nesta segunda (27), senadores e deputados derrubaram o veto do presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido) e o projeto de lei nº. 827/2020 de autoria da deputada Natália Bonavides (PT-RN), que busca impedir que pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade social sejam jogadas nas ruas durante a pandemia, vai virar lei.

Para Natália, a derrubada do veto representa uma grande vitória: “Essa é uma grande vitória da mobilização de todas e todos aqueles que lutaram em defesa do direito à moradia para salvar vidas na pandemia. São trabalhadores e trabalhadoras e mais de 100 movimentos sociais que se somaram às lutas na defesa do projeto Despejo Zero desde o início da pandemia, quando o apresentamos”.

O projeto inicial protegia áreas urbanas e rurais, a bancada ruralista, no entanto, derrubou a proteção nas áreas rurais. Após publicada, a lei irá suspender, portanto, os despejos nas áreas urbanas de imóveis e ocupações coletivas feitas antes de 31/03/21. Valerá para quem paga aluguel de até R$600 e comprove que teve perda de renda pela pandemia, bem como microempresários que não estão conseguindo pagar o aluguel (de até R$1.200) por conta dos impactos da pandemia. A vigência da lei será até 31/12/2021.

“Fizemos uma grande articulação para conseguir aprovar o projeto na Câmara, no Senado e ainda para derrubar o veto do presidente. Bolsonaro desde o início da pandemia age como um dos principais aliados do vírus, e no direito à moradia não foi diferente, fez o que pôde para permitir que pessoas e famílias fossem jogadas nas ruas na pandemia. A mobilização dos movimentos pelo direito à vida, contudo, foi mais forte e por conta dela tivemos essa grande vitória. Seguiremos agora juntos e mobilizados para avançar na garantia de mais direitos e salvar vidas”, destacou Natália Bonavides.

Mais de 20 mil famílias já foram despejadas desde o início da pandemia e mais de 91 mil estão ameaçadas de ir pra rua. Dados do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) apontam que em 2017 o déficit habitacional no Brasil chegou a 7,8 milhões de domicílios; e de acordo com pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), estima-se que em 2016 haviam 101.854 pessoas em situação de rua no país, número que deve ser maior devido à falta de dados oficiais.

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Gilmar toma lá, Maia dá cá

Por Conrado Hübner Mendes*

Reformar o STF é dos temas urgentes no projeto de recuperação da democracia brasileira, quando essa hora chegar. O exercício deveria enfrentar problemas estruturais do tribunal: a arbitrariedade e o tamanho da pauta, o voluntarismo individualista, o ilusionismo que sonega explicação sobre o que decide e não decide, a ausência de prestação de contas etc.

Parte da ingovernabilidade do STF, afinal, é da arte e engenho de seus próprios ministros. Não foi um “vírus chinês”, um hacker no Planalto ou Sara Winter e seus 300 amigos. Nem a klan presidencial pedindo seu fechamento por intervenção militar.

Reformar o STF significa, antes de qualquer coisa, proteger a instituição da intrincada teia de interesses antirrepublicanos que orbitam a relação entre comunidade jurídica e ministros. A disfuncionalidade do tribunal costuma ser funcional aos atores que dispõem de portas privilegiadas no edifício. Quem é compensado política e financeiramente por esse labirinto de Babel não será aliado de reforma que valha a pena.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, conversa com o ministro Gilmar Mendes, do STF, durante solenidade em Brasília
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, conversa com o ministro Gilmar Mendes, do STF, durante solenidade em Brasília – Pedro Ladeira – 5.out.17/Folhapress

Rodrigo Maia instalou dias atrás comissão para elaborar anteprojeto de lei que consolide regras do processo constitucional. A comissão é exemplo magnífico da confraria jurídica brasileira. Seu presidente é ele, sim, o indefectível Gilmar Mendes.

Dos 24 membros indicados, há 19 homens brancos e 5 mulheres brancas (80% a 20%). Há 11 de Brasília, 7 de São Paulo, 3 de Porto Alegre, 2 de Curitiba e 1 do Rio de Janeiro. Todos juristas. Cientistas sociais que mapeiam a realidade empírica desse mastodonte judicial ficaram de fora. A sociedade civil também.

Tamanha representatividade e pluralidade vieram acompanhadas por uma gota de promiscuidade. O secretário da comissão é advogado pessoal de Gilmar. Gilmar também é empresário da educação, mesmo que a Constituição lhe proíba. De sua escola de direito, a comissão tem quatro funcionários. Um deles é seu ex-sócio.

Foi isso que 15 minutos de pesquisa amadora permitiram notar. Repórter experiente nos corredores de Brasília poderá ver outras coisas que a vista do Google não alcança. Sabemos que a fraternidade jurídica não pratica os valores que professa (nem declara os valores que pratica). Quem vasculha, acha.

Ninguém perguntou, mas vale insistir: por que ministro do STF deve presidir elaboração de lei que disciplina o próprio STF? Mesmo que seja um ás no assunto e tenha a virtude da autocrítica e clarividência, seu tribunal pode vir a julgar a lei. Confusão elementar de papéis que a manutenção do Estado de Direito não recomenda.

Supondo que essa tradição seja inofensiva, por que chamar justo um dos grandes artífices das patologias do STF? A contribuição de Gilmar à desinstitucionalização do STF foi radical e holística: começou pela quebra de padrões de ética e decoro judicial, passou pelo desrespeito corriqueiro a seus pares e terminou na revogação disfarçada de regras legais e regimentais.

