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Fiscalização resgata trinta trabalhadores em condição análoga à escravidão no interior do RN

O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), coordenado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) encontrou, em inspeções realizadas em cidades próximas à região de Mossoró trinta trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão.

De acordo com dados do GEFM, os trinta trabalhadores foram resgatados em razão das péssimas condições de trabalho, vida e moradia encontradas. Parte deles estava alojada em barracos de lonas e outros em barracos de madeira; alguns pernoitavam em alpendres improvisados e a grande maioria ficavam no meio do mato, embaixo de árvores de qualquer forma, todos os locais disponibilizados não apresentavam condições de habitabilidade e conforto e desrespeitava frontalmente a dignidade dos trabalhadores.

Foram fiscalizadas ao todo, dez estabelecimentos, sendo duas frentes de trabalho de carnaúba, localizadas na cidade de Upanema; uma pedreira, na cidade de Felipe Guerra; duas salinas, na cidade de Grossos; e, ainda, quatro caieiras, na cidade de Governador Dix Sept Rosado.  Em quatro estabelecimentos fiscalizados foram constatados trabalhadores sujeitos à condição análoga a de escravos.

Segundo os dados apurados, não eram fornecidas camas, os trabalhadores dispunham de redes que trouxeram de suas casas, também não dispunham de armários. Nos locais encontrados ou nas frentes de serviços, não havia instalação sanitária, chuveiro, lavatório ou lavanderias; as necessidades fisiológicas eram feitas no mato. Não havia local para o preparo, guarda e cozimento dos alimentos, tampouco local adequado para a tomada de refeições. Não fora disponibilizada água potável para o consumo.

O GEFM  destaca que não foram tomadas medidas básicas e cuidados visando à Segurança e Saúde dos Trabalhadores,  como:  realização de exame médico admissional; ausência de material de primeiros socorros; falta de equipamento de proteção individual.

Além dos 30 trabalhadores em situação análoga à escravidão ainda foram flagrados ainda mais 35 trabalhadores que estavam sem o registro em carteira de trabalho.

A coordenadora do GEFM, a auditora-fiscal do trabalho Gislene Stacholski, informou que os responsáveis foram notificados a regularizar o vínculo dos trabalhos irregulares encontrados,  quitar as verbas rescisórias dos empregados resgatados, recolher o FGTS e as contribuições sociais previstas de todos os trabalhadores. Segundo ela, ontem e hoje já foram realizados parte dos pagamentos das verbas rescisórias dos trinta trabalhadores, em um montante que chega a aproximadamente R$ 70.000,00.

Os trinta empregados resgatados terão direito a três parcelas de seguro-desemprego especial de trabalhador resgatado e foram encaminhados ao órgão municipal de assistência social de suas cidades, para atendimento prioritário aos trabalhadores resgatados.

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Foro de Moscow

Foro de Moscow 1 fev 2022 – O pastor que abusou e escravizou a empregada em Mossoró

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Vidas negras importam. A luta contra o racismo nos EUA em plena pandemia

Por Robério Paulino*

A morte de George Floyd, um homem negro asfixiado até a morte por um policial branco em Minneapolis, desencadeou uma onda de protestos contra o racismo nos EUA e em todo o mundo em plena pandemia da COVID-19.  O fato revelou mais uma vez o racismo estrutural contra negros, indígenas e latinos na sociedade norte-americana, especialmente contra os primeiros. Mesmo correndo o risco de contaminação e arriscando suas vidas, milhares de manifestantes, especialmente jovens, resolveram não deixar passar em vão aquele fato bárbaro e foram às ruas protestar em dezenas de cidades de todo o país.

As polícias e a Guarda Nacional prenderam milhares de manifestantes, os governos decretaram toque de recolher. Mas não adiantou; os manifestantes desafiaram os decretos e não saíram das ruas por quase duas semanas. Ocorreram também diversas manifestações na Europa e até no Japão. Os portuários da Costa Oeste do país resolveram parar em solidariedade aos manifestantes.

O assassinato e as manifestações mostram que o racismo continua forte e latente nos EUA e em muitos países e que a luta contra ele será um dos pontos mais importantes da agenda do século XXI. Revelaram também, mais uma vez, a extrema brutalidade dos corpos policiais, como braços armados dos Estados capitalistas. A força das manifestações forçou alguns governos estaduais e municipais daquele país a anunciar mudanças nas estruturas e no treinamento das polícias, até mesmo sua dissolução, como resposta às demandas dos milhares de manifestantes que foram às ruas.

A reação dos manifestantes surpreendeu a muitos, gerou perplexidade, até porque ocorreram em plena pandemia. Mas elas são fundamentais para nos fazer lembrar como, apesar de toda tecnologia, dos grandes avanços científicos, do acesso sem precedentes à informação que integra todo o mundo, da mundialização da economia, com integração cada vez maior dos países e povos, a humanidade ainda não se livrou de práticas tão antigas e degradantes, como o racismo, em pleno século XXI. O fato é que, seja nos EUA, na Europa ou Brasil, a discriminação racial continua como uma profunda marca das sociedades.

O debate se ampliou e as manifestações fizeram com que os EUA e o mundo entrassem numa discussão sobre a origem do racismo na Idade Moderna, questionando o próprio processo de colonização dos europeus sobre o mundo e as profundas marcas que ele deixou. Em Bristol, na Inglaterra, a estátua de um comerciante de escravos foi derrubada e jogada em um rio da cidade pelos manifestantes.

Nos EUA, a estátua de Cristóvão Colombo, um patrimônio simbólico do país – navegador que iniciou as expedições às Américas há mais de cinco séculos e a colonização que matou milhões de indígenas – também se tornou um alvo dos manifestantes e precisa ser protegida pela polícia. No Brasil, a estátua de Borba Gato, um bandeirante – na verdade um caçador de escravos fugidios e matador de índios -, na Zona Sul de São Paulo, entrou no radar dos movimentos e precisa ser vigiada no momento.

No Brasil, para alguns, pretensamente, o racismo seria mais arrefecido, pela maior miscigenação ocorrida por aqui e talvez pelo suposto caráter mais “cordial” da elite escravocrata brasileira, como cunhou Sérgio Buarque de Holanda (1995). Para outros autores, essa pretensa cordialidade revelava apenas a debilidade da aristocracia rural brasileira no mundo. A discriminação racial também segue até hoje como uma das marcas mais profundas da sociedade, sendo apenas mais disfarçada.  O Brasil foi de longe a colônia que mais recebeu escravos nas Américas, quase 8 vezes mais que toda a América Britânica e os EUA juntos, como pode ser visto na tabela abaixo, extraída de Luis Felipe de Alencastro (2000).

Outros milhões morreram na travessia do Atlântico. Quando ficavam doentes, os escravos eram cruelmente jogados ainda vivos em pleno mar, para não contaminar a “carga”, sem qualquer chance de sobrevivência, como mostrou Steven Spielberg numa cena do filme Amistad. Lembremos também que no Brasil as polícias matam muitas vezes mais que nos EUA ou na Europa.

O fato é que, apesar de todos os avanços conseguidos desde o fim da escravidão nas Américas, o racismo segue sendo um dos traços estruturais em muitas sociedades e no Brasil. A violência policial não é o único fator que atinge os negros. Eles seguem com os empregos de menores salários e piores condições de trabalho, como se pode ver na composição da categoria dos garis. Moram mais nas periferias carentes das cidades, com infraestrutura de serviços deficientes, como as comunidades ou favelas.

Apesar de terem avançado em sua presença nas universidades nas últimas décadas, com as políticas de ação afirmativa, os negros ainda são absoluta minoria nos cursos mais disputados nas universidades, como Medicina e Engenharia.

É preciso relembrar que a escravidão não é uma questão apenas de raça. Foi um artifício usado pelo capitalismo nos primeiros séculos da Era Moderna. Não decorreu de maldade de um povo de uma cor sobre outro, mas de interesses econômicos poderosos, ainda que seja evidente que os brancos se beneficiaram dela. O capital também não se importou em explorar milhões de trabalhadores brancos europeus em suas fábricas, com salários miseráveis e condições de trabalho degradantes, ainda que os trabalhadores fabris fossem considerados “livres”, diferentemente dos escravos.

