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Centro-esquerda está saindo renovada e fortalecida da era populista

Por Mathias Alencastro

Poucos discordam que a sequência marcada pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a detenção de Lula em 2018 definiu o atual projeto do Partido dos Trabalhadores. Todavia, outra dinâmica não menos importante, comum a outras formações de centro esquerda, também influenciou esse processo.

Os anos 2015-2020 são caracterizados pela ascensão e queda de novas formações de esquerda como o espanhol Podemos, a França Insubmissa e, mais importante ainda, pela tomada de poder de Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista britânico.

Keir Starmer, do Partido Trabalhista do Reino Unido, discursa no Parlamento
Keir Starmer, do Partido Trabalhista do Reino Unido, discursa no Parlamento – Jessica Taylor – 24.jun.20/Parlamento do Reino Unido/AFP

Todos defendiam uma estratégia de acirramento da contestação política e de mobilização apaixonada das bases.

Eles ofereceram o respaldo teórico e prático ao PT para dar uma guinada programática depois de 13 anos no poder. Naquela altura, a prioridade do partido era evitar ser ultrapassado pela esquerda.

O que resta dessa experiência? Dirigido por uma tirania familiar, o Podemos virou uma muleta ineficiente do governo Pedro Sánchez.

A França Insubmissa fracassou na sua tentativa de capturar o eleitorado de esquerda órfão do Partido Socialista. Os trabalhistas sofreram algumas das suas mais humilhantes derrotas sob o comando de Jeremy Corbyn.

Contra todas as expectativas, a pandemia abriu um novo capítulo. O moderado Keir Starmer reconstruiu as fundações dos trabalhistas no Reino Unido e, em poucos meses, recuperou a popularidade perdida nos anos Corbyn.

Na França, ambientalistas e socialistas triunfaram nas municipais. Juntos, eles formam a alternativa mais credível ao governo Macron, firmemente ancorado à direita. Um pouco por todo o lado, a centro-esquerda está saindo renovada e fortalecida da era populista.

No Brasil, porém, a Executiva Nacional do PT resiste graças a duas falácias. A primeira é denunciar a eleição de Jair Bolsonaro como parte de uma interminável conspiração contra o partido. A segunda falácia é a ideia de que o PT deve continuar girando em torno de Lula.

O advento do Consórcio do Nordeste, a maior força de oposição ao governo, e a atuação dos melhores quadros petistas nas discussões da Frente Ampla, deixam claro de que isso não passa de uma ilusão sustentada por burocratas desprovidos de capital eleitoral.

O PT não é o primeiro grande partido de centro-esquerda a ter dificuldades em gerir a transição para a oposição depois de um longo período no governo. Basta olhar para a travessia do deserto dos trabalhistas depois da queda de Tony Blair.

Tampouco é o primeiro partido a ter de lidar com a onipresença de um líder histórico. Por décadas, o Partido Socialista francês viveu na sombra do seu fundador e idealizador, François Mitterrand. Embora delicadas, essas questões seriam facilmente superadas por uma nova geração de dirigentes.

Mas o PT é a única formação que optou por renovar o mandato de uma Comissão Executiva Nacional com uma agenda rejeitada pela sociedade e descartada no mundo inteiro.

Por isso, não vale a pena perder tempo tentando debater as sempiternas querelas sobre golpe, Lava Jato e Venezuela. Para a atual Executiva do PT, o único projeto é o impasse.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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Cotados ao Palácio 3 – TELMA GURGEL: COMO A ESQUERDA PODE SE REINVENTAR?

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Como a esquerda brasileira morreu

Militante do PT chora após a vitória de Bolsonaro, em 2018.
Militante do PT chora após a vitória de Bolsonaro, em 2018 (Nelson Antoine -AP)

Por Vladimir Saflatle*

Este é um artigo que gostaria de não ter escrito e não tenho prazer algum em fazer enunciações como a que dá corpo ao título. No entanto, talvez não haja nada mais adequado a falar a respeito da situação política brasileira atual, depois de um ano de Governo Jair Bolsonaro e a consolidação de seu apoio entre algo em torno um terço dos eleitores. Aqueles que acreditavam em alguma forma de colapso do Governo e de sua base precisam rever suas análises. O que vimos foi, na verdade, outro tipo de fenômeno, a saber, a inoperância completa do que um dia foi chamado de “a esquerda brasileira” enquanto força opositora. Não que se trate de afirmar que ela está diante do seu fim puro e simples. Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história termina agora. O pior que pode acontecer nesses casos é “não tomar ciência de seu próprio fim” repetindo assim uma situação que lembra certo sonho descrito uma vez por Freud na qual um pai morto continua a agir como se estivesse vivo. A angústia do sonho vinha do fato do pai estar morto e nada querer saber disto. Se a esquerda brasileira não quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites.

Signos não faltaram para tal diagnóstico terminal. Contrariamente ao discurso de que o Governo Bolsonaro estaria paralisado, vimos ao contrário a aprovação de medidas até pouco tempo impensáveis, como a reforma previdenciária, isso sem nenhuma resistência digna deste nome. Ou seja, a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira foi feita sem que anotassem sequer o número da placa do carro responsável pelo atropelamento. Uma reforma da mesma natureza, mas menos brutal, está a tentar ser imposta na França. O resultado é uma sequência de greves e manifestações de vão já para o seu terceiro mês. Na verdade, o que vimos no Brasil foi o contrário, a saber, governos estaduais pretensamente de esquerda a aplicarem reformas estruturalmente semelhantes. Como se fosse o caso de dizer que, no final, governo e oposição comungam da mesma cartilha, sendo distinta apenas a forma e a intensidade de sua implementação. Fato que já havíamos visto com o segundo Governo Dilma e sua guinada neoliberal capitaneada por Joaquim Levy.

Isso é apenas um sintoma de que a esquerda brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político. Durante todo o ano de 2019, diante de um Governo cujas políticas visam a retomada, em chave autoritária, dos processos de concentração de renda, de acumulação primitiva e de extrativismo colonial, não foram poucos aqueles que esperaram da esquerda brasileira (todos os partidos e instituições inclusas) a expressão de outro tipo de política. A esquerda governa estados, municípios grandes e pequenos, mas de nenhum deles saiu um conjunto de políticas que fosse capaz de indicar a viabilidade de rupturas estruturais com o modelo neoliberal que nos é imposto agora. Houve época que a esquerda, mesmo governando apenas municípios, conseguia obrigar o país a discutir pautas sobre políticas sociais inovadoras, partilha de poder e modificação de processos produtivos. Não há sequer sobra disto agora.

Talvez seja o caso de insistir neste ponto porque, como dizia Maquiavel, o povo prefere um governo ruim a governo nenhum. Não são as qualidades do Governo Bolsonaro que dão a ele certa adesão popular. É o vazio, é o fato de não haver nenhuma outra alternativa realmente crível neste momento. E a razão disso é simples: a esquerda brasileira morreu, ela tocou seu limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo. Isso vale tanto para partidos, sindicatos quanto para a classe intelectual (na qual me incluo). Nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos desafios efetivos. O melhor a fazer seria começar a se perguntar pela razão de tal situação.

Coloquemos uma hipótese de trabalho: a esquerda brasileira conhece apenas um horizonte de atuação, este que atualmente chamaríamos de “populismo de esquerda”. Foi ele que se esgotou sem que a esquerda nacional tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar o que poderia ser “outra fase”. Entende-se por populismo de esquerda um modelo de construção de hegemonia baseado na emergência política do povo contra as oligarquias tradicionais detentoras do poder. Este povo é, na verdade, produzido através da convergência de múltiplas demandas sociais distintas e normalmente reprimidas. Demandas contra a espoliação de setores sociais, contra a opressão racial, contra os legados do colonialismo: todas elas devem convergir em uma figura que seja capaz de representar e vocalizar esta emergência de um novo sujeito político.

No entanto, o caráter nacionalista do populismo permite também a inclusão de setores descontentes da oligarquia, grupos da burguesia nacional dispostos a ter um papel “mais ativo” nas dinâmicas de globalização. Assim, o “povo”, neste caso, nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST.

Este é o modelo que a esquerda nacional tentou implementar em sua primeira tentativa de governar o Brasil: a que termina com o golpe militar contra o Governo João Goulart. Na ocasião, um dos personagens mais lúcidos de então, Carlos Marighella, faz um diagnóstico preciso: a esquerda havia apostado na conciliação com setores da burguesia nacional e com setores “nacionalistas” das forças armadas dentro de governos populistas de esquerda. Ela colocou toda sua capacidade de mobilização a reboque de uma política que parecia impor mudanças seguras e graduais. Ao final, tudo o que ela conseguiu foi estar despreparada para o golpe, sem capacidade alguma de reação efetiva diante dos retrocessos que se seguiriam.

A lição de Marighella não foi ouvida. Tanto que a esquerda brasileira fará o mesmo erro com o final da ditadura militar e com o advento da Nova República. A história será simplesmente a mesma: o movimento em direção a um jogo de alianças entre demandas sociais e interesses de oligarquias locais descontentes tendo em vista mudanças “graduais e seguras” que serão varridas do mapa na primeira reação bem articulada da direita nacional.