Deve ser só coincidência, mas Rodrigo Maia se beneficiará nos próximos dias de mais uma decisão abusiva do Supremo, sob relatoria de Gilmar. Já descrevi o caso em coluna anterior. Vem mais contorcionismo verbal e desfaçatez por aí. A Constituição proíbe recondução de membros das mesas do Congresso para mandato subsequente (artigo 57, parágrafo 4º). Proíbe a reeleição de Maia e Alcolumbre.

Ministros concluirão que a Constituição não diz o que diz. Tentarão nos convencer que, num escaninho do texto a que eles têm acesso exclusivo, a Constituição quis expressar o contrário. É fraude, não argumento.

Tratados de hermenêutica jurídica falam em diferentes métodos de interpretação das regras legais: pela literalidade dos termos, pela história subjacente, por seu propósito, pela forma como se integram no conjunto.

Também propõem métodos adicionais para as especificidades da Constituição: buscar coerência com precedentes; dialogar com a filosofia moral e política debaixo de direitos como liberdade e dignidade; balancear direitos em colisão; estimar consequências sociais e econômicas e calibrar a decisão para minimizar eventuais danos.

​Nenhum método jamais permitiu que a norma “é proibido” possa significar “está liberado”. O vale-tudo é a cara do STF, não do Estado de Direito. Quando o Congresso virar Alerj, com a ajuda do STF, o STF vai virar o quê? Um TJ-SP?

*É professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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Câmara dos Deputados discute adiamento das eleições

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Deputados usam máscaras em dia de trabalho no Congresso (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

Matéria da Folha de S. Paulo publicada hoje mostra alguns movimentos ainda que tímidos e de fora da cúpula da Câmara dos Deputados com o objetivo de adiar as eleições 2020 por causa da pandemia de Coronavírus.

A reportagem mostra algumas consultas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), umas delas já com resposta negativa.

No Senado o assunto ainda não foi levado em consideração. Pelos menos por enquanto.

O futuro presidente do TSE Luís Roberto Barroso disse que ainda é cedo para tratar da questão.

Leia a reportagem completa AQUI.

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Ou as instituições reagem ou vai ter golpe

Bolsonaro testa instituições (REUTERS/Adriano Machado)

Por Bruno Barreto

As democracias não morrem do dia para noite. Elas caem quando as instituições não agem e se curvam aos candidatos a ditadores e são preservadas quando reagem à altura.

Sobre isso existem três livros fundamentais para entender o processo de colapso da democracia: “Como as Democracias Morrem” de Steven Levitsky, “Como a democracia chega ao fim” de David Runciman e o “Povo contra a Democracia” de Yascha Mounk.

Li os três ano passado num período do ano dedicado aos estudos sobre os processos de ruptura democrática. Até aqui as instituições têm funcionado, mas há alguns sintomas que precisam nos deixar em alerta.

O presidente Jair Bolsonaro está testando as instituições a cada provocação. Há quem diga que ele não tem inteligência ou sofisticação para fazer essa experiência. Ele pode até ser inculto, mas ninguém preside um país de 210 milhões de habitantes sem ter algum tipo de inteligência. A estupidez do presidente é um método que o levou ao poder num momento em que povo perdeu a crença na política.

Um dos princípios que servem de alerta é a quebra das regras não escritas. Foi o que Bolsonaro fez ao ignorar a lista tríplice na hora de escolher o procurador-geral da república. A gritaria se restringiu a notas. O mesmo aconteceu quando ele se envolveu no comercial do Banco do Brasil que abordava a diversidade. No fim, ficou por isso mesmo. Ele censurou a peça.

Bolsonaro vai avançando na intolerância aos costumes para manter a assustadora parcela de reacionários do país mobilizados.

Em outros episódios Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF) funcionaram como contrapeso barrando medidas absurdas como a proposta de excludente de ilicitude para policiais ou a nomeação de Eduardo Bolsonaro (PSL/SP) como embaixador nos EUA, mas o presidente segue aumentando a aposta contra os poderes e quando o assunto se restringe as palavras tudo fica por isso mesmo. No máximo alguma crítica pública das autoridades, uma nota de repúdio e uma zoada na Internet.

Enquanto isso, Bolsonaro vai mobilizando seus apoiadores, fazendo crescer a presença dos militares no círculo do poder e eles vão tomando gosto pelo mando fora da caserna.

Povo na rua quem bota é Bolsonaro. A população não tem tanto apreço pela democracia como se imagina. É uma aposta ingênua achar que as pessoas estão preocupadas com o regime político quando a prioridade é botar um prato de comida na mesa.

Um líder carismático e autoritário com o atual presidente pode intimidar as instituições e usar sua massa de apoiadores como escudo. Foi isso que Bolsonaro fez em outros momentos e é nisso que ele pensa quando convoca uma manifestação espalhando vídeo (ver abaixo) em grupo de Whatasapp.

As manifestações estão no contexto da luta do presidente contra o Congresso provocada pela inclusão de emendas impositivas para as bancadas, o que na prática tira o Governo o real controle do orçamento da União (entendeu que as instituições por enquanto funcionam?). Primeiro o general Augusto Heleno acusou os parlamentares de chantagear o Governo, depois o tenebroso motim dos policiais militares no Ceará. Agora o vídeo (ver acima). Não tem como não se preocupar porque nada disso foi por acaso.