Antes de recorrerem à escravidão negra africana, os colonizadores europeus na América também tentaram escravizar os indígenas em suas fazendas. Mas como esses estavam em seu próprio território, resistiam a serem escravizados e se evadiam com mais facilidade, o capital recorreu à escravidão negra, já que os negros foram arrancados de suas terras na África e jogados num ambiente estranho, portanto hostil, tendo por isso tinham mais dificuldade em fugir. Assim mesmo, há exemplos heroicos de evasão, resistência e luta, como o Quilombo dos Palmares, do qual visitei o sítio há alguns anos. Em 2019, visitei também o Museu da Escravidão, em Liverpool, no qual se mostra todo sofrimento, mas também a epopeia que foi a luta dos negros contra a escravidão e por igualdade nesses últimos séculos.

Por um lado, o assassinato de George Floyd nos choca, deprime, revolta e nos faz pensar sobre quanto de brutalidade, desigualdade e violência ainda existem nas sociedades divididas em classes sociais, como o capitalismo. Por outro, a reação contra tal barbaridade, não só nos EUA, mas em todo o mundo, nos traz ânimo e nos faz acreditar nas reservas morais que ainda tem a humanidade.  O fato de termos visto um grande contingente de jovens brancos lutando ombro a ombro com jovens negros contra o racismo, enfrentando as polícias, é um dado que nos alenta, nos empolga e enche o coração de esperança. A humanidade tem futuro, apesar de tudo.

A diferença da cor da pele é apenas um detalhe biológico, uma adaptação à latitude dos locais onde viveram os diferentes povos inicialmente, ou seja, uma adaptação à maior ou menor incidência do Sol. Mas todos os ancestrais do sapiens saímos do leste da África há 70 mil anos para colonizar o planeta.

O Brasil é o país com o maior contingente negro das Américas. Isto reafirma mais que nunca a necessidade de políticas afirmativas de promoção da igualdade também por aqui, como as cotas nas universidades e no ingresso ao serviço público. O caso George Floyd e as manifestações que dele decorreram deve nos levar a refletir sobre quanto ainda é necessário avançar no combate ao racismo, a todo tipo de discriminação, desigualdade e violência em nosso país. O mundo está mudando e também precisamos avançar.

É professor da UFRN, no Departamento de Políticas Públicas, Natal.

REFERÊNCIAS

ALENCASTRO, Luiz Felipe de, O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. (26ª edição) São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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Extra! Já estão usando até a escravidão para dinamitar cláusula pétrea

Por Lenio Luiz Streck 

Abstract: Para Cristovam Buarque, vai um trecho de Rei Lear, de Shakespeare: “Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”.

Há um conceito novo na praça. Muniz Sodré, em belo artigo na Folha de S.Paulo, conta-nos: “A distopia televisiva Years and Years (HBO), onde o mundo parece posto de cabeça para baixo, é amostra curiosa de um fenômeno ainda em busca de interpretação, que escolhemos designar como sociedade incivil”. Tempos de raiva, de anti-intelectualismo e quejandos.

Um bom exemplo dessa incivilidade foi o Twitter do ex-senador Cristovam Buarque sobre cláusulas pétreas, que bem demonstra o buraco em que estamos metidos:

“Perguntas brasileiras: e se nossa primeira Constituição tivesse colocado a propriedade de escravos como cláusula pétrea, por sua importância fundamental na economia da época?”

Sim, ele postou isso. Mas não é o primeiro e nem o único. Grupos de WhatsApp — as novas células terroristas das neocavernas — disseminam esse tipo de asneira ofensiva. Não me surpreende que Cristovam não tenha sido reeleito. Manchou sua história como professor. Que feio. A resposta ao ex-senador veio fulminante, pela voz do advogado Silvio Almeida: “Senador, sinto-me, como negro que sou, profundamente ofendido com sua comparação ridícula, sem sentido e desrespeitosa. O senhor tornou-se um homem triste e vulgar. Que a história trate de colocá-lo em seu devido lugar”. Amém, Silvio. And I rest my case.

Eis uma boa amostra destes tempos de incivilidade, em que um professor, ex-senador, ex-governador, diz uma barbaridade destas. Ele não deve ter amigos ou alguém em casa que o aconselhe. Será que não tem nenhum parente que tenha estudado Direito ou que tenha lido algum livro de Direito Constitucional? Mesmo um livro de Direito Constitucional facilitado ensinaria ao ex-senador (e aos outros disseminadores dessa nesciedade).

Sigo. O Brasil deve ser o único país do mundo em que as garantias constitucionais e processuais são vistas como inimigas. Pior: quem dissemina mais essa lenda é gente da comunidade jurídica.

Veja-se a reação raivosa dessa gente ao julgamento do Supremo no caso das ADCs. Uma advogada do RS disse que os filhos e filhas dos ordinários ministros deveriam ser estuprados. Outros posts em Twitter e Facebook incentivam o ódio. Gente do direito — e alguns do parlamento — pedindo que o STF seja fechado. Gente do MP pró-sociedade fazendo uma ode ao uso desmesurado do meio ambiente para fazer a felicidade de cada pessoa, afora outras coisas desse quilate (ver meu MP Pró-sociedade chama Lei do Abuso de Lei do Bandido Feliz). Eis o paradigma da incivilidade.

Ao lado disso tudo, o exercício da advocacia tem se transformado em uma corrida de obstáculos. Tem de matar dois leões por dia, desviar das antas, cruzar por um fosso de jacarés, beijar um leão e, ainda por cima, cuidar para não ser esnobado pelo meirinho.

Bom, esse é o trivial do cotidiano pelo qual passam centenas de milhares de causídicos. Mas, nos últimos anos, há um fenômeno novo, o da criminalização da advocacia. Advogados que fazem pareceres como procuradores de município ou autarquias são enquadrados como criminosos e, quiçá, membros de orcrim.

Escritórios são violados. Constantemente a OAB tem de recorrer ao STF — e tenho sido protagonista em alguns casos por indicação do Conselho Federal da OAB —, buscando medidas, especialmente reclamações, para proteger o exercício da profissão. Chegamos a esse ponto.

Eis a tempestade perfeita: juíza mede o tamanho das saias das advogadas, o que demonstra, simbolicamente, o grau de autoritarismo que se encalacrou nas instituições. Advogados são pressionados para que seus clientes façam delação. Advogados são vetados em delações. Querem alterar até o conceito de coisa julgada, afogando Liebman no rio de história.

Sobre tudo isso temos de refletir. Agora mesmo há um movimento nacional — até com passeatas em ruas e praças — pela aprovação de Emenda(s) Constitucional para alterar o julgado do STF nas ADC 43, 44 e 54. Vi um ex-senador do RS falando, efusivamente, que o parlamento deve salvar o país (leia-se: para ele, só com a alteração da Constituição é que poderemos livrar o país da impunidade proporcionada pelo STF). Nem vou falar de deputados boquirrotos que dizem barbaridades e depois pedem desculpas, prática, aliás, muito comum nesta terra patrimonialista. Faz o mal… e pede desculpas. Já propus até que se ampliasse o artigo do Código Penal que trata das exclusões de ilicitude: “o pedido de desculpas”.

Um ponto em comum na maioria (falei maioria) das manifestações bizarras e reacionárias: elas vêm de gente (de)formada em… Direito. Sim, o Direito é locus privilegiado do reacionarismo. As faculdades estão formando reacionários e aprendizes de fascistas. As ofensas maiores que recebo por defender as garantias constitucionais vem de gente da área do… Direito. Claro. Não me admira que 57% da população que não toma vacina age desse modo porque se informa em células terroristas de WhatsApp. E, é claro, 25% das pessoas acreditam que Adão e Eva existiram.

O terraplanismo jurídico venceu. Bom, para um país em que os alunos já não levam livros para aula e ficam conferindo o que o professor diz revirando a Wikipédia, o que mais pode nos surpreender? Ninguém se operaria com um médico que estudou por livros do tipo “cirurgia cardíaca mastigada”, pois não? Mas no Direito tudo pode. Resumos, resuminhos, mastigados. Viva o macete. Depois dá nisso que estamos vivendo. O sonho de parte da comunidade jurídica é fechar o STF e prender o réu já em primeiro grau. E suspender a garantia de habeas corpus. E permitir uso de prova ilícita de boa-fé (como, aliás, constou no pacote de Dallagnol). O que houve com a comunidade jurídica?

Do jeito que vai a coisa, o símbolo da justiça — a balança — será substituída por um ovo, que é o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, que dá às palavras o sentido que quer.

Por isso, coisa julgada é… aquilo que quero; cláusula pétrea é cláusula dúctil, fofinha… com a qual se pode dizer qualquer bobagem e fazer qualquer tipo de comparação hedionda. E assim por diante.

*É é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.