Nesse sentido, nossa história segue os passos da história argentina: outro campo de ensaio do populismo de esquerda. Mas há um diferença substancial aqui. Depois da experiência ditatorial, a Argentina soube criar um linha de contenção de impulsos golpistas. Hoje, quase mil pessoas ainda se encontram nas cadeias argentinas por crimes da ditadura. No Brasil, ninguém foi preso. A resposta argentina produziu uma linha de contenção, inexistente entre nós, que permitiu ao peronismo ter ressureições periódicas. Dificilmente, essa será a história brasileira daqui para frente, pois o risco de deriva militar é real entre nós.

Mas há ainda um outro fator decisivo. O colapso do lulismo não foi seguido apenas de um golpe parlamentar apoiado em práticas criminosas de setores do poder judiciário. Ele foi seguido da criação de uma espécie de antídoto à reemergência do corpo político populista. O que vimos, e agora isto está cada vez mais claro, foi a emergência de um corpo fascista. Mas o corpo político fascista é normalmente a versão terrorista e invertida de um corpo político anterior, marcado pela emergência do povo e pelas promessas de transformação social. Dessa forma, ele acaba por bloquear sua ressurgência. Já se disse que todo fascismo nasce de uma revolução abortada. Nada mais justo.

Theodor Adorno um dia descreveu o líder fascista como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio (certamente pensando no Chaplin de O grande ditador). Essa articulação entre contrários é fundamental. A pretensa onipotência do líder fascista deve andar juntamente com sua fragilidade. O líder fascista deve ser “alguém como nós”, com a mesma falta de cerimônia, a mesma simplicidade e irritação que nós. A identificação é feita com as fraquezas, não com os ideais. Ele deve ser alguém que come miojo em banquetes presidenciais, que se veste de maneira desajeitada como alguém do povo. Ele deve a todo momento dizer que está a combater as elites que sempre governaram esse país (que agora serão os artistas, as universidades, os “cosmopolitas” e “globalistas”). Ele deve mostrar que não é alguém da elite política, que na verdade tal elite o detesta. Pois se trata de criar um antídoto para toda forma de tentativa de recuperar a produção do povo como processo de emergência de dinâmicas de transformação social.

Dessa forma, tudo se passa como se Bolsonaro fosse uma versão militarizada de seu oposto, a saber, Lula. Não se trata com isso de afirmar que estamos presos em uma polaridade. Ao contrário, trata-se de dizer que tudo foi feito para anular a polaridade real, criando um duplo imaginário. Nunca entenderemos nada das regressões fascistas se não compreendermos estas lógicas dos duplos políticos. Se há algo que nos falta é exatamente polaridade. Temos pouca polaridade e muita duplicidade.

O fato é que tal dinâmica demonstrou-se eficaz. Ela quebrou os processos de incorporações populistas que foram, até agora, a alma da esquerda brasileira. Por isso, o que vemos agora é uma esquerda sem capacidade de ação, pois atordoada com o fato de a direita brasileira ter, enfim, produzido a sua figura com capacidade de incorporação do povo, agora sem o erro de apostar em um egresso da elite político-econômica (Collor) ou em alguém sem vínculos orgânicos com o militarismo fascista (Jânio).

Numa situação como essa, a esquerda nacional ainda paga o preço de ter sido formada para a coalizão e para a negociação. Esse é seu DNA, desde a política de alinhamento do PCB aos ditames anti-revolucionários do Soviete Supremo. Por isso, ela não sabe o que fazer quando precisa mudar o jogo e caminhar para o extremo. Sua inteligência não age nesse sentido, suas estruturas não agem nesse sentido, sua classe política não age nesse sentido. Seus movimentos de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma sustentação ou coordenação de medio e longo prazo. Foi assim que ela morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que chegar a um fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim.

*Texto extraído de El País.

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Elogiar ditadores é a melhor maneira de a esquerda continuar perdendo

Por Tatiana Dias e Rafael Moro Martins

The Intercpet 

O Brasil e o mundo se chocaram com a proximidade de um membro do alto escalão do governo com a ideologia nazista. O inacreditável vídeo cheio de referências nazistas e o discurso que plagiou Goebbels, ministro das Comunicações de Hitler, derrubaram o secretário de Cultura Roberto Alvim. Enquanto isso acontecia, evidenciando o total despreparo e o apreço de setores do governo por regimes autoritários – algo que, sabemos, não vem de hoje e não é restrito ao nazismo –, parte da esquerda resolveu defender publicamente… outros regimes autoritários.

Parece inacreditável – e é. O historiador e influenciador marxista Jones Manoel não corou em falar publicamente que matar pessoas em uma revolução “é uma contingência que acontece”. Fuzilar uma família aqui, matar outros tantos milhões de fome ali, torturar e assassinar indiscriminadamente e promover o terror entre os dissidentes. Assim mesmo. É normal, efeito colateral.

Também teve uma ala do Psol que resolveu exaltar Vladímir Lênin nesta semana, em lembrança ao aniversário de 96 anos da morte do comunista, um dos líderes da Revolução Russa de 1917 e o primeiro governante da União Soviética. A deputada Talíria Petrone, do Psol carioca, o elogiou “pelo exemplo e pelos escritos”. Se entregou de bandeja para a direita, que mais uma vez alimentou o fantasma anticomunista que acaba tragando a todos nós.

Esse texto não é uma crítica a correntes teóricas específicas de esquerda. Cada um defende o que quiser e nós defendemos esse direito até o final – não podemos falar o mesmo de partidários de regimes autoritários. O que criticamos é a postura muitas vezes ingênua de parte da esquerda que, imersa em conceitos teóricos e na busca pela pureza ideológica, acaba escorregando nas cascas de banana que a direita joga no caminho. Essa foi uma delas. É importante que a esquerda seja ampla, diversa e comporte diferentes visões de mundo. Mas é importante, também, saber como tudo isso vai ser usado na guerra cultural. Especialmente em um momento em que a popularidade de Bolsonaro cresce, mesmo com todas as tragédias em seu governo, e o presidente fala abertamente que “gente de esquerda não é normal“.

Estamos sob um governo fascista. Ponto. A esquerda é múltipla e comporta alas mais radicais e mais moderadas. Ainda assim, mesmo que tenha gente que siga piamente acreditando que o regime bolsonarista possa ser derrubado com uma revolução do proletariado, o cenário mais pragmático – e evidências de outros países reforçam isso – aponta que o único jeito de derrotar um governo autoritário é formando uma coalizão. Para isso, é preciso que exista gente disposta a abrir mão de certos valores e divergências irreconciliáveis em favor de (muitos) pontos em comum e dar a mão pro amiguinho que não pensa exatamente como nós para disputar o pouco espaço democrático que ainda nos resta.

Em tempos em que a imprensa segue sendo perseguida, censurada e ameaçada e direitos básicos estão sob ameaça, não faltam elementos para juntar quem está minimamente disposto a lutar pela democracia em torno do maior dos bens – a liberdade de divergir. Saber negociar e se reunir em torno de pautas comuns é fazer política.  Ninguém ganha nada negando-a, pelo menos no regime democrático de coalizão em que (ainda) estamos.

Um exemplo: quando o deputado Marcelo Freixo, também do Psol, votou a favor do pacote anticrime do ministro Sergio Moro, ele foi massacrado por uma parte da esquerda. Para essas pessoas, não importava que a pior parte do pacote havia sido derrubada na votação: importava que um “dos seus” tinha traído seus ideais. São provavelmente as mesmas vozes que, coisa de um ano atrás, aplaudiram o apoio do PT à ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela – o que, vale lembrar, também alimentou a paranoia anticomunista.

O PSDB também é outro partido que, à sua maneira, tem tentado mamar nas tetas do radicalismo – neste caso, de direita. No Twitter, o partido não perde uma chance de relativizar o governo Bolsonaro com o velho “mas e o PETÊ?”, tentando comparar os arroubos antidemocráticos do atual governo à gestão petista. Os tucanos tentam recuperar sua parcela do antipetismo sem se darem conta de que já a perderam para o espectro radical e antidemocrático. Em vez de reconquistar o eleitorado social-democrata e o centro – o que passa obrigatoriamente por algum tipo de aproximação com o maior partido de esquerda do Brasil, que, me desculpem, ainda é o PT –, o partido desliza para a extrema-direita.

Não é só inútil: é contraproducente. Se estendesse uma ponte ao petismo, em vez de tratar o partido surgido de lutas em comum como uma organização criminosa, os social-democratas (eles ainda existem no PSDB?) quem sabe constrangessem a turma de Lula a finalmente sair da covarde – mas até certo ponto compreensível – e eterna negação dos escândalos em série de mensalão e petrolão rumo à necessária autocrítica. Ganhariam, com isso, todos os que ainda acreditam na democracia.