Para piorar, a esquerda não tem a mesma capacidade de mobilização de outrora. As mudanças no capitalismo tiraram dos sindicatos a influência sobre a classe trabalhadora.

O centrão é uma piada de péssimo gosto e não gera empatia popular por mais que setores da grande mídia se esforcem para isso.

Bolsonaro tem seu pessoal mobilizado, a elite econômica satisfeita (uma das estratégias de ditadores é controlar as elites) e está enchendo de militares nos postos de comando. Nos Estados, o presidente conta com a simpatia dos quarteis das Polícias Militares.

Não dá para brincar.

Quem tem apreço pela democracia precisa fazer muito mais do que apenas dar declarações de repúdio ou divulgar notas formais. É fundamental despertar no povo o sentimento de apreço aos valores democráticos.

Por enquanto, Bolsonaro ataca tudo e todos sem ser incomodado de fato. Suas tentações autoritárias são inegáveis. Se as instituições funcionarem ele vai ter que disputar reeleição em 2022. Senão o risco tende a aumentar. Por enquanto ele xinga jornalistas para passar o tempo.

As democracias não morrem do dia para noite, mas sobrevivem quando a reação das instituições são mais duras.

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Maioria dos parlamentares do RN faltam votação que retirou R$ 1,1 bilhão da educação prejudicando UFERSA, IFRN e UFRN

Ontem a Congresso Nacional finalizou a votação do Projeto de Lei (PLN) 18/19 que fez alterações no orçamento retirando R$ 1,15 bilhão da educação.

A matéria trata de remanejamentos que prejudicam a educação beneficiando ministérios da Saúde, da Defesa, do Desenvolvimento Regional e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

A área mais prejudicada na educação são as bolsas de pesquisas.

No Rio Grande do Norte o prejuízo é de R$ 12,5 milhões para as universidades federais, incluindo recursos previstos para a UFRN (R$ 8,76 milhões) IFRN (R$ 2,47 milhões) e UFERSA (R$ 1,27 milhões).

Na Câmara a matéria passou por 270 x 17. Do Rio Grande do Norte só o deputado General Girão (PSL) votou a favor dos cortes. Natália Bonavides (PT) e Rafael Motta (PSB) obstruíram* a pauta. Já Beto Rosado (PP), Fábio Faria (PSD), João Maia (PL), Benes Leocádio (Republicanos) e Walter Alves (MDB) não compareceram a votação.

No Senado a bancada do RN se ausentou da votação que foi de  40 votos a 2 em favor das alterações propostas pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL).

Saiba mais AQUI.

Glossário:

Obstrução é recurso usado para evitar a votação de determinada matéria. É anunciada pelo líder do partido ou do bloco, fazendo com que os parlamentares liderados se retirem do Plenário. Apenas o líder do partido ou do bloco em obstrução permanece em Plenário.

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A reforma da previdência e o jogo entre Executivo e Legislativo no Brasil

Por André Frota e Luiz Domingos Costa*

O trâmite para aprovação do projeto de reforma da Previdência, que ocorreu na última semana antes do recesso parlamentar, marcou o fim do primeiro semestre do período legislativo da Câmara dos Deputados de 2019. Como principal resultado dessa fase, após ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, bem como na Comissão Especial da Reforma da Previdência, o projeto de emenda constitucional (PEC 6/2019) passou com larga margem de aprovação no plenário da Câmara.

O trâmite da PEC indica, para além de seu trajeto formal, o perfil do jogo entre o Executivo e o Legislativo no Brasil no atual governo. Como uma pequena amostra do que essa relação tem sinalizado, constata-se: i) a formação de uma coalizão parlamentar permanente de apoio ao Executivo, como era característica do presidencialismo de coalizão clássico, encontrado nos primeiros governos pós-redemocratização. Essa coalização cedeu espaço para uma composição temática, que demanda ser reordenada a cada projeto de lei; ii) maior espaço para atuação do parlamento em relação ao poder de agenda do presidente da república, derivado desses vazios que se abrem a cada novo projeto de interesse do Executivo; iii) o aumento do apoio popular à mudança na previdência, com claro impacto sobre o comportamento parlamentar; iv) a resposta do Executivo às exigências de negociação dos parlamentares, o que pode ser verificado pela liberação das emendas orçamentárias aos deputados.

Para o segundo semestre, ainda restam a aprovação em segundo turno no plenário da Câmara e a tramitação no Senado, com processo idêntico ao exigido na Câmara baixa. O que está em aberto, entretanto, é se os municípios e os estados vão ser inseridos na emenda constitucional, já que o relatório final do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) acabou excluindo as subunidades federativas da reforma. A inclusão dos estados e municípios na nova previdência é um dos pontos mais delicados da negociação entre o Executivo e Legislativo e foi retirada para poder ser aprovada na Câmara. A despeito dos esforços dos reformistas no Senado favoráveis à inclusão e ao próprio Planalto, ela continuará sendo tema controverso no segundo semestre.