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Reportagem

No fim do império, Brasil tentou substituir escravo negro por ‘semiescravo’ chinês

Por Ricardo Westin

Poder 360

Dois marcos das relações entre o Brasil e a China fazem aniversário. O rompimento dos laços diplomáticas completa 70 anos —em 1949, a revolução comunista liderada por Mao Tse-Tung levou o presidente Eurico Gaspar Dutra a cortar a ligação com o país asiático. O reatamento, por sua vez, completa 45 anos— em 1974, o presidente Ernesto Geisel passou por cima das divergências ideológicas e restabeleceu os contatos oficiais com Pequim.

Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que as relações entre os dois países remontam à época de dom Pedro II. Em 1880, o governo imperial enviou diplomatas ao outro lado do mundo para assinar um tratado bilateral por meio do qual o Brasil esperava substituir os escravos negros por “semiescravos” chineses.

Nesse momento, a escravidão dá claros sinais de que está com os dias contados. Desde 1850, a Lei Eusébio de Queirós proíbe o tráfico de africanos. Desde 1871, a Lei do Ventre Livre garante a liberdade aos bebês nascidos de escravas. Nesse contexto de mudança, os fazendeiros do Império, temendo que o encolhimento da mão de obra leve a lavoura de café ao colapso, pensam nos “chins” como solução.

“O trabalhador chim, além de ter força muscular, é sóbrio, laborioso, paciente, cuidadoso e inteligente mesmo”, argumenta no Senado, em 1879, o primeiro-ministro Cansanção de Sinimbu. “Por sua frugalidade e hábitos de poupança, é o trabalhador que pode exigir menor salário. Assim, deixa maior soma de lucros àquele que o tem a seu serviço. É essa precisamente uma das razões por que devemos desejá-lo para o nosso país”.

O primeiro-ministro tenta convencer os senadores a aprovar a liberação das verbas necessárias para o envio de uma missão diplomática à China para negociar o tratado. A escassez de braços na lavoura preocupa o governo porque o café para a exportação é a maior fonte de renda do Brasil.

Escravos negros em terreiro de café de fazenda no Vale do ParaíbaFoto: Marc Ferrez

A viagem que os diplomatas teriam que fazer seria bem longa, a bordo de um navio de guerra da Marinha, o que demandaria dos cofres imperiais 120 contos de réis. Não é pouco dinheiro. O valor é igual aos orçamentos somados da Biblioteca Pública, do Observatório Astronômico, do Liceu de Artes e Ofícios, da Imperial Academia de Medicina e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para todo o ano de 1879.

Os chineses, como avisa Sinimbu, seriam assalariados. Na prática, contudo, o que os fazendeiros brasileiros desejam é reproduzir a experiência de países como Estados Unidos, Cuba e Peru, que vêm explorando os chineses de uma forma tal — com pagamentos irrisórios, jornadas extenuantes, ambientes insalubres e castigos físicos — que os trabalhadores ficam na tênue fronteira entre a liberdade e a escravidão.

Levas de trabalhadores abandonam o império chinês, entre outras razões, por causa da superpopulação (370 milhões de habitantes, contra 10 milhões no Brasil), da escassez de alimentos e da crise decorrente da derrota nas Guerras do Ópio.

No Brasil, nem todos recebem bem a ideia da imigração chinesa. Parte da sociedade sente temor e repulsa diante da possibilidade de encontrar homens de olhos puxados, cabelos trançados a partir da nuca e roupas exóticas transitando pela fazendas e cidades do Império.

Reverberando o pensamento desse grupo, há senadores e deputados que se manifestam contra a celebração do tratado com a China. O Arquivo do Senado preserva os discursos proferidos a esse respeito no Parlamento. Muitos deles são abertamente racistas e xenófobos.

Camponês do norte da Chinafoto: Library of Congress

“Senhores, não sei que fatalidade persegue este Império, digno de melhor sorte: ou há ter africanos, ou há de ter chins?”, critica o senador Dantas (AL). “Li numa memória acerca da colonização chim que diz ser essa uma raça porca que muda de roupa só duas vezes ao ano. Pois, quando as nossas leis estabelecem prêmios àqueles que trouxerem para o Império boas raças de animais, tratam de mandar buscar rabichos e caricaturas de humanidade?”.

“Depois de tantos anos de independência e de estarmos mais ilustrados a respeito da marcha dos negócios do mundo, havemos agora de voltar atrás e introduzir nova raça, cheia de vícios, de físico amesquinhado, de moral abatido, que não tem nada de comum aqui e não tem em vista formar uma pátria e um futuro? Havemos de introduzir semelhante raça somente para termos daqui a alguns anos um pouco mais de café?”, questiona o senador Junqueira (BA).

“Venham muitos chins, para morrerem aos centos, aos milhares”, ironiza o senador Escragnolle Taunay (SC). “Deles, ficará apenas o trabalho explorado pelos espertalhões. É um trabalho que se funda na miséria de quem o pratica e no abuso de quem o desfruta. Que erro colossal! Que cegueira!”.

Para Taunay, é difícil que os fazendeiros consigam se adaptar aos asiáticos: “Acostumado à convivência branda e amistosa dos antigos escravos brasileiros, fazendeiro nenhum será capaz de suportar o contato dos chins. Seus vícios se exacerbam com o uso detestável e enervante do ópio. Só o cheiro que os chins exalam bastará para afugentar o fazendeiro mais recalcitrante”.

Trabalhadores chineses da região da Manchúriafoto: Library of Congress

Nessa época, estão em voga no mundo ideias racistas disfarçadas de teorias científicas. Segundo o racismo pseudocientífico, os brancos formam a raça superior e os negros, a raça inferior. No meio deles, como raça intermediária, surgem os amarelos ou orientais. Entre os teóricos da hierarquização das raças, estão Arthur de Gobineau, Ernest Renan e Gustave Le Bon. Gobineau, diplomata francês que serviu no Rio de Janeiro, concluiu que o Brasil era um país atrasado por causa da miscigenação entre brancos e negros.

“A ciência da biologia ensina que, nesses cruzamentos de raças tão diferentes, o elemento inferior vicia e faz degenerar o superior”, diz o senador Visconde do Rio Branco (MT), alertando os colegas para o “perigo amarelo”.

De acordo com o historiador Rogério Dezem, professor do Departamento de História e Cultura Brasileira da Universidade de Osaka, no Japão, o preconceito dos brasileiros tinha origem nos Estados Unidos, onde os trabalhadores chineses haviam chegado décadas antes e eram odiados — mas não por questões de raça, e sim de mercado de trabalho:

“Na construção de ferrovias nos Estados Unidos, por exemplo, sempre que os imigrantes europeus faziam greve exigindo melhores salários e condições de trabalho, os patrões recorriam aos chineses, que aceitavam pagamentos mais baixos para dar continuidade ao serviço interrompido. Era uma espécie de concorrência desleal. Os chineses, então, começaram a ser odiados, e surgiu a história de que eram sub-raça, degenerados, perigosos. O governo americano, diante das pressões, chegou a proibir a entrada de novas levas de imigrantes chineses. Esse mesmo ódio acabou chegando ao Brasil, principalmente por meio da imprensa, e aqui eles logo passaram a ser vistos como sujos, ladrões de galinha, viciados em ópio. Foi uma visão deturpada que se instalou no inconsciente coletivo dos brasileiros”.

Revista reforça imagem negativa de imigrantes chinesesimagem: Biblioteca Nacional

Em 1878, o governo brasileiro organiza o Congresso Agrícola, no Rio de Janeiro, para discutir os rumos da cafeicultura diante do iminente fim da escravidão. O sonho dos fazendeiros é substituir os escravos negros por trabalhadores originários da Europa. As equivocadas teorias racistas levam à crença de que, para o bem do país, é necessário “embranquecer” a população brasileira.

“Formar uma raça que seja varonil e tenha grande desenvolvimento e expansão é hoje uma questão que está ocupando os estadistas em toda parte do mundo. Devemos, pois, garantir o futuro do país por meio do trabalho de raças inteligentes, robustas e cristãs”, afirma, no Senado, o senador Junqueira.

Até mesmo o deputado Joaquim Nabuco (PE), expoente da luta pela abolição da escravidão negra, usa a tribuna da Câmara para apontar os inúmeros “defeitos” que fazem dos chineses uma raça inconveniente para o Brasil. Nabuco diz temer a “mongolização” do país e uma “segunda edição da escravatura, pior que a primeira”.