Quando parte da esquerda ou centro-esquerda que tem visibilidade e cargos públicos usa esses pressupostos para defender o extremismo, ela alimenta a polarização. Com isso, fortalece a narrativa que criminaliza e desumaniza a esquerda como um todo, beneficiando mais uma vez o bolsonarismo e a extrema-direita que se alimenta disso.

A sociedade polarizada é o que permite que emerjam governos fascistas. A democracia pressupõe conviver com o diferente e até, em certos casos, fazer alianças com ele. “Quando nós concordamos com os nossos rivais políticos em pelo menos parte do tempo, estamos menos propensos a vê-los como inimigos mortais”, escreveu o cientista político Steven Levintsy no já clássico ‘Como as Democracias Morrem‘. A corrosão de princípios básicos de convivência e respeito às instituições democráticas é o que cimenta a passagem de líderes autocratas e tiranos.

Os modelos políticos têm suas nuances e complexidades. Não há preto no branco, nós sabemos. A esquerda é complexa, heterogênea e a maior parte das pessoas que se classifica nesse espectro político têm total aversão a regimes ditatoriais – nós estamos entre eles. Mas, no debate político, marcado pela superficialidade e pelo analfabetismo funcional – só 30% dos brasileiros não conseguem ler e compreender um texto – tudo vira arma nas mãos do inimigo. Tudo o que eles querem é uma razão para nos jogarem ao extremo e minarem qualquer chance de aliança ou debate – e eles estão conseguindo. Estamos em uma guerra de narrativas e, se não agirmos estrategicamente agora, vamos inevitavelmente continuar perdendo.

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Sem negros no palanque, a esquerda não vencerá

Por Sabrina Fidalgo*

Numa tarde cinzenta do ultimo dia 8 de novembro, durante uma reunião de trabalho, meu celular não parava de vibrar. O conteúdo das mensagens era um só; Lula havia sido solto.

Corri para casa o mais rápido que pude e ainda cheguei a tempo de ligar a TV para assistir ao vivo o ex-presidente deixar o presidio de Curitiba, sorridente, bem disposto, barba feita caminhando acompanhado por companheiros do Partido dos Trabalhadores.

Logo vemos Lula discursar no palanque com aquela veemência e carisma que lhe são peculiar. “Sua retórica está ainda mais poderosa”, penso comigo enquanto assisto o grande acontecimento. Tirei uma foto da tela da minha própria TV para postar nas minhas redes sociais no auge da euforia da incrível e surpreendente novidade daquela sexta-feira cinzenta que nada prometia e, ao olhar a foto recém postada, percebo algo que já me chamara atenção não é de hoje; na imagem temos Lula ao centro, microfone em punho e ao seu fundo, políticos e nomes conhecidos do PT, poucas mulheres e muitos homens.

Como em todos os palanques políticos do Brasil, da América Latina, e do mundo.

Mas o PT é um partido de esquerda, e o conceito de esquerda diz-se inclusivo.

Mas “a teoria, na prática, é outra”.

Alguns dias mais tarde, mais precisamente no dia 14 de novembro último, Midiã Noelle, do “Correio” (antigo “Correio da Bahia”), postou em sua coluna uma carta do “Coletivo Afronte à Comunicação” endereçada ao ex-presidente Lula que, aquela altura, se encontrava militando em Salvador. O trecho da carta que melhor representa sua urgência e importância diz:

“(…) A verdade, Lula, é que não existe nada nesse país que não tenha a contribuição negra como parte do pacote. Seja balançando bandeiras, indo às ruas defender projetos políticos que não nos incluem ou incluem a contento como os governos atuais de nosso estado e município. A verdade é que por mais que você tenha se informado sobre o que aconteceu e acontece nesse país, algumas coisas lhe escapam por conta das velhas oligarquias brancas que, por motivos diversos, tinham mais acesso a você do que a nós, ainda que estivéssemos na mesma frente de batalha. Se hoje os partidos de esquerda têm alguma força, tem por nossa presença extrema, mas invisibilizada na hora da festa.

Entendemos que não existe mais acordo para que a maioria da população seja invisibilizada e ignorada em nosso estado e município. (…)”

É sabido que há na velha esquerda problemas em relação a escuta e aceitação de críticas do que eles chamam de “grupos identitários”. Para todo e qualquer movimento feito nessa direção, seja qual for o momento político, a resposta pronta mais notória é; “não é esse o momento”.

Por “não ser esse o momento” que desde a reeleição de Dilma para cá a velha esquerda enfrenta uma derrota atrás da outra culminando com o resultado das últimas eleições. Por “não ser esse o momento certo” que houve uma enorme debandada das populações periféricas para os partidos da ultradireita. Por “não ser esse o momento certo” que as igrejas neopetencostais continuam num crescendo de seu rebanho, majoritariamente negro e ignorado por essa velha esquerda.

Quando a velha esquerda fala de “grupos identitários” a impressão que eu tenho é que ela esta falando lá do topo do Himalaia para o Brasil tamanha a distancia que se dá. A velha esquerda não consegue entender que não existe grupo mais identitário do que o dela mesma. O grupo identitário masculino e branco, que, como diz Djamila Ribeiro, “só fala de si, governa para si e só pensa a partir de si ”.

Senão, vejamos; o quadro de políticos da velha esquerda inteira é tão branco do que o da ultradireita, que, mal comparando, mas já comparando, se apropria errônea porém eficazmente do poder da imagem ao usar figuras como a do deputado federal “Hélio Bolsonaro” (vulgo Hélio “Negão”) posando sempre ao lado ou detrás do atual presidente.

A velha esquerda branca costuma se referir a Hélio como “o negro de estimação do Bolsonaro” numa forma desprezível de racismo, dando a entender que o tal deputado, por ser negro, jamais poderia ser apoiador de um presidente da ultradireita.

Acontece que ser negro não é condição para nada além de ser o que se queira ser, inclusive de ultradireita.

Vendo a imagem de Lula discursando logo após sua soltura, tudo leva a crer que a velha esquerda é quase tão branca quanto os mais temíveis grupos de supremacia branca do Hemisfério Norte. Além de quase ninguém na velha esquerda ser negro (com exceção de uma Benedita da Silva aqui e acolá), ninguém ali se relaciona com pessoas negras, mestiças, indígenas ou periféricas. As primeiras damas são sempre mulheres brancas, advindas das elites econômicas e/ou intelectuais e vice-versa. A imagem da velha esquerda é a imagem da supremacia branca e do patriarcado oligárquico.

É por isso que se faz tão necessária a carta do “Coletivo Afronte à Comunicação” endereçada ao ex-presidente Lula. Para que ele, agora ainda mais instruído de leitura política durante seus 14 meses de cativeiro, tenha o discernimento de entender que não existe esquerda sem protagonismo de cor, raça e gênero no Brasil de 56% de população que se autodeclara preta e parda. Afinal, não basta governar para essas populações e se vangloriar ad eternum por uma instauração de somente politicas de cotas somente.

A esquerda tem que governar junto com essas pessoas que agora precisam ter sua própria voz saindo de dentro nas cabeças dos partidos de esquerda. De outra maneira continuará sendo um disfarce mal feito de uma ultradireita com toscas pinceladas de marxismo dadaísta.

E seguirão perdendo.

*É roteirista e cineasta.

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Frente ampla e as ilusões de parcela da esquerda

Por Marcos Jakoby

Nesta última segunda-feira (03/09), ocorreu, na PUC – São Paulo, lançamento de um movimento que tem a pretensão de ser uma “frente ampla pela democracia”. Representantes ligados a 16 partidos (mas que não representavam formalmente a estes) que incluía PSD,PV, Novo, PDT, PC do B, PT (de forma marginal), Podemos, PSDB, entre outros, e lideranças (de forma presencial ou por meio de vídeos) como Flávio Dino, Ciro Gomes, Márcio França, Marta Suplicy, FHC, Gilberto Kassab, Antônio Anastasia (relator do impeachment de Dilma no senado) entre outros, e integrantes de diversos segmentos sociais, lançaram o manifesto “Direitos Já! Fórum Pela Democracia”. O evento é fruto de uma articulação iniciada em novembro do ano passado. Dos partidos de esquerda, chamou a atenção a presença orgânica do PC do B, com várias lideranças partidárias e públicas.

No início do ato foi lido o manifesto do Direitos Já. Sintomático que o documento se inicie com o contexto das eleições em 2018, sem fazer nenhuma menção ao golpe de 2016, sem denunciar a prisão política de Lula, sem abordar a reforma trabalhista, a lei do teto do gasto público e a reforma da previdência, medidas que tanto afetam a vida de milhões de trabalhadores. O seu coordenador, o sociólogo tucano Fernando Guimarães, diz que o movimento não é contra ninguém, mas àquelas medidas que ferem os direitos fundamentais.