A reforma da previdência parece sinalizar uma mudança de relação entre o Executivo e o Legislativo no âmbito do processo decisório nacional. Se o presidente prefere não formar uma base de apoio regular e distribuir cargos ministeriais em troca de apoio parlamentar, permite que lideranças parlamentares atuem decisivamente alterando o conteúdo das reformas. Essa estratégia leva o presidente a transferir parte dos custos de negociação ao parlamento sem, no entanto, abrir mão de reivindicar os méritos das vitórias. Entretanto, essa estratégia passa por mais ativismo do Legislativo, mais barganhas políticas e, consequentemente, maior demanda por recursos orçamentários aos parlamentares.

Autores*:

 

André Frota é membro do Observatório de Conjuntura e professor do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Internacional Uninter.

 

Luiz Domingos Costa é professor dos cursos de Ciência Política e Relações Internacionais do Centro Universitário Internacional Uninter.

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Presidencialismo sob Bolsonaro é disfuncional

Por Sérgio Abranches

Folha de S. Paulo

Jair Bolsonaro escolheu uma Presidência de confrontação desde a posse. Não foi surpresa. Ele anunciou sua disposição de enfrentamento já na campanha. Recusando o enquadramento institucional do presidencialismo de coalizão, tem tido sucessivas derrotas para um governo nos seus primeiros seis meses. Este é o período em que, normalmente, o presidente tem mais força de atração e convencimento.

Basta examinar um dia para ter uma boa ideia desse confronto permanente e suas consequências. Na última terça-feira (25), o presidente viu-se forçado a cancelar os decretos que afrouxavam a regulação sobre posse e porte de armas, para evitar um decreto legislativo retirando-lhes validade. Mas editou novos decretos, com teor similar, e enviou projeto de lei ao Legislativo, pelo qual seria autorizado a legislar sobre uso, posse e porte de armas sem autorização parlamentar.

No mesmo dia, o presidente do Senado devolveu a medida provisória pela qual Bolsonaro pretendia reestabelecer a transferência da Funai e da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, medidas rejeitadas pelo Congresso em maio. A MP afrontava, numa canetada, o Legislativo e a Constituição. A lei proíbe a reedição de medida provisória sobre matéria rejeitada pelo Congresso na mesma sessão legislativa.

Não bastassem os atritos com o Parlamento, o presidente ainda entrou em controvérsia com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), seu aliado na campanha, acerca de um hipotético autódromo para hipotéticos Grandes Prêmios de Fórmula 1 no Rio de Janeiro, retirando-os de Interlagos.

Esses atropelos resultam do mal entendimento do modelo político brasileiro. As regras atuais foram pensadas para que ele fosse mais durável e mais eficaz do que o da Constituição de 1946. Tiveram sucesso. O presidente ficou relativamente mais forte, e o Congresso, relativamente mais fraco.

O Senado conquistou o poder de iniciar legislação, equiparando-se à Câmara em vários aspectos. Aumentou-se também a dependência do presidente em relação à coalizão no Legislativo —o presidente, porém, é dotado de mais recursos para formar e coordenar essa coalizão.

Pintura de capa da Ilustríssima – Rodrigo Bivar

Como a representação partidária nas duas Casas não tem a mesma composição, o presidente, no limite, precisa organizar e gerenciar uma coalizão bifronte, estabelecendo convergência e sincronia entre suas duas cabeças. Não é tarefa fácil, em um sistema multipartidário heterogêneo e fragmentado.

A coalizão se tornou um imperativo da governabilidade porque é improvável que o partido do presidente alcance a maioria nas duas Casas do Legislativo —e praticamente impossível que faça sozinho a maioria necessária para emendar a Constituição (60%). O eleitorado brasileiro é muito heterogêneo, social e regionalmente. A correlação eleitoral de forças entre os partidos varia muito ao longo da federação.

As características sociológicas do eleitorado, a lógica da representação proporcional com lista aberta e as regras para organização partidária propiciam e incentivam a fragmentação partidária.

Essa combinação dificulta ainda mais a conquista da maioria parlamentar por um só partido, além de gerar bancadas com agendas mais diferenciadas, carregadas de demandas locais, corporativistas e setoriais. Um presidente minoritário fica refém de maiorias muito ocasionais. Elas se formam, em geral, apenas em temas da agenda que refletem verdadeira emergência nacional ou interesses de forças socioeconômicas poderosas o suficiente para pressionar o Congresso.

O eleitorado do presidente é nacional e plural. Deputados e senadores são eleitos por recortes específicos dos eleitores de seus estados, aos quais têm que responder em alguma medida e evitar descontentar gravemente. Daí surge a necessidade de, uma vez formada a coalizão, promover o ajuste político entre sua pauta de políticas e as inclinações de sua base parlamentar.

Dotado de poder de agenda, o presidente pode coordenar e dirigir o processo legislativo nesse universo fracionado de interesses parlamentares. Ele tem a iniciativa legislativa preferencial e a capacidade de determinar a tramitação em urgência de seus projetos. Tem, assim, precedência na deliberação sobre as proposições que considera prioritárias.

Tem, adicionalmente, exclusividade de iniciativa em vários campos, como o orçamentário. O presidente ganhou a possibilidade de legislar por decretos e medidas provisórias e manteve o poder de veto. Tudo isso confere maior poder de agenda ao presidente que ao Congresso.

O que limita esse poder de agenda quase absoluto no presidencialismo de coalizão brasileiro?