A lavoura não poderia passar a ser cultivada por camponeses brasileiros, em vez de se recorrer a imigrantes europeus ou chineses? Segundo Kamila Czepula, historiadora e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), os cafeicultores descartaram a mão de obra nacional logo de cara:

“A respeito dos brasileiros brancos, corria a ideia de que eram preguiçosos, pouco propensos ao trabalho. Também se dizia que cobrariam valores altos demais para o trabalho na lavoura. Os negros livres, os mestiços e os índios também estavam fora de cogitação porque eram sinônimo de atraso e de inferioridade racial. Os imigrantes europeus eram tidos como os tipos ideais. Além de serem brancos e católicos, considerava-se que eles já estavam preparados para o trabalho assalariado”.

Charges retratam chineses: no campo, ameaça à lavoura; na cidade, ladrões de galinhaimagens: Biblioteca Nacional

Italianos, espanhóis e portugueses, contudo, não se animam a se mudar para o Brasil. Eles temem o calor sufocante dos trópicos e o chicote dos feitores das fazendas. Além disso, desejam possuir terra própria, o que a estrutura fundiária do Império não permite. Assim, preferem migrar para os Estados Unidos e a Argentina.

Diante da dificuldade de trazer braços da Europa, o Congresso Agrícola traça um plano B: espalhar “semiescravos” chineses pelas plantações de café. A ideia é que sejam utilizados provisoriamente, até os europeus mudarem de ideia e começarem a vir para o Brasil.

Um dos primeiros parlamentares a defender a contratação dos chineses para substituir os escravos de origem africana, ainda na década de 1850, é o senador Visconde de Albuquerque (PE). Ele discursa:

“Se queremos nos desembaraçar dos escravos, por que havemos de rejeitar homens industriosos que não têm o orgulho europeu, que podem facilitar esse salto entre a escravidão e a liberdade? Senhores, já estive na China e conheço bem os chins. Dizem que são porcos, e eu não conheço povo mais asseado. Eles poderão estar com as suas vestes sujas, mas o seu corpo é lavado e esfregado todos os dias”.

Chineses que participaram da construção da Ferrovia Transcontinental, nos EUAfoto: Amon Carter Museum of American Art

Até mesmo os defensores da imigração asiática acabam recorrendo a argumentos pouco lisonjeiros para os chineses. O senador Visconde de Albuquerque prossegue:

“Dizem que os chins vêm amesquinhar a nossa raça, mas não estão aí os nossos índios? Qual de nós não gosta muito de ter um desses índios para o seu serviço? E isso piora a nossa raça? Vejam que tememos raça chim e não tememos a raça preta! Os chins não nos vêm perturbar a ordem doméstica. Pelo contrário, são muito humildes, servem muito, trabalham. São até excelentes cozinheiros. Não são revolucionários, não têm pretensões. Acho que é uma boa importação”.

O senador Cândido Mendes de Almeida (MA) acrescenta: “São sóbrios, infatigáveis e econômicos. Sendo materialistas, só visam o lucro. Além de materialistas, são educados sob o regime autoritário o mais severo que lhes impõe desde o nascer. É com esse espírito de ordem que trabalham”.

Em discurso no Senado, o primeiro-ministro Cansanção de Sinimbu procura tranquilizar o Império garantindo que não há risco de “abastardamento das raças” do Brasil porque os chineses não ficarão para sempre aqui:

“Ainda que venha grande número de trabalhadores asiáticos, é manifesto que eles nutrem sempre a intenção de voltar para o seu país. Eles levam tão longe o amor ao solo da pátria, que nos contratos que costumam celebrar até estipulam que os seus cadáveres serão remetidos para a terra natal. Isso prova que não é de prever que queiram fixar-se definitivamente entre nós”.

Após muitas discussões, o Senado e a Câmara aprovam em 1879 a liberação dos 120 contos de réis para que a missão diplomática vá à China. Em 1880, pela primeira vez, um navio brasileiro chega ao outro lado do mundo e, meses depois, retorna ao Rio de Janeiro e completa a volta no planeta.

Primeira vez que navio brasileiro faz volta ao mundoDivulgação/Agência Senado

Na cidade de Tientsin (hoje Tianjin), nos arredores de Pequim, os diplomatas brasileiros negociam com o vice-rei Li Hung Chang. Quando ouve que o Brasil tem apenas 58 anos como nação independente, ele demonstra assombro e conta que seu império existe há 4 mil anos.

O grande empecilho para a migração de chineses para o Brasil é uma lei local que os proíbe de deixar o seu país sem o consentimento do imperador. Como quem não quer nada, os diplomatas brasileiros incluem na minuta de tratado um genérico artigo que dá aos “chins” o direito de viajarem livremente para o Brasil. Durante as negociações, os enviados de dom Pedro II nunca vão revelar suas verdeiras intenções. Eles juram que buscam apenas a amizade do império asiático.

Traumatizado pelo histórico de violências sofridas pelos súditos chineses nas Américas, o vice-rei reluta em assinar o acordo com o Brasil, mas acaba cedendo. Após vários meses de negociação, a versão final do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação é finalmente assinada em 1881, garantindo o livre trânsito de cidadãos entre os dois impérios. É uma vitória da diplomacia brasileira. Um consulado se instala em Xangai.

O vice-rei Li Hung Chang, que firmou o acordofoto: Russell & Sons

No início de 1882, dom Pedro II profere a fala do trono (discurso que abre os trabalhos do Senado e da Câmara) sem fazer nenhuma menção ao tratado com a China. Os fazendeiros entendem a mensagem: o governo não gastará mais nenhum centavo; se quiserem os “chins”, que os busquem com seu próprio dinheiro.

Um comerciante chinês chega a desembarcar no Rio de Janeiro para tratar do transporte dos trabalhadores, mas vai embora sem fechar nenhum negócio. A maledicência contra os orientais acabou deixando muitos fazendeiros com um pé atrás. Além disso, a própria China não tem interesse em mandar gente para o Brasil. Logo em seguida, começa a imigração italiana. A solução chinesa é, assim, abandonada sem que os trabalhadores de fato venham para o Brasil.

Em 1884, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Soares Brandão, vai ao Senado para informar a quantas anda a execução do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação assinado três anos antes. Não há muito a dizer. Constrangido, ele afirma: “Pela primeira vez, um navio de guerra brasileiro penetrou nos mares da China e do Japão, mostrando nossa gloriosa bandeira aos governos e povos daquelas regiões”.

Um senador quer saber o que tem feito o recém-nomeado cônsul em Xangai. O ministro responde: “Mas que serviço prestar na China? Quero crer que no futuro possa haver relações que venham demonstrar que não são de todo destituídos de vantagem e conveniência os serviços de um cônsul na China”.

Ele nem imagina que, mais de um século depois, a China se transformará numa potência econômica mundial e será o maior investidor estrangeiro no Brasil.

Reportagem e edição: Ricardo Westin
Pesquisa histórica: Arquivo do Senado
Edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Infográfico: Aguinaldo Abreu
Foto da Capa: Library of Congress
Fonte: Agência Senado
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Carta

Lembrar a escravidão negra transatlântica para que nunca mais aconteça: o Museu Internacional da Escravidão em Liverpool

A função da educação é ensinar a pessoa a pensar intensamente e a pensar criticamente. Inteligência mais caráter – esse é o objetivo da verdadeira educação.

Martin Luther King Jr.

Estamos no ano 1630 no Brasil. Ele tem apenas 15 anos, mas já trabalha duro de sol a sol como escravo nas lavouras de cana de açúcar sob vigilância de cruéis capatazes, em um engenho na capitania que seria depois o atual estado de Pernambuco. Sua jornada de trabalho é intensa, extenuante, a alimentação muito rala e, nas quentes e superlotadas senzalas, as condições de moradia são degradantes. As mortes são tão frequentes que pouco geram choro, mas antes um misto de resignação e revolta. Como Olaudah Equiano uns 100 anos depois, um dos líderes da luta pelo fim da escravidão na Inglaterra, ele também chegara à América ainda criança, com sua mãe, mas logo dela foi separado, ao ser vendido para outro engenho, e provavelmente nunca mais a verá.

No navio negreiro que os arrancou da África que nunca mais veria, viu um primo seu ser jogado ao mar ainda vivo, por estar doente, para não contaminar o restante da “carga”. Eventualmente, outros que se rebelassem contra a tripulação podiam ter a mesma sorte, como castigo, para dar exemplo aos demais do preço da desobediência. Nesses momentos, a maioria dos cativos acorrentados chorava, protestava ou clamava por clemência contra aquela atrocidade, sem sucesso, rangendo os dentes de justo ódio enquanto eram levados de volta ao porão e o navio se afastava do castigado, deixado a morrer no meio do Atlântico. Uma cena similar foi mostrada por Steven Spielberg em seu filme Amistad.