Mas é curioso que o manifesto não faz nenhuma menção de pautar a liberdade do maior preso político do país.  Também não denuncia, em nenhum momento, o assassinato de Marielle Franco e de muitas outras lideranças populares. Tampouco, trata do pacote anticrime de Sérgio Moro, que concede “carta branca” para as forças de segurança matarem. São questões cruciais para quem luta por “direitos fundamentais” no Brasil de 2019. É uma defesa da democracia e das liberdades democráticas com pouco conteúdo, quase que abstrata, embaladas pela embriaguez da necessidade, a todo custo, de uma “frente ampla”. O documento diz que as forças democráticas devem colocar suas diferenças programáticas de lado; e se engajarem numa pauta comum: “a defesa irrevogável da democracia, das instituições da República e dos direitos conquistados pela população”.

No campo popular há um grande acordo no diagnóstico de que o ascenso de Bolsonaro ao governo é resultado de um processo que combinou: 1) uma coalizão ampla das classes dominantes, reunindo partidos da direita tradicional, partido do judiciário, grande mídia, o grande capital, cúpulas de igrejas conservadores, setores médios reacionários, aliados  internacionais (EUA e Israel, especialmente), influência das Forças Armadas, milícias e o próprio clã Bolsonaro; 2) que o caminho foi trilhado por um golpe em três atos: o impeachment de Dilma sem crime de responsabilidade, a prisão política de Lula e as eleições fraudadas de 2018 pelo uso de caixa 2, fake news e pela ausência do candidato de preferência popular.

O programa ultraneoliberal e a necessidade de derrotar e destruir a esquerda e qualquer resistência popular deu a liga essa coalização poderosa. Para as forças da classe trabalhadora, portanto, não basta derrotar Bolsonaro, é preciso impor uma derrota de conjunto ao bloco que se constituiu e, sobretudo, ao seu programa. Isso somente será possível com a participação de milhões de pessoas, com muita mobilização social e luta cultural e ideológica. Do contrário, não reuniremos força o suficiente para impor essa derrota, pois antes outros golpes desarticularão a resistência e qualquer tentativa de retomarmos a ofensiva. A linha política da esquerda precisa ter coerência com esse diagnóstico.

Qual o problema de inciativas como essa, que tem como horizonte a “frente ampla”? Em primeiro lugar, abrem mão de pautas e agendas importantíssimas da classe trabalhadora, a exemplo da luta contra a reforma da previdência, da flexibilização dos direitos trabalhistas, da privatização de estatais, da luta contra o desemprego etc. Isso acontece porque as forças que se pretendem atrair para este tipo de frente têm justamente atuado, ao lado da extrema direita, para aplicar este programa. Basta uma rápida consulta nas votações destas matérias.

Abrindo mão destas pautas, perdemos, ou reduzimos, a nossa capacidade de mobilização da classe trabalhadora, pois são estas as questões responsáveis diretas pelo drama vivido por milhões de trabalhadores/as. Não por acaso, onde a rejeição de Bolsonaro é mais ampla é entre as pessoas que tem renda até dois salários mínimos,  uma vez que é onde o desemprego e ausência de políticas sociais está sendo mais sentida.

Um dos argumentos dos defensores de uma frente ampla, com setores da direita, é de que precisamos primeiro restabelecer o “estado de direito” e a “democracia”, para depois lutarmos pela reconquista de direitos sociais.  É uma visão equivocada. As duas lutas, por direitos democráticos e por direitos sociais, andam juntas. Em nome de uma “frente ampla”, enfraquecemos a segunda, a que justamente pode ser a base social da luta pelas liberdades democráticas e de sua ampliação.  A retomada da democracia e dos direitos sociais não será conquistada com acordos, saídas por cima ou exclusivamente pela via parlamentar e institucional. O comportamento das classes dominantes é de não é aceitar um recuo ou uma derrota nestes termos.

Se tomarmos o “Direitos Já” como esse embrião de frente ampla, os seus limites são muitos. Ela não enfrenta a luta contra o programa econômico e social ultraneoliberal, nas suas questões mais estruturais; e, tampouco, trata a luta por democracia com a profundidade exigida, como mencionamos no início do texto. Ademais, fala em defesa “das instituições da República” sem qualquer menção ao fato de que muitas destas instituições operaram pesado para criar o ambiente e a situação em que nos encontramos hoje, a exemplo do STF, da maioria do parlamento, da cúpula das Forças Armadas e do Ministério Público. Muitas das instituições que hoje tem pouca legitimidade popular. É um movimento que joga para esquerda cumprir um papel de defesa do “status quo”. Não é possível falar nestas instituições sem falar no papel que elas cumpriram no golpe e na eleição de Bolsonaro; e sem dizer também que precisamos reformá-las por meio de uma Assembleia Constituinte.

A esquerda de conjunto precisa ter bem claro que não basta derrotar Bolsonaro, é preciso derrotar sua coalização de conjunto e o seu programa econômico e social. Parte das forças de direita e centro-direita podem fazer a leitura de que o governo e seu programa é fundamental, mas que Bolsonaro pode ser um “estorvo”, pelo seu estilo e sua capacidade política. Neste contexto, a esquerda não pode ser força auxiliar de frações das classes dominantes para resolver suas crises. A classe trabalhadora e os setores populares, por meio de suas forças, devem se apresentar com independência política, colocando-se, não só contra Bolsonaro, mas seu governo e seu programa. E que esta saída somente será possível por meio de uma ampla mobilização popular e de novas eleições.

Por fim, uma frente ampla com parte da direita pode causar ainda mais confusão e desmoralização entre as forças do campo popular. Estar ao lado de organizações políticas e lideranças que há pouco estavam operando o golpe e ajudando a eleger Bolsonaro, como se nada tivesse acontecido, não é um bom caminho para reconstruir os laços e a confiança com a maioria do povo brasileiro. O caminho é o das lutas e a construção de instrumentos que tenham o compromisso de impor uma profunda derrota ao golpismo e abrir caminho para retomarmos a ofensiva, construindo transformações profundas em nosso país. Por isso, a energia da esquerda precisa ser concentrada em construir e fortalecer frentes democráticas e populares, que apontem uma saída da crise pela esquerda.

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Carta

A civilização está muito doente. Há saída?

 

Desesperar, jamais.
Aprendemos muito nestes anos…

Do balanço de perdas e danos.
Já tivemos muitos desenganos.
Já tivemos muito que chorar…

Mas agora acho que chegou a hora de fazer valer o dito popular…

Ivan Lins

 

Por Robério Paulino

A sociedade humana está profundamente doente. Há uma grave crise moral e de perspectiva da civilização. Que futuro queremos? Que tipo de sociedade almejamos? O modo de vida humano hoje, sob o capitalismo, é sustentável para o planeta? Temos o direito de extinguir milhares de espécies para nosso bem-estar? Parte importante das populações de alguns países questiona se a limitada democracia parlamentar dos regimes capitalistas é desejável ou é melhor regressar a regimes autoritários que restaurem a “ordem” perdida. Uma sociedade alternativa, como o socialismo, ainda é possível? A saída é individual ou coletiva? Trata-se de um declínio de valores morais e de profunda insegurança quanto ao futuro comum da humanidade.

Apesar de todas as desigualdades sociais, raciais, de gênero, ainda evidentes sob o capitalismo, de todos os desastres humanos e guerras observados ainda no século XX, da volta da elevação da pobreza e dos retrocessos nos direitos sociais dos últimos 40 anos, da crise de perspectiva discutida neste texto, a população humana está muito maior que há 100 anos, mais rica, mais saudável e mais longeva. Os avanços na tecnologia e na comunicação, nos transportes, na educação, na medicina e na saúde, nos remédios e vacinas, na agricultura e na produção de alimentos, se vistos em perspectiva, são indiscutíveis e impressionantes. No entanto, o sapiens, o animal que se tornou um deus, o senhor do planeta, subjugando as demais espécies, como disse Yuval Noah Harari em seu penúltimo livro, não sabe o que quer, aonde vamos, e destrói sua própria casa.

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Existe um profundo mal-estar na sociedade global, um clima de desilusão, pessimismo e ansiedade, uma grande incerteza em relação ao futuro próximo que nos aguarda, se ele será melhor ou se estamos caminhando para o abismo social e ambiental, talvez para um retorno à barbárie, um futuro de ódio e intolerância, de mais desigualdade, conflitos e novas guerras. Essa crise moral e civilizacional se estende a todos os setores, países, classes e grupos sociais e inclusive aos movimentos socialistas, às esquerdas. Ao contrário do que observava na segunda metade do século XIX, um clima de grande otimismo em relação a um futuro melhor, hoje há um clima geral de desencanto, de grande apreensão quanto ao destino da civilização. Todos sabem que algo está errado. Ouvimos muitos dizerem que desistiram do ser humano.

Na Europa, continente que se supunha mais avançado, onde nasceram grande parte das ideias políticas que embasam a civilização global atual, berço da Ciência moderna, das ideias e lutas sociais organizadas, observa-se a volta de governos nacionalistas autoritários e mesmo fascistas em vários países, da intolerância racial, do ódio e da xenofobia, que muitos imaginavam já serem parte do passado, depois da dolorosa experiência nazifascista, com a qual a humanidade parecia ter aprendido. Esse continente, que invadiu quase todo o mundo nos últimos 500 anos, que teve milhões de refugiados da ocupação nazista bem acolhidos em outros países durante a Segunda Guerra Mundial, hoje dá as costas em grande medida para os imigrantes que lhe pedem socorro, numa grande demonstração de insensibilidade, indiferença e desumanidade.