Em primeiro lugar, a coalizão, pois demanda que o presidente, na promoção de seus projetos, equilibre, concilie e contemple seus interesses com os da representação mais significativa no Congresso e os das minorias politicamente relevantes.

No plano político, o fator que qualifica o poder presidencial é a disposição e a capacidade de formar uma coalizão majoritária, o mais homogênea e compacta possível, dado o grau vigente de fragmentação partidária, e compartilhar com ela parte dos bônus decorrentes desse poder.

No plano propositivo, o desafio é ser capaz de formular uma agenda que, respeitando suas preferências ideológicas, expresse a pluralidade de interesses presentes na maioria que o elegeu e na maioria representada por sua coalizão.

Em segundo lugar, os limites dados por mecanismos contramajoritários, de freios e contrapesos, como o controle jurisdicional de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal, o controle de contas pelo TCU, a defesa da probidade administrativa pelo Ministério Púbico, entre outros.

Estamos no período posterior a uma ruptura político-eleitoral que desestabilizou nosso modelo político. Desfez-se o padrão de disputa bipartidária pela Presidência entre PT e PSDB, com dominância do primeiro, e de competição multipartidária nas eleições proporcionais, visando à criação de bancadas mais numerosas para formar, com vantagem, a coalizão de governo.

Houve, também, uma ruptura político-ideológica relevante. Com a polarização extremada, a vitória de Bolsonaro levou à Presidência, pela primeira vez, uma agenda antagônica tanto à adotada pelo PSDB nos governos FHC quanto à implementada pelo PT. Diverge da visão mediana do Congresso em áreas sensíveis como direitos humanos, liberdade de expressão e cátedra (educação, ciência e cultura), meio ambiente, uso de armas, direitos e saúde da mulher, liberdade de gênero.

Os problemas maiores começam pela recusa do presidente em governar de acordo com o modelo institucional, mesmo na hipótese de adotar novos critérios de formação da coalizão, sem o “toma lá, dá cá” espúrio e sem corrupção.

Ele rejeita e antagoniza as condições institucionais do modelo político, por confundi-las com práticas de clientelismo e corrupção. Prefere governar como presidente minoritário e sem coalizão, negociando maiorias casuais e apelando à sua —declinante— base social para pressionar o Congresso. Agravam-se os problemas com sua preferência por uma agenda estreita, miúda, que representa apenas o núcleo minoritário dos que o elegeram.

O quadro de complicações se completa com um presidente de mentalidade autoritária, arroubos populistas, politicamente fraco, que usa os poderes presidenciais com imperícia e se rebela contra as decisões do Legislativo que lhe são contrárias.

Ele tem conseguido formar maiorias eventuais em algumas decisões econômicas, nas quais há maior convergência entre sua agenda e a da maioria do Congresso, principalmente por causa da gravidade da crise. Nenhum político quer ser responsabilizado pelo agravamento do quadro atual. O presidente, porém, tem perdido na sua pauta preferencial, de natureza comportamental e ideológica.

Nos memes, Bolsonaro já virou rainha da Inglaterra
Nos memes, Bolsonaro já virou rainha da Inglaterra – Reprodução

Ele se dedica com entusiasmo apenas à pequena política, aos temas miúdos, contidos em si mesmos. Foi o que praticou a vida toda como parlamentar. Nunca esteve no centro dos grandes debates constitucionais e institucionais, da macropolítica do desenvolvimento e da construção do futuro. Não parece disposto a mudar.

Presidente minoritário, em uma relação estressada com o Congresso, recusando-se a aceitar decisões dos parlamentares, preferindo governar por decretos, com imperícia e estreiteza de objetivos, convocando sua base social para pressionar as instituições republicanas, namora —para usar um termo do seu vocabulário— a instabilidade política.

Abre uma larga brecha para a iniciativa do Legislativo, transferindo para ele parte do poder de agenda.

Todavia, essa possibilidade de protagonismo do Legislativo tem problemas. No contexto de relações crispadas, como agora, a maior parte do ativismo legislativo tende a ser retaliatório. É o que tem ocorrido.
O protagonismo do Legislativo manifesta-se mais como crise do que como alternativa funcional. Pode permitir a aprovação de uma ou outra medida relevante, sob a pressão da crise socioeconômica, mas não é o suficiente para sustentar a governança do país.

No regime presidencialista, o eixo central do processo político é a Presidência —e o agente principal, o presidente. Apenas no parlamentarismo o Parlamento ocupa o centro do governo, tendo no primeiro-ministro seu agente principal.

A responsabilidade pelas políticas no presidencialismo é do presidente —e essa responsabilidade estrutura o jogo de expectativas, demandas e o cálculo estratégico dos demais agentes políticos. Para o Legislativo assumir a coordenação da gestão da agenda de políticas e assegurar a governabilidade, seria preciso transferir para ele a responsabilidade, o que demandaria a mudança de regime, de modelo político.

Congresso é hiperfragmentado e os partidos, na sua maioria, não têm consistência programática. O plenário, hoje, é dominado por numerosas siglas medianas. As dez maiores legendas na Câmara têm entre 29 e 54 cadeiras. Outras cinco, de 10 a 28 cadeiras. As seis restantes, de 4 a 8. No Senado, sete partidos têm entre 6 e 13. Nove têm de 1 a 4.

O Congresso é dividido por natureza. Só consegue unir-se em torno de mínimos denominadores comuns, ou após demorada construção de consenso social e político, estimulado pela convicção geral de que há uma emergência.