Como os demais escravos jovens, muitas vezes ele já pensara em fugir, mas nas conversas à noite na senzala era alertado pelos mais velhos dos perigos de se evadir num território desconhecido e, portanto, hostil para os africanos. Ouvia que muitos fugitivos morriam ou terminavam voltando famintos, feridos e assustados e sabia que, quando recapturados, eram submetidos a castigos dos mais cruéis. Mas alguns poucos não voltavam e haviam rumores que se agrupavam em locais desconhecidos e distantes, livres do alcance dos senhores de engenho e seus de capitães do mato. Nunca desistiu de seu sonho e anos depois ajudou seu filho a fugir para a liberdade e juntar-se a Zumbi no Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, na divisa de Pernambuco com Alagoas, aproveitando a perturbação nos engenhos causada pela segunda invasão holandesa no Nordeste da colônia.

Essa pequena história fictícia poderia bem lembrar um pouco da história da escravidão no Brasil e em todas as Américas, com todo sofrimento que causou a milhões de indivíduos escravizados, arrancados de suas terras para fazerem a riqueza das potências imperialistas europeias no novo continente. A motivação desta carta nasceu de minha visita ao Museu Internacional da Escravidão em Liverpool, meu primeiro destino na cidade, lembrando também de minhas aulas de Formação Econômica do Brasil.

Minha expectativa ao avançar em direção ao norte da Grã-Bretanha era encontrar um país mais conservador, branco e formal, mas constatei que, como Londres, Liverpool é felizmente uma cidade igualmente globalizada em sua composição racial e nos seus costumes, culta e relativamente politizada, com uma comunidade negra muito ativa, uma grande Chinatown, muitos muçulmanos e indianos e gente de todo lado do mundo. Lembremos que Liverpool foi por excelência o grande porto da Revolução Industrial na Grã-Bretanha. Por aqui chegava todo algodão que vinha das Américas e ia às fábricas de Manchester, que fica no interior, e saia grande parte dos tecidos com os quais a Inglaterra inundou o mundo. Entre essas duas cidades surgiu também a primeira ferrovia do planeta.

Como outros desastres humanos, a história da escravidão transatlântica é uma essencial, trágica e dolorosa experiência humana que precisa ser contada e recontada para que nunca seja esquecida e jamais volte a acontecer. Essa é a função daquele museu, cuja visita procuro aqui dividir um pouco com os leitores dessa carta, recorrendo para isso propositalmente a muitas fotos, para partilhar com todos um pouco da experiência.

Em números de mortes que causou, essa gigantesca tragédia talvez só seja superada nas Américas pelo verdadeiro holocausto ocorrido contra a população indígena originária que, segundo estudos mais recentes, foi morta em mais de 90% pelas armas, mas especialmente pelos germes trazidos pelos europeus, contra os quais eles não tinham defesa. Quem quiser conhecer melhor essa história, recomendo vivamente aqui mais uma vez a leitura de Armas, germes e aço, de Jared Diamond, um livro essencial para entender nosso mundo. Como se pode ver pela Tabela e figura abaixo, em torno de 10 milhões de escravos desembarcaram nas Américas nos navios negreiros entre 1500 e 1870, sendo que desses, somente o Brasil recebeu 4 milhões de indivíduos. Não se leva em conta aqui os inumeráveis mortos na travessia do Atlântico por doenças, maus tratos ou castigo.

O tráfico negreiro operava numa relação direta com a acumulação de capitais na economia açucareira no Brasil e outros países e, no sul dos EUA e no Maranhão, em estrita ligação com o capital da indústria têxtil que demandava o algodão para as fábricas inglesas. Muitos, dos dois lados do Atlântico, enriqueceram imensamente com ele. Boa parte dos capitais acumulados na Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco até o século XIX, por exemplo, vieram desse comércio infame. Em suas salas, o museu de Liverpool busca retratar o lucrativo negócio da escravidão, com sua terrível história de sofrimento e crueldade, mas também lembrar a história de lutas, de coragem, insurreições, rebeliões, a maioria delas desconhecida.

Tão grande quanto o sofrimento dos escravos foi a luta pela liberdade, pelo fim da escravidão. As rebeliões negras foram inúmeras nas Américas. Em toda história da civilização, a história da luta pela liberdade foi sempre uma saga de resistência, sacrifício e coragem.

Desde os anos 1500 com certeza, houve resistência e tentativas de organizar pequenos Estados-território livres da escravidão na América. Em 1649, houve uma forte revolta dos negros em Barbados contra os brancos escravistas. Em 1663, explodiu outra grande conspiração dos escravos em Gloucester County, na Virgínia. Em 1712 outra insurreição negra ocorreu em Nova Iorque. Essas lutas cruzaram os séculos XVIII e XIX, culminando com uma grande onda de rebeliões simultâneas na Virgínia, Jamaica, Barbados, Guiana Britânia e Brasil por volta de 1820-30. Entre 1789 e 1816, ocorreram mais de 30 insurreições negras nas Américas. Sob pressão e por um cálculo econômico, de que estava perdendo em seus negócios para outros países como Portugal e Espanha com sua manutenção, em 1807 o parlamento britânico aboliu a escravidão em suas colônias.

Particularmente dramática foi a Revolução Haitiana (1791-1804), a primeira insurreição negra vitoriosa nas Américas, que literalmente incendiou o Haiti e suas fazendas de cana, também conhecida por Revolta de São Domingos, um conflito brutal na colônia francesa de Saint-Domingue, que conduziu precocemente à eliminação da escravidão e à independência do Haiti, tornando-o a primeira república governada por líderes de origem negra. Infelizmente, a destruição da economia açucareira, com o incêndio dos engenhos, ao não ser esta substituída por outra fonte de geração de riqueza, manteve o país e a população em grande pobreza. Mas não há bem maior que a liberdade: antes ser pobre e livre, que escravo.

No museu em Liverpool também está registrada a história de Zumbi do Palmares, por aqui conhecido também como Black Spartacus. Por uma questão de justiça, deveria estar também no museu o nome de Dandara. Ao contrário do que sempre escondeu a História oficial brasileira até recentemente, a resistência em Palmares também foi heroica e pioneira no Novo Mundo. O primeiro registro histórico conhecido que faz menção ao Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, na divisa de Pernambuco com Alagoas, data de 1597, mas há alguns historiadores que afirmam que ele pode ter surgido ainda antes.

Durante os anos 1600, Palmares, na verdade uma confederação de vários quilombos, que chegou a ter 20.000 moradores, resistiu e venceu militarmente várias expedições de portugueses e holandeses para destruí-lo, com técnicas de guerra apuradas para a época, só tendo sido finalmente derrotado em 1694, pelas tropas de milhares de jagunços de Domingos Jorge Velho, que precisou usar até mesmo canhões para vencer a resistência dos quilombolas.

Muitos de nós talvez não tenhamos noção de que uma aglomeração de 20.000 pessoas era algo imenso para os padrões do século XVII. Poucas cidades no Brasil colonial tinham tal população, mesmo no século XIX. O Quilombo dos Palmares foi na verdade um proto-Estado livre, nos primórdios do Brasil, que deveria merecer mais espaço na História do país. Há dez anos, subi a pé a escarpada Serra da Barriga, em União dos Palmares, para ver de perto o sítio do Quilombo e levar meu tributo a esse símbolo precoce e heroico de luta pela liberdade nas Américas.

No museu em Liverpool estão também registrados tributos a grandes figuras da luta pelo fim da escravidão ou contra a segregação, como Olaudah Equiano, Martin Luther King e Nelson Mandela, ao lado de muitos outros. Mesmo após o fim da escravidão em todos os países do mundo, a batalha por igualdade de direitos ainda não foi vencida e não é fácil.

Nos EUA, a luta contra a escravidão motivou reações furiosas dos escravistas, com o surgimento no Sul dos Estados Unidos de grupos como a Ku Klux Klan, fundada em 1866 no Tennessee, na sequência da derrota do sul no conflito contra o norte. Entre 1825 e 1860, mais de 100.000 escravos tiveram que escapar dos estados sulistas em direção ao norte usando um caminho secreto, a Underground Railroad.

A sangrenta Guerra Civil nos EUA, entre 1861 e 1865, a que mais matou nas Américas, que opôs o norte mais liberal capitalista e industrial ao sul agrário e escravista, tinha também como um de seus panos de fundo a continuidade ou não da escravidão e, em grande medida, a definição do que se estenderia para o oeste do país, se o modelo agrário, latifundiário e escravista do sul ou o capitalismo liberal industrializante e mini fundiário estabelecido no norte. Em um exercício de história contrafactual, alguns historiadores chegam a afirmar que se o sul escravista tivesse vencido aquele conflito, ou EUA provavelmente seriam até hoje um país tão atrasado quanto o Brasil.