Após uma nova experiência frustrante com os democratas, os EUA elegeram um presidente conservador e bruto, Trump, eleito explorando a insatisfação e o sentimento geral contra a decadência, a desindustrialização do país, o desemprego e a insegurança, que Barack Obama, em sintonia com Wall Street, se negou e enfrentar. Este país, fundado sobre a invasão das terras alheias nos últimos 5 séculos, sobre a morte de milhões de indígenas e a escravidão negra, hoje ergue altas muralhas contra os imigrantes. Desde os anos 80 com Bush, os governos destruíram praticamente qualquer sistema de proteção social e, nas periferias de várias de suas grandes cidades, centenas de milhares voltaram a viver em barracas e acampamentos, sem fonte de renda fixa ou qualquer proteção social.

Na Ásia, a China regressou ao capitalismo e poderá ser a primeira economia mundial em poucos anos, mas seu elevado desenvolvimento econômico e elevação do nível de escolarização e de vida de sua imensa população de 1,4 bilhão de pessoas ocorre ao mesmo tempo que uma destruição ambiental sem precedentes, com a continuidade de um regime ditatorial e com suas centenas de milhões de filhos únicos educados já na lógica capitalista do enriquecimento pessoal e não mais em princípios igualitários.

No Brasil, observa-se uma onda de polarização política, com a manipulação da população pelos meios de comunicação, com eleições sendo decididas com manobras contra a candidato melhor colocado e o envio de milhões de fake news, ou seja, uma indústria de mentiras. Com a ajuda de uma imprensa golpista, o país elegeu um candidato que confessou para todo país em rede nacional na votação do impeachment, antes das eleições, ser defensor da tortura, um crime internacionalmente condenado, sem que isso tivesse maior importância para os milhões que o ouviram e votaram nele assim mesmo, o que denota um retrocesso moral e civilizatório no país. O clima doentio de polarização política destrói grupos, amizades, divide famílias.

No terreno ambiental, a degradação do planeta é assustadora e muito mais rápida do que previam os mais pessimistas dos cientistas. Muitos ecossistemas, espécies, populações selvagens, diversas variedades de plantas e animais estão diminuindo ou desaparecendo anualmente. Segundo relatórios de cientistas sérios, as emissões de gás carbônico dobraram desde 1980, levando a um aumento das temperaturas do mundo em pelo menos 0,7 C. Os mares e rios transformam-se grandes depósitos de lixo.  O imediatismo, a lógica estimulada pelo capital e suas mídias, de que tudo que importa é lucro e o consumo, a satisfação imediata e a afirmação pessoal, dissolve o espírito coletivo, a coesão social e reduz o senso de preservação de nossa casa comum.

Com o retorno do neoliberalismo mais voraz e a desindustrialização no Ocidente, as desigualdades voltaram a crescer em quase todo o mundo (talvez exceção da China e poucos países). Mas isso, até agora, não alimentou um novo ciclo de nítida luta de classes. Uma grande proporção das lutas e conflitos sociais têm tomado, antes e infelizmente, a forma de nacionalismo, racismo e xenofobia contra imigrantes, de rivalidades étnicas e religiosas que destroem países inteiros, de homofobia e outras patologias.

Infelizmente, cresce, mesmo entre os trabalhadores e os mais pobres, a visão imediatista, a crença de que ganhar é a única coisa que conta e de que ganhar – ainda que por quaisquer meios, mesmo não tão lícitos – é, em última instância, a única coisa correta a fazer. Honestidade virou artigo raro. No Brasil essa lógica ficou conhecida como Lei de Gerson. Olhando para esse quadro, o cientista político e historiador Achille Mbembe, hoje professor na Universidade de Witwatersrand, África do Sul, afirmou recentemente, de forma pessimista, que a era do humanismo está terminando, ou seja, que vivemos um uma época de retrocesso moral e civilizacional.

Na música e na cultura, ao contrário do espírito de protesto, de luta pela paz, esperança e solidariedade social entre os povos, de valores mais elevados, que se observava em parte importante da produção cultural nos anos 50 e 60 do século XX (Imagine, John Lennon, Blowin’ in the wind, Bob Dylan, Apesar de você, Chico Buarque de Holanda), hoje o que se constata é em grande medida uma banalização e a quase exclusiva erotização das letras das músicas e da produção cultural.

Em todo o mundo, os elementos de desagregação social e corrosão moral são evidentes. Nessa nova modernidade, de avanço e rápida mudança nos costumes, quebra de preconceitos, por um lado, mas por outro de relações mais efêmeras, hoje realizadas em grande medida pelas redes sociais, tudo é líquido, para usar as palavras de Zigmunt Bauman. Das amizades virtuais até os valores como solidariedade, igualdade, generosidade, condescendência, compaixão, respeito, tudo é descartável, efêmero. Declinam o sentimento coletivo, de responsabilidade social, as ideias de uma sociedade mais igualitária e solidária, tolerante e generosa, que acolha os mais pobres e mais frágeis. Estimula-se e cresce o individualismo, a indiferença, a desonestidade, o salve-se quem puder.

Nesse ambiente de insegurança econômica, corrosão moral e desesperança, surgem as tentações para a volta de governos autoritários, cresce o espaço para as seitas e religiões messiânicas, fundamentalistas, e para as psicopatias coletivas, como o ódio, a xenofobia, a intolerância e a violência. É como se o capitalismo e a humanidade mesmo não tivessem aprendido nada com o passado e com a barbárie nazista. Lembremos que Hitler ascendeu ao poder na Alemanha surfando a destruição da economia alemã e o desespero dos trabalhadores com as consequências sociais da crise do capital de 1929.

Nesse tempo de incerteza e insegurança, as religiões fundamentalistas e líderes conservadores, fascistas ou protofascistas, como Bolsonaro e Trump, crescem exatamente por prometer um retorno a certo estado de segurança, ordem, hierarquia, de grandeza nacional, volta à religião, à tradição, ainda que eles próprios não pratiquem nada disso. As massas populares mais vulneráveis e atemorizadas, acreditam que o mundo atual virou algo como um pântano amoral, que precisa ser drenado, saneado, que o mundo atual deve dar marcha a ré em todos os costumes e ideias.

Ao lado dessas patologias sociais como individualismo, o ódio, a intolerância, a desonestidade, o cinismo, a desumanidade, a falta de solidariedade, a busca do ganho individual por quaisquer meios, o declínio do sentimento coletivo, crescem outras, como a depressão, as doenças cardiovasculares etc. No Brasil, entidades de psicanalistas têm relatado um aumento na frequência aos consultórios de pessoas doentes, vítimas destas patologias coletivas, sociais, o que pode ser um fenômeno mundial.

A constatação é que, ao lado do frenético desenvolvimento econômico e especialmente tecnológico, da aceleração das comunicações e do advento das redes sociais, que encurta o tempo de todos os processos e experiências, que a tudo revolve e transforma rapidamente, a sociedade humana vive um novo período de  aumento das desigualdades entre países e classes sociais, ao mesmo tempo em que uma erosão de valores, uma corrosão do caráter, uma grave crise moral. Quais causas estão por baixo deste quadro? Neste texto queremos tentar identificar alguns desses fatores que explicam esse fenômeno e ao final sugerir algumas linhas de como enfrentá-los. Ao nosso modo de ver, identificamos pelo menos 5 razões que levam e esse cenário de declínio moral, individualismo, desesperança e ceticismo quanto a um futuro melhor.

A DECADÊNCIA DO CAPITALISMO LEVA A UM DECLÍNIO MORAL DA CIVILIZAÇÃO

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Existem fatores mais conjunturais e outros mais de longo prazo, seculares, ou de ondas longas, se assim podemos falar. Quando estudamos a história das civilizações num espaço de tempo mais dilatado, pode-se constatar que as distintas formações sociais, em geral, em sua ascensão têm um código moral um pouco mais elevado. Já seu declínio é acompanhado de uma corrosão de valores também. Estudando o império formado por Alexandre, o Grande, por exemplo, mesmo sem negar aqui os terríveis efeitos da opressão e subjugação pela violência dos povos dominados, pode-se perceber também certo ideal de “levar a civilização e a cultura” a esses povos por parte dos conquistadores. Mesmo dominados, tais povos terminavam por assimilar aspectos positivos da cultura mais desenvolvida do conquistador, como a escrita, a arquitetura e a higiene, por exemplo, e ao mesmo tempo lhes era permitido manter até certo ponto suas próprias tradições. Nos primeiros séculos do Império Romano ocorreu o mesmo. Já sua decadência foi acompanhada por uma severa decomposição nos princípios morais.