Ainda não há comprovação, por exemplo, de que exista consenso acerca da reforma da Previdência, para que seja aprovada sob a liderança e coordenação do presidente da Câmara. Não é do feitio do Legislativo, no presidencialismo de coalizão, tomar decisões que contrariem amplos setores da sociedade.

As bancadas não se dispõem a tomar medidas que possam desagradar suas bases eleitorais, muito diferenciadas entre si, sem incentivos adicionais. Os presidentes das Casas do Congresso não têm controle sobre o volume suficiente desses incentivos. Quem tem é o Executivo.

Como se espera que esse conjunto fracionado, dividido entre governistas, independentes e oposicionistas, exerça protagonismo na adoção de uma agenda tão controvertida? Ainda mais quando se vê que parte dos governistas não está solidamente alinhada às propostas do governo e, em muitos casos, defende posições distintas às do presidente.

O problema começou já na posse do novo governo. Ao decidir não formar uma coalizão, o presidente abriu mão do protagonismo decisório. Descartou a possibilidade de construir uma maioria negociada no Congresso e gerou paralisia decisória que afeta o desempenho de seu governo e, por decorrência, sua popularidade. Diante do impasse, passou a governar por decretos, inclusive para reintroduzir temas rejeitados pelo Congresso.

Fere a divisão constitucional entre os Poderes, extrapola os limites de suas atribuições legislativas e provoca a reiterada judicialização de suas decisões. É um caminho limítrofe ao autoritário, com vários riscos. O campo próprio na democracia constitucional para o embate entre governo e oposição é o Congresso. Ao voltar-se contra as regras do jogo, provoca inquietação, radicaliza a polarização e gera o perigo de instabilidade política e social.

A história registra muitos casos de mentalidades autoritárias no governo que buscam um pretexto crível para endurecer o regime. Não creio que seja esta a disposição consensual entre os que ocupam postos de comando na atual gestão.

Governando por decretos, Bolsonaro encontra rapidamente os limites constitucionais à decisão discricionária do presidente. Enfrenta bloqueios no Congresso. Boa parte dos decretos tende a ser judicializada, porque extrapola a competência constitucional da Presidência e pode receber o veto do Judiciário.

Suas atitudes agravam o impasse em que o país já se encontrava desde o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Os atritos com o Legislativo e o Judiciário aumentam aceleradamente o stress institucional.

Não vejo como o modelo político brasileiro possa transitar do presidencialismo de coalizão para um parlamentarismo voluntarista, a não ser em um perigoso processo de dissolução institucional. Algumas das derrotas recentes de Bolsonaro no Congresso tiveram natureza retaliatória.

O maior engessamento orçamentário, ampliando a faixa impositiva das liberações de recursos, buscou travar a discricionariedade do presidente na alocação das verbas, em retaliação à sua negativa de negociar politicamente.

As mudanças nas regras, sobretudo nos prazos, de exame das medidas provisórias limitaram ainda mais essa prerrogativa presidencial. Acopladas às alterações que já haviam sido feitas em períodos anteriores, dificultam muito a aprovação de MPs mais controvertidas, caso da maioria daquelas assinadas por Bolsonaro.

Aumentou a propensão no Legislativo a barrar decretos presidenciais que avançam sobre suas atribuições. A judicialização tornou-se outro fator de limitação do poder presidencial —e ele também tem reagido mal ao controle jurisdicional do STF.

Presidente politicamente fraco, minoritário, com relações atritivas com o Congresso, insistindo em uma agenda unilateral e pouco representativa da maioria eleitoral que eventualmente o elegeu, com a popularidade em queda, passa a exercer atração decrescente sobre as forças políticas. Elas tendem a se afastar do presidente e a gravitar em torno de outras lideranças, se este quadro persistir.

A transição provocada pela ruptura político-eleitoral está incompleta. Houve a quebra do quadro político-institucional anterior, mas não houve nem reforma, nem substituição do modelo político. Resta muito fio desencapado pelo caminho. Basta juntar três e se terá um curto-circuito institucional, capaz de comprometer a governabilidade.

O modelo político está em estado disfuncional, falhando serialmente. Algumas medidas mais técnicas ou de necessidade urgente, com pouca perda para as bases dos parlamentares, podem passar. Mas há paralisia crescente e áreas essenciais de governo estão totalmente inertes, sob comando inepto, sem base política, como a Educação.

Trata-se de uma situação premonitória de crises de governabilidade. A paralisia decisória encontra um quadro social e econômico desalentador. O país está com a economia parada. Tem mais chance de resvalar para a depressão do que para um reaquecimento suficiente para recobrar dinamismo sustentado e gerar mais conforto econômico para a população. Um governo que frustra as expectativas e uma economia que desalenta a maioria são ingredientes perigosos em qualquer lugar.

O avanço do populismo cesarista em várias democracias do mundo está associado à falta de respostas estruturais, funcionais, para os problemas criados por uma transição global radicalmente transformadora. Ela põe em xeque modelos de negócios e a eficácia representativa das democracias em sociedades fluidas, que mudam rapidamente, impulsionadas por forças sociais emergentes e pressionadas por forças sociais em declínio.

Mas o que parecia uma tendência avassaladora e durável está dando sinais de ser uma onda, que refluirá em algum momento. Já há indícios de que ela começa a regredir.