Mesmo depois de expulsas da América no século XVIII e na primeira metade do século XIX, as potências europeias ainda empreenderam outra onda de colonização no mundo na segunda metade dos anos 1800. Partilharam o que ainda não estava colonizado na África e na Ásia. Depois da Segunda Guerra Mundial, no entanto, aproveitando-se do enfraquecimento das potências europeias, as colônias africanas e asiáticas lutaram e conseguiram sua independência. Mas em muitos deles, a segregação racial continuou, como na África do Sul, onde a resistência contra o apartheid imposto pela minoria branca tornou-se um símbolo da luta mundial por igualdade racial. Nelson Mandela, um dos líderes dessa luta, recebe destaque no Museu.

Nos EUA, mesmo com a vitória do norte na Guerra Civil em 1865 e o fim da escravidão, a segregação não acabou. Os negros não eram reconhecidos como cidadãos com direitos iguais. A mentalidade escravista, racista e de vingança continuou no sul derrotado. Entre 1882 e 1950, a Ku Klux Klan matou por linchamento 4.000 negros. Já em 1932, esse grupo reunia 1 milhão de membros formais, com apoio de outros milhões.

Neste contexto, já nos anos 1960, emerge o movimento Black Power e se insere a luta de Martin Luther King e Malcolm X, depois assassinados por extremistas supremacistas brancos. Eles também têm sua história registrada no museu. King, como Malcolm X, tinha muito claro que os Direitos Civis para os negros não seriam concedidos voluntariamente, sem muita luta.

O Museu relembra ainda muitas outras figuras de destaque mundial de origem negra, como Desmond Tutu, Cassius Clay, Obama, Gilberto Gil e Pelé.

A longa exposição termina apontando que a luta por igualdade de direitos está longe de terminar, afirmando que uma política de reparações ainda se faz necessária, porque não é possível igualar os ainda hoje desiguais em termos socioeconômicos e de oportunidades. Essa é a lógica que está por trás das políticas de cotas raciais no Brasil e que gera tanto ódio na direita brasileira.

A função central do museu de Liverpool, como já disse ao início, é não deixar esquecer o monumental crime que foi a escravidão transatlântica negra. Infelizmente, no Brasil, o maior destino dos escravos nas Américas, ainda há pouca consciência sobre a questão e existem poucos museus sobre o tema. Há um bom museu em Salvador, mas no Rio de Janeiro, Recife e São Luís, por exemplo, faltam grandes e educativos museus sobre o tema, que sirvam de educação às novas gerações, fundamentalmente para as crianças. Talvez possam surgir por iniciativa de alguns parlamentares de esquerda.

A escravidão negra transatlântica é um desses gigantescos crimes da história humana que deve ser sempre lembrado para que nunca volte a se repetir. Como o massacre contra a população indígena das Américas, que pode ter matado até 20 milhões de indivíduos, ou o holocausto que assassinou 6 milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial, ela deve ser sempre lembrada e relembrada para que nunca mais aconteça. Tão importante quanto não deixar esquecer o saldo negativo desse processo, no entanto, é lembrar a tenaz história das lutas contra a escravidão, cada uma das milhares de vidas perdidas, dos líderes e dos anônimos, heroicamente empenhadas na luta pela liberdade nas Américas.

Londres, 19/08/2019

Robério Paulino  

 

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Reportagem

Anúncios da época da escravidão mostram por que o Brasil precisa acertar as contas com o passado

Por Alexandre Andrada

The Intercept

AS ELITES BRASILEIRAS parecem ter um hábito secular de pôr uma pedra sobre o nosso passado. Apesar de sermos o país com a maior população negra fora da África, quase não há museus sobre o tema e mal estudamos o assunto nas escolas. O desconhecimento do brasileiro médio em relação aos horrores e às consequências da escravidão é enorme. O esquecimento não é um acaso, é um projeto.

O Brasil é o país mais importante na história da diáspora africana. Foram mais de 4 milhões de escravizados que desembarcaram em nossos portos, principalmente nos do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, entre 1530 e 1850.

Na primeira metade do século 19, mais de 2 milhões de africanos aportaram no Brasil. Era uma multidão de gente. No censo de 1872, o primeiro de nossa história, o país tinha 10 milhões de habitantes e mais da metade (58%) da população era formada por pretos e pardos, incluindo livres, libertos e escravizados.

Os escravizados, nascidos no Brasil e na África, foram a mão de obra utilizada na criação da riqueza derivada do açúcar, do algodão, do ouro, do diamante e do café, principais produtos de exportação do país. Mas eles eram também empregados domésticos, amas de leite, sapateiros, barbeiros, vendedores de rua, pedreiros, pescadores, alfaiates, ferreiros. As ruas e as casas brasileiras do século 19 transbordavam escravidão.

Em 1872, apenas 0,08% dos escravizados eram alfabetizados. Isso, por si, só explica a ausência de relatos em primeira pessoa sobre esse drama. Por sorte, existe uma única autobiografia conhecida de um africano que passou pela experiência do navio negreiro e foi escravizado no Brasil. Ele se chamava Mahommah Baquaqua.

Nascido por volta de 1820, Baquaqua era filho de um comerciante muçulmano e frequentou uma escola religiosa localizada no atual estado de Benin. Sequestrado na África, foi trazido como escravo para o Brasil em 1845. O tráfico de escravizados já era proibido no Brasil desde 1830, graças a um acordo com a Inglaterra, e desde de 1831, por força de uma lei de iniciativa nacional. Se valessem essas leis, Baquaqua deveria ser declarado livre assim que pisasse o solo brasileiro; e seu traficante, preso. Mas esse era o mundo imaginário das leis, não o dos fatos.

Em sua autobiografia, publicada originalmente em 1854 nos Estados Unidos, Baquaqua relata o drama comum aos mais de 4 milhões de africanos escravizados que aqui desembarcaram.

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Imagem da edição do livro de Mahommah G. Baquaqua.

Foto: Bruno Veras (Public domain)

O relato dos horrores vividos no navio negreiro é pujante. Baquaqua conta que ele e seus companheiros de infortúnio foram empurrados “para o porão do navio em estado de nudez”, com “os homens amontoados de um lado e as mulheres do outro”. Como “o porão era tão baixo”, eles eram obrigados a “se agachar” ou ficar sentados no chão.

Uma viagem de navio de Angola até o Recife demorava em torno de 30 dias. Amontoados e acorrentados em posição desconfortável, o porão acumulava resquícios de urina, fezes, vômitos sob um forte calor. Relatos dão conta que as pessoas nas cidades primeiro sentiam o mau cheiro desses navios antes mesmo de os verem no horizonte. “A repugnância e a sujeira daquele lugar horrível nunca será apagada da minha memória”, escreveu Baquaqua.

As terríveis condições de higiene e alimentares faziam com que a taxa de mortalidade nas viagens superasse os 10% dos embarcados. Os que morriam pelo caminho tinham seus corpos atirados ao mar, o que torna o Atlântico um gigantesco cemitério de africanos.

Baquaqua conta que “a única comida” que eles tiveram durante a viagem era um “milho encharcado e cozido”. A água também era racionada: “um pint (equivalente a 400 ml) por dia era tudo o que era permitido e nada mais”.

“Houve um pobre rapaz que ficou tão desesperado por falta de água, que tentou arrancar uma faca do homem branco que trouxe a água, quando foi levado para o convés e eu nunca soube o que aconteceu com ele. Eu suponho que ele foi jogado ao mar.

A violência era crucial para manter a “ordem”. Baquaqua conta que, “quando qualquer um de nós se tornava desobediente, sua carne era cortada com uma faca”, então, “pimenta ou vinagre” eram esfregados na ferida.

Os grandes traficantes de escravos eram brasileiros e portugueses aqui residentes. Eram ricos comerciantes, cuja fortuna superava a dos produtores de açúcar e algodão. Eles eram os ricaços do Rio, Salvador, Recife etc. No Recife, na década de 1820, o maior traficante era o comerciante português Elias Coelho Cintra, que tinha o costume marcar seus escravos com a letra “E” com ferro em brasa no peito, feito gado.

Anúncio do furto de três africanos recém-chegados (“negros novos”) de Angola, que tinham “no peito esquerdo a marca E”, de Elias Coelho Cintra.