O capitalismo em seus primórdios, com sua ética protestante de sacrifício consumo de hoje em função da acumulação primitiva para a amanhã, apresentava um padrão moral um pouquinho mais elevado (Como se pode perceber em A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber); na Inglaterra, vitoriano. Mas hoje esse sistema social já é decadente e isso tem implicado em uma profunda decomposição moral de todo corpo social. O único princípio do capital atualmente é o ganho imediato a qualquer custo, a acumulação por quaisquer meios, lícitos ou ilícitos, a corrupção, ainda que isso custe mais pobreza e desigualdade social, a decomposição dos regimes políticos e a degradação do planeta. Isso termina por impregnar toda sociedade de valores imediatistas e individualistas.

O NEOLIBERALISMO, A DESINDUSTRIALIZAÇÃO E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NO OCIDENTE

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Até a crise econômica global dos anos 1970, empregos industriais mais estáveis e que pagavam melhores salários permitiam uma vida mais previsível aos trabalhadores e suas famílias, às vezes por décadas, e, portanto, valores morais menos imediatistas. A volta do neoliberalismo mais radical aos governos de países centrais, como nos EUA e na Grã-Bretanha, com Reagan e Thatcher – do que decorreu o processo de desindustrialização planejada nos EUA e em todo o Ocidente, com o fechamento de milhares fábricas e a contratação da produção na Ásia e na China -, implicou na perda ou transferência de centenas de milhões empregos mais estáveis e melhor remunerados do setor industrial para o setor de serviços, de menores salários, de muita sazonalidade (pular de galho em galho), part time, sem qualquer previsibilidade, contribuindo não só para uma precarização nas relações de trabalho como também para um declínio moral, dos valores, nas sociedades ocidentais. Esse processo ocorre em todo Ocidente, na Europa e inclusive no Brasil. Analisando esse quadro nos Estados Unidos, o sociólogo e historiador Richard Sennett, professor do MIT e da London School of Economics, sugeriu no título de seu livro mais conhecido (A corrosão do caráter) que ele estava implicando num declínio moral do tecido social.

Coloco aqui dentro, como parte do mesmo processo, como um fator que poderíamos considerar como paralelo ao neoliberalismo (ou um sexto fator, se quisermos), as novas formas de produção oriundas do Japão, conhecida como Toyotismo, que contribuiu imensamente para a erosão da solidariedade entre os trabalhadores, estimulando a competição e o individualismo entre eles, fenômeno de amplas consequências para reduzir o sentimento coletivo entre as populações.

O SIGNIFICADO DA A EXAUSTÃO DAS EXPERIÊNCIAS SOCIALISTAS E SEU IMENSO PASSIVO

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A luta contra o capital e por um mundo melhor não é apenas uma luta social, física, nas ruas e empresas, mas também uma intensa batalha ideológica. Ideias e experiências sociais mobilizam ou paralisam milhões, encantam ou desmoralizam outros tantos. O século XX começou com uma grande revolução socialista, a Revolução Russa, que prometia um mundo de igualdade, mas também de liberdade e fraternidade. Infelizmente, não foi isso que se viu. Existiram inegáveis avanços sociais nas experiências socialistas, que sempre defendemos e inclusive obrigaram o capitalismo a acelerar o passo em suas concessões sociais no Ocidente, por medo. Mas, por diversas razões, como a permanente  agressão das potências capitalistas e toda destruição gerada, o atraso material e cultural dos povos soviéticos, o isolamento internacional daquela experiência, o que se observou de fato foi uma completa deformação dos objetivos e promessas iniciais daquela revolução e a instauração de um regime de terror, monolítico, de partido único, corrupção e perseguição a todos os críticos, mesmo aqueles mais autênticos socialistas que lutaram na revolução, como Leon Trotsky.

Esse regime igualmente ditatorial terminou por conduzir à exaustão da principal tentativa de construção de uma sociedade alternativa superior no século XX, contribuindo para o grande descrédito do socialismo ainda hoje, um imenso passivo que a esquerda até hoje não entendeu, com grande parte dela negando-se a passar a limpo aquela experiência. Toda vez que discutimos com um quadro de direita em qualquer espaço, a pergunta automática que ouvimos é: “diga ai onde o socialismo deu certo?” A exaustão, a desmoralização temporária, o descrédito da ideia de uma sociedade alternativa superior ao capitalismo, contribuem para o quadro atual de desencanto e declínio moral da sociedade.

A DECEPÇÃO COM A DEMOCRACIA PARLAMENTAR CAPITALISTA E MESMO COM OS GOVERNOS PROGRESSISTAS OU DE ESQUERDA NO MUNDO

Nada tem um efeito tão desmoralResultado de imagem para democraciaizante

Nada tem um efeito tão desmoralizante e para causar revolta nas pessoas e nas sociedades do que as frustrações, as decepções com promessas não cumpridas. Elas contribuem severamente para o quadro de desesperança, ceticismo, descrença no futuro, imediatismo e corrosão dos valores na sociedade atual. Vejamos apenas alguns exemplos.

A democracia parlamentar capitalista, com eleições, é uma conquista em relação a regimes autoritários e de força, às ditaduras, mas ao mesmo tempo uma casca oca, uma máquina de enganação e desmoralização das populações. A regra é que políticos e partidos prometem aos povos aquilo que de antemão sabem que não vão cumprir, ou seja, esse sistema é a arte da enganação. Prometem governar para o povo, mas depois governam para o capital, para as grandes empresas. Basta ver a composição dos parlamentos nas democracias capitalistas hoje em dia: a maioria dos parlamentares ou são diretamente empresários, latifundiários, ou apoiados por eles. Atualmente, os parlamentos de todos os países capitalistas do mundo governam antes de tudo para o grande capital financeiro. Essa falência das democracias capitalistas em produzir avanços e, pelo contrário, gerar retrocessos sociais, abre espaço para as tentações autoritárias, para regimes de força e para a contínua desmoralização dos povos, o ceticismo e a descrença.

O efeito desmoralizante das decepções com partidos ou líderes progressistas ou de esquerda é ainda mais danoso. Pela primeira vez em sua história, os EUA elegeram um presidente de origem negra, Barack Obama. Ele prometeu em sua campanha transformações positivas, como (1) parar o processo de exportação de empregos dos EUA para a Ásia, que afetava especialmente os mais pobres e os próprios negros, e (2) construir algum sistema público de proteção social e saúde, já que nos EUA ela se dava por dentro das empresas e, com a perda de milhões de empregos, muitos trabalhadores se viram sem qualquer cobertura. Obama não fez nem uma coisa nem outra, além de discursos elegantes e polidos, governando em sintonia com Wall Street, o que levou os democratas a perderem a última eleição. Trump se elegeu em grande medida capturando esse desgaste. Nas eleições, ele foi às portas das fábricas dizer que não mais aceitaria mandar os empregos dos norte-americanos para a China. Essa é em parte a explicação do atual conflito de seu governo com aquele país. Grande parte dos trabalhadores, inclusive uma parcela dos negros, votaram em Trump, quase que como um castigo a Obama e aos democratas.

Na Grécia, depois da tremenda crise que arrasou a economia do país, que ceifou centenas de milhares de empregos e gerou muita pobreza e desespero (2008-2010) a população deu uma oportunidade ao partido de esquerda Syriza, de governar o país e mudar o quadro em favor do povo. Este partido, no entanto, contradizendo sua vocação de esquerda, não enfrentou a altura as imposições do FMI e da União Europeia, terminando por aplicar igualmente planos de austeridade contra os trabalhadores gregos e a favor dos financistas. Resultado: o povo grego acaba de dar maioria novamente a um partido conservador, a Nova Democracia, nas recentes eleições de julho de 2019.

E no Brasil? O que a decepção de setores importantes da população brasileira com os governos do PT contribuiu para o quadro atual e a ascensão de Bolsonaro? Muito. Sei do custo e da antipatia de dizer isso aqui, num momento em que a esquerda é atacada e fica clara a perseguição a Lula, pelo que defendemos sua imediata libertação. Mas, infelizmente, é uma avaliação que devemos considerar, que ainda não foi feita, mas que nenhuma análise realmente séria pode deixar de lado. Os inegáveis avanços conseguidos nos governos do PT não justificam a frustração das expectativas e a repetição das mesmas políticas liberais, a não realização de reformas prometidas ou necessárias, como a agrária, a política e a tributária. Tampouco podem justificar as alianças ou integração nos governos durante anos dos mesmos partidos e políticos capitalistas que depois produziram o impeachment, como Eduardo Cunha, Temer, Meirelles, Joaquim Levy.

Evidentemente que o papel da imprensa golpista foi essencial para o golpe contra Dilma Rousseff e para tirar Lula do páreo nas eleições. Mas o desencanto de amplos setores da população com os governos do PT pela frustração das expectativas também contribuiu para que parte do povo fosse capturado pela direita e por Bolsonaro. O único sentido desta discussão feita aqui é aprender para não cometer os mesmos equívocos futuramente.

Como dissemos ao inicio deste ponto, a frustração, a decepção das massas com a democracia capitalista e com a esquerda nas experiências nos governos tem sido um fator fundamental para o quadro de desesperança, desencanto, ceticismo e declínio moral que observamos no mundo, pois grande parte das massas dizem que “todos são iguais”, recuam politicamente ou se desencantam.