O avanço dos Verdes e o crescimento aquém do esperado dos ultranacionalistas no Parlamento europeu, a dupla derrota de Recep Tayyip Erdogan na eleição para a prefeitura de Istambul, na Turquia, são sinais prováveis desse início de refluxo.

E por que reflui? Porque essas lideranças apelam para a raiva, a decepção e o desencanto da maioria com a persistência dos problemas e a falta de representatividade da velha política. Não têm, todavia, soluções estruturais que de fato mitiguem os efeitos da transição e a tornem menos inóspita.

Ao contrário, medidas ultranacionalistas, radicalização nos costumes, rejeição aos imigrantes são contraproducentes. Reduzem as possibilidades de respostas que funcionem e aumentam o desconforto geral. No entanto, a decepção com o que parecia uma alternativa, uma novidade, amplifica o desgosto e afasta as pessoas da política. Pode ser o início de uma nova forma de alienação coletiva, um distúrbio da transição, que agrava a falta de opções políticas viáveis, democráticas e eficazes.

O Brasil foi alcançado por esta onda em um momento particularmente delicado. Vinha de uma recessão, cuja retomada foi abortada. Hoje, a economia está, como disse, parada. O desemprego, altíssimo. A renda real é insatisfatória para a maioria. A sensação de empobrecimento e a falta de perspectiva se generalizam.

O país vivia, além disso, um momento político grave, resultado da contrariedade magoada com as revelações e a condução da Lava Jato, que culminaram na prisão de Lula, e do atormentado processo de impeachment de Dilma Rousseff.

Abriram-se fissuras de difícil sutura no tecido social. O delicado quadro de uma nação na UTI, sofrendo de politraumatismo político-econômico severo, demandaria uma Presidência com acuidade cirúrgica e muita sensibilidade.

O caldo de ressentimentos que alimentou a campanha eleitoral, contudo, levou à escolha de um presidente sem habilidades para a mediação de conflitos e inapto para conduzir o país a uma recuperação tranquila. Adepto de terapias invasivas, agrava os traumas e prolonga a síndrome da transição.

Desta vez, o epicentro da crise política não é o Legislativo, é a Presidência. Há forças no ecossistema político-econômico que podem empurrar o país no rumo de uma recessão democrática. Pelo princípio da precaução, esse perigo não deve ser desprezado por ter baixa probabilidade de ocorrência.

É a partir da compreensão dos fatores de risco presentes no ambiente que podemos desenvolver práticas preventivas capazes de imunizar a democracia brasileira, preservar suas virtudes e corrigir suas falhas.


*É sociólogo, é autor dos livros “A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século XXI” e “Presidencialismo de Coalizão – Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro” (Companhia das Letras).

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Diálogo no Congresso Nacional pode ser substituído por bullying digital

Por Leonardo Sakamoto

Mais de 12 milhões de desempregados e 64 mil mortes violentas por ano, junto à incapacidade da política em encontrar soluções efetivas (inclusive para depurar a si mesma), alçaram o discurso da mudança ao papel de estrela das eleições. ”Discurso”, ressalte-se, não a mudança em si, porque a análise das propostas por trás dele, não raro, mostram saudades da estrutura social do Brasil Colônia.

Os brasileiros, com isso, decidiram renovar seu parlamento – 243 dos 513 deputados federais nunca ocuparam esse cargo, ou seja, 47,4% do total. Mais da metade dos deputados não se reelegeu. Grandes nomes envolvidos pela operação Lava Jato em casos de corrupção não se reelegeram, outros grandes nomes sim. Os partidos que mais perderam cadeiras foram o PSDB (-25) e MDB (-31), protagonistas do processo de impeachment de Dilma Rousseff e de escândalos. Há bons nomes eleitos pela primeira vez, da esquerda à direita, que prometem melhorar o debate político.

Aumentou de 10% para 15% o números de mulheres eleitas na Câmara dos Deputados, mas seguimos com uma porcentagem inferior à do Níger (17%), país com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. Ou seja, tudo deve ser visto em seu contexto.

Portanto, vale ressaltar que renovação não significa melhoria. Afinal, ao contrário do que ensina o filósofo Tiririca, pior do que está, ah, sim, fica. Em português claro: no fundo do poço pode ter um alçapão.

É uma ginastica mental tentar imaginar o que será do Congresso Nacional sem parte de seus principais articuladores do centro, centro-direita, que foi defenestrada pela população. A tendência natural do cidadão comum é entender a palavra ”articulador” como ”corrupto”, quando isso não é necessariamente verdade. Bem, é que no caso de muitos dos nobres parlamentares era sim.

Qualquer parlamento do mundo precisa de pessoas que conheçam bem as regras e leis e saibam fazer política, ou seja, dialogar muito, costurar saídas, levar um grupo a ceder aqui, o outro ceder ali e dialoguem com posições polarizadas A democracia é o cumprimento das decisões da maioria, desde que respeitada a dignidade da minoria. Ignorar isso no parlamento não apenas esgarça instituições, como pavimenta o caminho para um Estado autoritário. Este blog conversou com três deputados eleitos de diferentes partidos e colorações ideológicas para discutir esse cenário.