Anúncio do furto de três africanos recém-chegados (“negros novos”) de Angola, que tinham “no peito esquerdo a marca E”, de Elias Coelho Cintra.

Fonte: Diário de Pernambuco, 1829

Anúncio reporta a chegada do paquete Pernambuco, vindo de Angola, numa viagem que durou 26 dias. Embarcaram 257 cativos, sendo que 26 morreram, que se destinavam a Elias Coelho.

Anúncio reporta a chegada do paquete Pernambuco, vindo de Angola, numa viagem que durou 26 dias. Embarcaram 257 cativos que se destinavam a Elias Coelho. Vinte e seis morreram na travessia.

Fonte: Diário de Pernambuco, 1830

Um dos bairros ainda hoje mais miseráveis e violentos do centro do Recife é o dos “Coelhos”, nome derivado do fato daquela região ser de propriedade da família do maior traficante de escravos da cidade. Sempre que passo por aquela área, fico pensando que parte dos seus habitantes que sobrevivem em condições desumanas, muitos dos quais em palafitas à beira do rio Capibaribe, pode ser formada por descendentes dos escravizados marcados a ferro quente por Elias.

Ao chegarem no Brasil, esses africanos eram postos em quarentena em portos ou mesmo no interior dos navios. Sobrevivendo a essa fase, os escravizados eram obrigatoriamente batizados na fé católica e recebiam nomes à portuguesa. Viravam todos Josés, Franciscos, Marias, Catarinas – Baquaqua não diz qual era seu nome que teve em seus tempos de Brasil. A escravidão implica na desumanização completa do indivíduo. Perder o direito à religião e ao nome escolhido por seus antepassados é parte desse processo.

A viajante estrangeira Maria Graham, que esteve no país na década de 1820, retrata o horror da visão de uma dessas localidades.

“Mal tínhamos percorrido cinquenta passos no Recife, quando ficamos absolutamente enojados com a primeira vista de um mercado de escravos. Era a primeira vez que (…) estávamos em um país de escravos; e, por mais fortes e pungentes que sejam os sentimentos em casa, quando a imaginação retrata a escravidão, eles não são nada comparados à visão desconcertante de um mercado de escravos. (…) Cerca de cinquenta jovens criaturas, meninos e meninas, com toda a aparência de doença e fome, resultante da escassez de comida e longo confinamento em lugares insalubres, estavam sentados e deitados entre os animais mais sujos das ruas ”.

Ao chegar aqui, sendo ainda “boçal” (termo utilizado para descrever os cativos que não dominavam o português), Baquaqua foi colocado para realizar trabalhos puramente físicos. Seu primeiro ofício foi carregar pedras para a construção de uma casa para o seu proprietário.

Depois de ganhar algum domínio da língua, Baquaqua foi para a rua vender pão. Muitos dos escravizados no Brasil do século 19 eram os chamados “pretos de ganho”, isto é, cativos que trabalhavam na rua vendendo alguma mercadoria ou realizando algum serviço, para garantir uma renda diária ao seu proprietário.

Fotografia do acervo do Instituto Moreira Salles mostra vendedoras de rua no Rio na década de 1870.

Fotografia do acervo do Instituto Moreira Salles mostra vendedoras de rua no Rio na década de 1870.

Foto: Acervo/Instituto Moreira Salles

A escravidão não era exclusividade da agricultura para exportação e o escravizado não era “mercadoria” acessível apenas aos ricaços. O Brasil era uma sociedade escravista no sentido mais preciso do termo. Os anúncios de compra, venda, aluguel e fuga de escravos eram a matéria mais ordinária nas páginas dos jornais brasileiros neste período.

Um viajante escocês que passou pelo Recife em 1820 relata sua visão:

“Acho que nenhuma impressão fica mais profundamente impressa em minha mente do que a visão melancólica de centenas… de milhares de escravos negros que vi na cidade… Você não pode se mover em nenhuma direção, sem que a escravidão, com todas as suas misérias multiplicadas, prenda sua atenção. Se você anda pelas ruas, você encontra os escravos, a cada hora do dia, em centenas, gemendo e suando sob seus fardos, e gastando suas vidas miseráveis no desempenho daqueles trabalhos pesados que são feitos por cavalos na Escócia e na Inglaterra”.

Sendo vendedor de rua, Baquaqua conta que tentou ser obediente ao seu proprietário para evitar castigos e ter uma existência um pouco menos miserável. Mas mesmo sendo obediente, era agredido e humilhado. E como tantos outros escravizados, na busca de uma fuga da dureza do cotidiano, abusou do álcool. Além da bebida, Baquaqua imita o comportamento de outros milhares de escravizados: foge. Porém, também como era a regra, acaba recapturado.

Homens, mulheres, jovens e crianças viviam tentando fugir. Era uma luta desigual. Alguns, com sorte, podiam se aquilombar em Catucá, o mais famoso quilombo existente no Recife na primeira metade do século 19, que tanto amedrontava o “cidadão de bem” da cidade.

Trecho de uma carta escrita por um desembargador reclamando do “Quilombo dos negros dos palmares do Catucá”.

Trecho de uma carta escrita por um desembargador reclamando do “Quilombo dos negros dos palmares do Catucá”.

Fonte: Diário de Pernambuco, 1829

Mesmo “com ferro no pescoço” e com “uma ferida na canela direita”, Sebastião do Rosário tentou fugir da sua condição de escravo. Os anúncios de escravos fugidos eram parte obrigatório dos jornais brasileiros do período.

Mesmo “com ferro no pescoço” e com “uma ferida na canela direita”, Sebastião do Rosário tentou fugir da sua condição de escravo. Os anúncios de escravizados que fugiam eram parte obrigatória dos jornais brasileiros do período.

Fonte: Diário de Pernambuco, 1829.

Anúncio da fuga de uma criança de nove anos com “marcas pela cara” provocadas pelo uso “de uma máscara de flandres”.

Anúncio da fuga de uma criança de nove anos com “marcas pela cara” provocadas pelo uso “de uma máscara de flandres”.

Fonte: Diário de Pernambuco

Gravura mostrando um escravizado com ferros no pescoço e máscara de flandres.

Gravura mostrando um escravizado com ferros no pescoço e máscara de flandres.

Ilustração: Jacques Arago/Museu Afro Brasil (São Paulo)

Baquaqua conta que, após uma recaptura, saiu para vender pão, mas usou o dinheiro arrecadado para comprar bebida. Voltando a casa do senhor embriagado e sem dinheiro. Foi violentamente espancado. Revoltado e humilhado, Baquaqua tenta o suicídio:

“Eu preferiria morrer a viver para ser um escravo. Eu então corri para o rio e me joguei, mas sendo visto por algumas pessoas que estavam em um barco, fui resgatado do afogamento.”

Depois disso, ele é posto à venda.

Anúncio publicado no Diário de Pernambuco em 1830, em que anuncia: “vende-se por [ser] fujão”. O termo “ladino” significava que, apesar de o escravo ser africano, ele já dominava o idioma e os costumes locais.

Anúncio publicado no Diário de Pernambuco em 1830, em que anuncia: “vende-se por [ser] fujão”. O termo “ladino” significava que, apesar de o escravo ser africano, ele já dominava o idioma e os costumes locais.

Fonte: Diário de Pernambuco

Baquaqua é vendido “para fora da província”. Essa era uma outra forma comum de punição e de controle dos escravizados: os que se comportavam mal eram vendidos sob a condição de serem levados para localidades distantes. Toda a sociabilidade construída pelo escravizado naquela cidade era, de repente, desfeita, em uma repetição das agruras do navio negreiro.

Anúncio de venda de escravo no Diário de Pernambuco.

Anúncio de venda de escravo no Diário de Pernambuco.

Fonte: Diário de Pernambuco

Seu destino foi o Rio de Janeiro, a capital do Império e maior cidade do país. Passou então a trabalhar a bordo de um navio. Após algumas viagens – ele narra passagens por Santa Catarina e Rio Grande do Sul –, a embarcação teria como destino Nova York.

Em 1847, em solo estadunidense, Baquaqua conseguiu finalmente fugir da condição de escravizado e se tornou, mais uma vez, um homem livre. Seus companheiros no Brasil, porém, teriam que esperar até 1888 para terem a mesma sorte.

Livres, mas sem nenhuma indenização por séculos de trabalho forçado, sem acesso à terra, à educação, marcados pelo preconceito e vítimas do racismo “científico” que ganha força no final do século 19 e começo do século 20. Enquanto os imigrantes italianos que aqui aportavam aos milhares a partir de 1890 tinham passagem subsidiada, salário, terra e liberdade para trocar de emprego depois de cinco anos, os pretos e pardos não tinham nada.