O FUTURO REPETINDO O PASSADO, DE IGNORÂNCIA, VIOLÊNCIA E PRECONCEITOS

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Há outro fator, igualmente estrutural, de longo prazo, que é o fato de que todo processo de industrialização, formação das classes trabalhadoras, urbanização dos países e educação política das massas populares ainda é muito recente. Nossa mente tende a querer que as situações e a história avancem mais rapidamente. Mas a história tem seu próprio ritmo. Saímos do feudalismo ainda ontem. O capitalismo é uma formação que só recentemente chegou à maioria dos países, antes agrários, rurais. No início do século XX, poucos países eram industrializados. Em 1950, a imensa maioria da população humana ainda estava no campo e era analfabeta, como na China, Índia, África e a maior parte da América Latina, com pouca experiencia política. Em 1850, o mundo não era a Europa industrializada sobre a qual Marx e Engels construíram seu pensamento. Mesmo a França era um país rural em 1871, época da Comuna de Paris. A população urbana do mundo só ultrapassou a população rural recentemente, em 2007.

A China, o maior país do mundo, só se industrializou e escolarizou nos últimos 70 anos; até 1949 era um país rural e analfabeto. Em 1960, o Brasil também era um país agrário e de analfabetos. Quem ler Trotsky com mais atenção, verá que a Revolução Russa não foi traída e derrotada pelo stalinismo somente, mas antes de tudo pelo atraso e pela ignorância. O stalinismo foi antes fruto desse atraso dos povos soviéticos naquele momento. Em todos esses processos, o velho se agarra ao novo como o musgo se agarra na pedra, se negando a morrer. Toda formação nova é construída em grande medida combinando elementos herdados do passado. Apesar do frenético avanço tecnológico, da vertigem das comunicações, da escolarização em massa que avança a passos largos, todo passado de incultura e ignorância da humanidade ainda está aqui bem presente, hoje, e embasa toda ideologia alienante e individualista das classes ricas. Infelizmente, como dizia Cazuza, as vezes o futuro repete o passado.

É óbvio que a direita brasileira e do mundo, as igrejas obscurantistas, estimulam o medo, o preconceito, o individualismo e o atraso. Mas é uma relação dialética, em dois sentidos. Se elas crescem é também porque se nutrem desse atraso do povo, decorrente de nosso recente passado de ignorância e incultura, desde sempre alimentado pelas elites reacionárias. Ao se sentirem abandonadas pelo Estado, parcelas importantes da população são presas fáceis para as igrejas fundamentalistas e os políticos populistas de direita. A elitização da esquerda e seu afastamento das periferias também contribuiu para isso.

Alguém pode objetar que não são só as massas populares as bases dos partidos conservadores e igrejas fundamentalistas, mas grande parte das classes médias escolarizadas também. Basta ver que o Nordeste menos escolarizado votou pela esquerda na contramão do resto do país. Com certeza. Mas aí entra também o papel da ideologia, o tipo de educação recebida por essas camadas médias, igualmente elitista, a manipulação da imprensa, além de todos os demais fatores que colocamos acima.

Bem, todos esses fatores contribuem para o quadro de declínio moral, corrosão do caráter, individualismo e desesperança que vemos no mundo hoje. Obviamente, esses elementos são potencializados pelos poderosos mecanismos de reprodução da ideologia dominante, os meios de comunicação, com a imprensa à frente, que têm um papel central neste quadro.

E A ESQUERDA E OS MOVIMENTOS SOCIAIS ESTÃO FORA OU SÃO PARTE DESSA CRISE MORAL?

O capitalismo, com sua voraz sede de lucros, seus partidos “democratas” ou conservadores, os partidos ou dirigentes fascistas, autoritários, as igrejas fundamentalistas e toda sua mídia não têm o que oferecer à humanidade, senão o risco de nos levar à destruição da civilização, nos conduzir de volta à barbárie. Se alguma saída para melhor pode ser dada para a humanidade ela tem que vir das classes trabalhadoras, dos povos, dos movimentos sociais, da juventude irreverente que luta nas ruas, dos partidos socialistas e de esquerda, porque só eles se propõem explicitamente a dar uma alternativa à decadência do capital.

Mas infelizmente, quem espera coerência total e santidade nas esquerdas e nos movimentos sociais quebra a cara. Os movimentos sociais, as classes trabalhadoras, os partidos de esquerda, por mais progressistas, socialistas, revolucionários, que se proclamem e se proponham, também estão imersos nesse meio decadente e moralmente podre que observamos no mundo e, portanto, também vivem uma corrosão moral. Muitas vezes repetem em sua prática ou em seu meio os mesmos métodos que condenam em seus discursos.

A primeira manifestação dessa constatação é a incoerência, ou mesmo as traições, a distância entre o que propõem às massas populares em eleições para chegar aos governos e o que de fato fazem quando chegam ao controle de países, estados, prefeituras etc., contradizendo as promessas. Isso contribui fortemente para a desmoralização das populações, como já analisamos acima.

Mas além da incoerência na política, a maior parte da esquerda, mesmo aquela que se propõe mais pura, autêntica e revolucionária, pratica nos seus espaços muitas vezes os mesmos métodos autoritários, burocráticos e grosseiros que critica nas organizações e partidos capitalistas ou conservadores. Essa é uma das razões para as suas constantes divisões, a histórica fragmentação do campo da esquerda.

Uma constatação disso é que a maioria desses grupos ou organizações até hoje, mesmo depois do desastre no Leste Europeu no final da década de 1980, não fez qualquer autocrítica, uma discussão aprofundada sobre as razões daquele processo, ou rompeu com as concepções stalinistas autoritárias de organização ou governos, baseados em partido único e repressão aos opositores, mesmo quando são de esquerda. Essa parte da esquerda ainda não entendeu o imenso passivo que carregamos, aproveitado pelos ideólogos do capital. Não percebeu que sem passar a limpo toda a experiência socialista do século XX e reconhecer suas conquistas, mas também seus graves erros, será difícil ganhar novamente a confiança das populações para uma sociedade alternativa.

Tristemente, são comuns também no campo da esquerda, os métodos igualmente burocráticos, a grosseria, a desonestidade, as manobras de todo tipo, as atitudes ilícitas, mesmo ilegais, usadas por certos grupos para ganharem um sindicato, uma entidade, a direção em um partido, ou um mandato eletivo contra outro grupo do mesmo campo. Contradizendo o que criticam nos partidos da ordem, algumas correntes de esquerda socialista se comportam como verdadeiros grupos nacionais de trapaceiros na defesa de seus interesses imediatos e do crescimento de seu grupo, sacrificando os interesses gerais de todo movimento, sem ver como isso contribui para fragmentar, enfraquecer e desmoralizar os movimentos sociais, as entidades, as pessoas. Constroem destruindo.

Para justificar tais práticas argumentam que sua política está sempre correta e que, portanto, os métodos, os procedimentos, passam a ser secundários, numa espécie de “os fins justificam os meios”, sejam eles quais forem. Mas ninguém acerta sempre. Infelizmente, honestidade, humildade e autocrítica são também artigos raros mesmo dentro da esquerda. Um exemplo é que grupos de esquerda socialista apoiaram com entusiasmo a Operação Lava Jato em seus inícios. Mas mesmo com as revelações recentes do Intercept e a denúncia das manobras daquela operação contra as esquerdas, ou seja, seu caráter reacionário, esses grupos até hoje não tiveram a dignidade e a humildade de fazerem qualquer autocrítica.

Todas essas práticas, que ocorrem não só no Brasil, mas em todo o mundo, seja na política seja em seus métodos, em seus procedimentos equivocados, joga água no moinho do fenômeno que analisamos neste texto, que é o declínio moral, a corrosão do caráter, a desmoralização, o desencanto das pessoas, que se observa nas sociedades capitalistas. Essa discussão, obviamente, não tem qualquer objetivo de atacar a esquerda, da qual faço parte, mas servir como um humilde alerta de que, se ela quer ganhar novamente a confiança de populações mais amplas, precisa antes de tudo mudar radicalmente seus próprios métodos, não podendo agir igual aos partidos da ordem que critica.

O QUE FAZER?

Nesta simples carta não tenho qualquer intenção de dar aula para ninguém , apenas ajudar a refletir, identificar e contrapor uma tendência muito perigosa para a civilização humana que é a decadência moral ou dos valores, a onda de individualismo, que se observa na sociedade global e também no Brasil, que, como já dito, ameaça a própria civilização. O que fazer? Não falo aqui apenas para as pessoas de esquerda, mas para todos aqueles que têm lido minhas cartas, me retornado com comentários e almejam um mundo melhor. Arrisco aqui três simples sugestões, sem nenhuma pretensão de pregar a verdade a ninguém.