No Brasil de Michel Temer, tivemos um ensaio da quebra. Pautas do empresariado que deu suporte ao impeachment (Reforma Trabalhista e Lei da Terceirização Ampla) e do mercado (Emenda do Teto dos Gastos) foram enfiadas goela abaixo na Câmara e no Senado, sem o devido debate e sem possibilidade de tornar as mudanças mais palatáveis à população mais vulnerável. Mas, ainda assim, havia um mínimo de diálogo em muito articulado por nomes fortes do Congresso.

Sem articuladores que topem fazer pontes e não tenham preguiça de fazer política, abre-se a possibilidade da minoria viver em obstrução ou, a depender do presidente da Câmara que vier a ser eleito, dos regimentos da Câmara e do Senado serem rasgados todos os dias. O Supremo Tribunal Federal seria chamado, a todo o momento, para mediar a relação entre base governo e oposição –  o que seria péssimo.

E o que acontecerá se o diálogo for substituído por coação digital contínua? A pressão popular é e sempre foi legítima para influenciar no processo parlamentar, apesar da truculência com movimentos populares, como no dia 24 de maio de 2017, quando o governo despejou porrada, bomba e bala de borracha na Esplanada dos Ministérios. Abaixo-assinados e mensagens a parlamentares em nome de pautas importantes fazem parte das ferramentas do cidadão.

Mas qual será a reação se alguns deputados federais, senadores ou mesmo o chefe do Poder Executivo acharem que podem jogar seus seguidores para ameaçar parlamentares a cada nova proposta de seu interesse em trâmite no Congresso, usando WhatsApp e redes sociais? Aliás, não apenas seguidores, como também consultorias contratadas para entregar esse serviço, disparando dezena de milhares de mensagens por dia, que fazem parte desse ecossistema. O que acontece se alguém decidir exercer seu mandato usando o medo digital como arma?

A propaganda teve um papel fundamental para manter o controle do partido nazista sobre a Alemanha após sua ascensão ao poder por via eleitoral. Oitenta anos depois, a máquina de manipulação do debate público montada por Donald Trump em sua administração ajuda no suporte ao governo por parte de seus eleitores, anulando a influência de investigações e denúncias por parte da imprensa. Não somos nem a Alemanha da década de 1930, nem os Estados Unidos de hoje, com suas instituições em que freios e contrapesos funcionam melhor. O resultado, por aqui, é imprevisível.

Fala-se muito de um suposto aumento do poder das bancadas ruralista, do fundamentalismo religioso e corporativa de agentes da segurança pública – o chamado BBB, boi, bíblia e bala. É cedo, porém para afirmar que Jair Bolsonaro, se vier a ser eleito, conseguirá ignorar a negociação com os partidos tradicionais (e suas demandas) e tratar diretamente com as bancadas. Primeiro, por que não se sabe ainda o tamanho dessas bancadas – exceção à de segurança pública, as outras devem cair. Segundo, essas bancadas perderam nomes fortes, que sabiam operar no Congresso, especialmente a ruralista.

Claro que nomes são substituíveis. O deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN) e o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), relatores da Reforma Trabalhista, não se reelegeram. Marinho teve grandes doações eleitorais de donos de megaempresas, mesmo assim, naufragou. Enquanto isso, Ronaldo Nogueira (PTB-RS), ex-ministro do Trabalho, que apoiou a reforma e ficou marcado por aprovar uma portaria que enfraquecia o combate ao trabalho escravo, dificultando a libertação de trabalhadores, também não se reelegeu à Câmara. Fizeram o serviço ao empresariado, mas outros ocuparão seus lugares. O mesmo não se pode dizer de parlamentares que estava há muito tempo e faziam essas pontes.

Não eram grandes articuladores. Apenas as pessoas úteis na hora certa.

Contudo, falar para seguidores nas redes sociais é bem diferente de liderar articulações no Congresso Nacional.

Em entrevista a Carla Jiménez, do El País, o professor Fernando Limongi, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e do Núcleo de Instituições Políticas e Eleições, lembrou que muita gente não exerce força porque não sabe ou não gosta de conversar e fazer política. ”O que fez do Eduardo Cunha aquela pessoa imensamente poderosa? A capacidade de conhecer aquilo, como aquilo funciona. O cara era uma máquina. Sabe tudo, tinha controle sobre absolutamente tudo, com três celulares. Não é coisa para amador. Tem um voluntarismo bobo que tomou conta da juventude e empresários. De que tudo com boa vontade se resolve… as pessoas entram em conflito.”

O Congresso Nacional é o local para que conflitos sejam resolvidos dentro de regras, onde saídas são costuradas, evitando assim que diferentes grupos sociais entrem em embate direto no resto do país. Nosso parlamento é uma tragédia que não funciona bem, mas nem por isso é justificativa para ser subvertido – ruim com ele, pior sem. Se o diálogo for interditado pela falta de articulação ou por conta do medo e da perseguição, haverá descontentamento dos grupos cujos representantes forem ignorados no parlamento. E, dependendo de quem estiver nos governos federal e estaduais, diante dos protestos consequentes, virá pesada repressão do poder público. Isso é óbvio para quem sabe fazer política, mas obscuro para quem prefere o atalho do assédio, do bullying, da ameaça.

Para muitos analistas, seria difícil aparecer uma legislatura tão complicada quanto esta que termina no começo do ano. A experiência, essa sábia senhora, pede, contudo, que se espere até o 2019 antes de avaliações tão cheias de certeza.