Nos EUA, neste exato momento, está em debate no Congresso a questão da reparação dos descendentes de escravizados. No Brasil, diz-se ainda que cotas são “racismo reverso”. O esquecimento da escravidão é um projeto muito bem elaborado pela elite.

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Chama médico cubano de escravo, mas não se indigna com escravo de verdade

Resgatados da escravidão aguardam pagamento em fazenda no Sul do Pará (Foto Leonardo Sakamoto)

Por Leonardo Sakamoto

Do caso da fazenda Vale do Rio Cristalino, no Sul do Pará, que pertencia à Volkswagen, durante a ditadura militar, até os das grandes marcas de vestuário e da construção civil hoje, respeitáveis corporações já foram envolvidas em denúncias relacionadas ao trabalho análogo ao de escravo. Mais de 53 mil pessoas foram libertadas, desde 1995, em operações de fiscalização do governo federal e um número maior do que isso permaneceu nessas condições porque não conseguiu denunciar sua situação.

Alguns dos que agora erguem a voz contra a ”escravidão” de médicos cubanos nunca abriram a boca para dar um pio sequer de solidariedade nesses casos supracitados. E sabe por quê? Porque não dão e nunca deram a mínima se um trabalhador escravizado vive ou morre, nos campos ou nas cidades. Querem apenas ganhar sua guerra ideológica e política particular usando as ferramentas que têm em mãos, dobrando as definições legais sobre esse crime se necessário.

Uma investigação conduzida pela Procuradoria Regional do Trabalho da 10a Região considerou que o modelo de remuneração do acordo entre Brasil e Cuba para o Mais Médicos representa discriminação de trabalhadores cubanos, pois nossa lei garante isonomia salarial e direitos trabalhistas – o que venho defendendo desde 2013. Contudo, a mesma investigação do Ministério Público do Trabalho afirmou também que, nem de longe, a situação assemelha-se a trabalho escravo. O problema é que, nesta era de pós-verdade, as opiniões calcadas em emoções são mais importantes do que fatos apurados por órgãos competentes.

Ou seja, se for para atacar Cuba e, com isso, constranger o programa Mais Médicos vale a pena batizar qualquer coisa de trabalho escravo, esgarçando seu conceito legal. Criam-se os maiores malabarismos a fim de explicar que aquilo pode se enquadrar nessa forma de exploração – que, de acordo com o artigo 149 do Código Penal, caracteriza-se por trabalho forçado, servidão por dívida, condições de degradantes de trabalho ou jornada exaustiva.

Façamos uma experiência: vamos ampliar o conceito e considerar esses médicos como escravos. Mas com o compromisso de que, assim que o último cubano for ”libertado”, passaremos a resgatar todos os trabalhadores brasileiros em fazendas, indústrias, comércio, serviços, vítimas de irregularidades trabalhistas, que passariam a ser ”escravos” também devido a essa forçação de barra. Ou seja, se fossemos por esse devaneio, o problema sairia da casa de dezenas de milhares para cerca de 17 milhões de pessoas – 8% do país – em estimativas conservadoras de juízes e procuradores ouvidos por este blog.

Libertado da escravidão perdeu o dedo no serviço. Essa era a água que era obrigado a beber (Foto Leonardo Sakamoto)

Uma luta tem sido travada junto aos Três Poderes, nos últimos anos, envolvendo políticos, organizações sociais, juízes, procuradores, defensores públicos, empresários, servidores públicos, entre outros, para evitar que a definição legal de escravidão contemporânea seja desidratada. Em outubro do ano passado, por exemplo, o governo Michel Temer publicou uma portaria do Ministério do Trabalho mudando as regras da fiscalização e tornando irrelevantes as condições em que os trabalhadores se encontram para a caracterização de escravidão. A partir dela, escravo seria apenas quem estivesse preso sob vigilância armada. Após intensa pressão da sociedade e da imprensa, as mudanças foram suspensas pelo Supremo Tribunal Federal. E, com isso, o governo voltou atrás.

Mas o oposto também tem sido feito: há uma luta para evitar que tudo seja chamado de trabalho escravo. Porque se tudo é escravo, nada é de fato. Durante a campanha, Jair Bolsonaro criticou o enfrentamento à escravidão contemporênea, citando dados equivocados sobre a fiscalização. Falou do caso de uma mulher grávida que teria sido considerada como submetida à escravidão porque foi exposta à aplicação de agrotóxico. O que não procede. De acordo com a área de fiscalização do Ministério do Trabalho, uma irregularidade como essa não configura o crime. Esse tipo de declaração do presidente eleito, ao tentar ampliar o escopo do que é trabalho escravo para ajudar sua argumentação, é um desserviço ao setor empresarial brasileiro por levar à insegurança jurídica.

Quando o Mais Médicos foi anunciado há cinco anos, afirmei que uma coisa é a política pública em si, de levar médicos estrangeiros ao interior do Brasil em áreas carentes, que – a meu ver – está correta. Outra, muito ruim, foi a ideia equivocada de não pagar a totalidade do salário diretamente ao trabalhador.

Como já expliquei aqui, o acordo com a instituição cubana responsável pelos profissionais, firmado via Organização Panamericana de Saúde (Opas), prevê que um ”imposto” seja cobrado dos médicos que estiverem em missão no Brasil. O valor líquido repassado é de R$ 3 mil, enquanto o governo cubano fica com R$ 8,8 mil, pagos mensalmente – menos uma taxa operacional que fica com a Opas. Além desse valor, os médicos também recebem auxílio-moradia e auxílio-alimentação das prefeituras.

De um lado, defensores desse modelo apontam que ele é correto por ser o pagamento por uma missão médica contratada de outro país e que o valor da dedução não é tão maior que os impostos sobre renda cobrados em alguns países. De outro, críticos afirmam que o ideal seria que os médicos recebessem o mesmo que profissionais de outras nacionalidades e, caso necessário, o Brasil pagaria, à parte, pelo serviço da empresa cubana de saúde.

Como já dito acima, a Procuradoria Regional do Trabalho da 10a Região considerou que há discriminação de trabalhadores cubanos, pois nossa lei garante isonomia salarial. Mas que isso, nem de longe, assemelha-se a trabalho escravo.

Trabalhadores produzindo peças para oficina responsabilizada por trabalho escravo. Foto: MPT/Divulgação

Entrevistei dois médicos cubanos que faziam parte do programa e atuavam em um município na Grande São Paulo, como expliquei aqui no texto de ontem. Bem quistos pelos moradores no posto de saúde, rechaçaram as denúncias de que estariam submetidos a esse tipo de exploração. ”Escravos não têm esses privilégios”, afirmou um deles, Mario. Ele disse que como sua família tem à disposição um sistema educacional e de saúde gratuitos em Cuba, que funcionam, e que fez faculdade de medicina, residência e mestrado sem ter que pagar pelos cursos, livros ou materiais, acha justo colaborar para que esse sistema continue funcionando.

Nem todos acham justo, contudo. E, por conta disso, o mais correto à luz da nossa legislação é a isonomia salarial com os brasileiros e pessoas de outras nacionalidades.

Alguém duvida que, quando todo esse furdúnculo desaparecer, se auditores fiscais passarem a libertar trabalhadores considerando como escravidão toda e qualquer irregularidade trabalhista do nível de gravidade da verificada pelo MPT junto aos médicos cubanos, iremos ouvir reclamações daqueles que chamarão os auditores fiscais de ”comunistas”?

Seria ótimo que esses que agora se preocupam com  escravização de pessoas cobrassem do presidente eleito a garantia de que a área de fiscalização do trabalho seja protegida de influência política e econômica, de preferência em um Ministério do Trabalho que não seja rebaixado, desmembrado ou enfraquecido, e com recursos para que possa verificar toda e qualquer denúncia de escravidão contemporânea que chegue até ele. Ou exigissem que políticos parem de receber doações eleitorais de pessoas físicas que se beneficiaram desse tipo de crime. Quando defendi meu doutorado sobre trabalho escravo contemporâneo, em 2007, fiz um extenso levantamento envolvendo várias eleições e doadores, o que apontava uma esbórnia. Os cruzamentos da ”lista suja” do trabalho escravo com os doadores de campanha mostram que ela continua ainda hoje.

Em tempo: há quem fale da importância da defesa da democracia ao reclamar do relacionamento com o autoritarismo cubano, mas não se importa nem um pouco ao fazer um bom negócio com o autoritarismo chinês.