Primeiro reforçar a luta coletiva, as mobilizações dos trabalhadores, dos oprimidos, as entidades e grupos sociais, apoiar a luta por demandas justas e progressivas dos povos, dos trabalhadores, dos jovens. Não há saídas individuais para uma sociedade de 7 bilhões de seres, para países com centenas de milhões de pessoas. Somos cada vez mais um mundo só. Evidentemente que essa luta será travada também em todos os espaços. Nas ruas, nas entidades, mas igualmente no campo das ideais, nas redes sociais (com todo cuidado necessário e sem agressões), nas empresas, nas escolas, nos grupos sociais, nas famílias, em todos os espaços onde possamos agir. Mas só o movimento de milhões de pessoas nas ruas será capaz de impor medo e limites à ganância e à vocação destrutiva do capital e seus defensores.

Em segundo, é preciso estudar, estudar e reestudar a história humana, das civilizações, das sociedades e dos países, do Brasil, das lutas sociais, para entender de onde viemos, para onde podemos ir. A partir do estudo da história, compreender os riscos que nos cercam e o que precisamos fazer.

Por último, fazer a coisa certa. Não adianta apenas jogar na cara das pessoas arrogantemente nossa visão de mundo futuro, como um tijolo, e depois praticar barbaridades. É possível agir de forma solidária, honesta, verdadeiramente democrática, humilde, paciente, tolerante, fraterna, ambientalmente sustentável. Ao mesmo tempo respeitar o esforço e a história de todos, não somente daqueles que nos agradam ou de nossos grupos. Ou seja, agir de acordo com o que pregamos em nossos discursos, em todos os espaços em que estamos. Isso não é coisa de religiosos, declaração de santidade, mas sim de todos aqueles que se propõem a construir um mundo novo. Uma coisa que aprendemos em todos estes anos é a força do exemplo, como exemplos de ações coletivas ou individuais corretas, solidárias, generosas, encantam e motivam as pessoas, ajudando a contrapor todo o processo de desencanto, de declínio moral e busca de saídas individuais que observamos no capitalismo atual e no mundo hoje, discutido neste texto.

Do que se trata é de evitar o pior para a humanidade, o risco de volta da civilização à barbárie. Felizmente, nem tudo é negativo. Surgem novos movimentos sociais, uma nova juventude irreverente está nas ruas em muitos países, o mundo avança rapidamente na escolarização, as pessoas estão cada vez mais informadas, setores sociais antes oprimidos se organizam e se apresentam. Os governos montados em fraudes, mentiras, rapidamente se desgastam. A situação durante a ocupação nazista na Europa na Segunda Grande Guerra era muito pior que hoje. Nos milhares de anos de nossa evolução, nossa espécie foi capaz de superar as dificuldades e achar o caminho correto. Poderá novamente encontrar a saída para salvar a civilização e preservar todos os tipos de vida no planeta. Mas é preciso acelerar o passo. Enquanto é tempo.

 

Londres, 31/08/2019

Robério Paulino

 

 

 

 

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Em vídeo, Beto defende Bolsonaro, ataca a esquerda e diz que indústria salineira não está prejudicada

O deputado federal Beto Rosado (PP) reagiu às críticas de que estaria omisso após o Governo Federal prorrogar a suspensão da medida antidumping que prejudica a indústria salineira.

Segundo Beto, há uma ciumeira dos partidos de esquerda porque o presidente Jair Bolsonaro (PSL) salvou a indústria salineira. Ele ainda atacou setores da imprensa de mentir sobre o tema. O parlamentar usou uma expressão semelhante à usada por esta página (ver AQUI) para acusa-la de mentir.

O deputado ainda garantiu que a indústria salineira não se prejudica com a concorrência do sal chileno.

Confira:

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Lula faz um ano na cadeia à espera do STJ e empenhado em controlar o PT

Homem segura cartaz pedindo liberdade para o ex-presidente Lula, no dia 31 de março (Foto: LEO CORREA/AP)

Por Felipe Betim e Afonso Benites

El País

A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa um ano neste domingo, 7 de abril, com o PT tentando reanimar a militância com atos pelo “Lula Livre” e adiando apenas para o segundo semestre a troca de poder na legenda, que ainda disputa espaço para se firmar como protagonista na oposição ao presidente Jair Bolsonaro (PSL). O consenso no partido é o de que as condenações por corrupção passiva e lavagem de dinheiro nos casos envolvendo o triplex do Guarujá e o sítio de Atibaia — 12 anos e 11 meses em ambos os casos — foram injustas e de que a prisão do ex-presidente é política. Na sigla, os atos pelo ex-presidente são uma forma não só de manter a pressão sobre o Judiciário como também de manter petistas e os movimentos sociais mais próximos unidos sob uma rara bandeira comum.

Da cadeia em Curitiba, Lula acompanha as discussões no partido, cuja eleição interna adiada tem potencial para, pela primeira vez, não corresponder com a vontade do ex-presidente, que já demonstrou seu desejo em manter a deputada federal Gleisi Hoffman na liderança. Com Gleisi na presidência, a influência de Lula nas decisões do partido estariam garantidas. Ao EL PAÍS, a deputada diz que o ex-presidente recebe informes das reuniões do partido. “Ele é o nosso presidente de honra. É natural e importante que ele receba as informações.Quando eu posso, escrevo cartas, porque essas ele pode receber. Trato das reuniões dos diretórios, das reuniões que fazemos, das decisões que tomamos”, contou Gleisi.

No plano legal, as esperanças de uma absolvição e soltura do petista são escassas. O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Antonio Dias Toffoli, decidiu adiar o julgamento sobre a constitucionalidade da prisão após a condenação em segunda instância, que estava marcada para a quarta-feira dia 10 e teria repercussão no caso. Agora, residem no recurso levado pela defesa ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o primeiro tribunal superior que analisará a sentença em segunda instância do caso Triplex — o caso do sítio Atibaia só foi julgado em primeira instância. Tanto o STJ como o STF só analisaram até o momento pedidos de soltura do ex-presidente, mas não a condenação em si. Ainda não há uma data marcada para que a 5ª turma do STJ se reúna, mas a defesa espera que isso ocorra em breve. Segundo o advogado Cristiano Zanin, a defesa pede e enfatiza no recurso a anulação do processo nas instâncias inferiores ou uma absolvição. Também apresenta argumentos auxiliares que poderiam levar a uma revisão do tamanho da pena — o que pode resultar, por exemplo, em prisão domiciliar — ou a prescrição do caso.

A defesa contesta as acusações e considera que não há provas suficientes de que a OAS presenteou o ex-presidente com um triplex no Guarujá como pagamento de propina por contratos na Petrobras. Apresenta ainda um leque de argumentos, como uma suposta falta de imparcialidade do juiz Sergio Moro — hoje ministro da Justiça de Bolsonaro— ou a negativa de que uma prova pericial no processo fosse produzida. Segundo Zanin, a defesa também contesta a competência da Justiça Federal para tratar do caso com base em suas decisões do Supremo. A primeira, de 2015, resultou no fatiamento da Lava Jato e deixou nas mãos da força tarefa de Curitiba apenas os casos relativos a corrupção na Petrobras. A defesa acredita que o caso não tem relação com o escândalo envolvendo a petroleira, embora a sentença condenatória estabeleça uma relação entre os contratos entre empreitas e a Petrobras com o triplex reformado que a OAS teria repassado para Lula. A segunda e mais recente decisão do STF, por seis votos a cinco, determinou que cabe a Justiça Eleitoral julgar crimes comuns, como os de corrupção e lavagem de dinheiro, conexos com delitos eleitorais de caixa 2.

“A jurisprudência do STJ é incompatível com a condenação do ex-presidente. Então, estamos pedindo que a Corte reafirme sua própria jurisprudência”, explica Zanin ao EL PAÍS. O problema é que, de acordo com uma pesquisa realizada pela Corte com base nos julgamentos de 69.000 recursos entre 2015 e 2017, apenas 0,62% dos casos julgados no STJ reverteram totalmente as decisões das instâncias inferiores e resultaram na absolvição do réu. A mesma pesquisa indicou que em 1,02% dos casos os ministros da 5ª e 6ª turma reverteram a pena de prisão por uma pena “restritiva de direitos”, como a prestação de serviços comunitários. Em 0,76% dos casos foi reconhecida a prescrição. Para Zanin, contudo, o caso do ex-presidente é peculiar. “Estamos vendo ao longo do tempo a ocorrência de diversas ilegalidades e abusos que precisam ser coibidos”, diz ele, no momento que a o entorno de Lula se queixa da falta de recursos para tocar a própria defesa. Há bens e contas bancárias do ex-presidente bloqueados por ordem de Moro e, por isso, há ações que buscam arrecadar dinheiro para a causa. Nesta semana, um grupo de fotógrafos anunciou ter arrecadado mais de 600.000 reais leiloando fotos históricas do petista.

Um PT em busca de protagonismo

No campo político os obstáculos não são menores. O PT tem a maior bancada na Câmara, com 55 deputados — um a mais que o PSL de Bolsonaro —, e é a maior força de oposição ao Governo. Mas, por ora, continua apostando suas energias na campanha pelo “Lula Livre” enquanto que as pesquisas indicam uma cristalização do apoio popular à prisão do ex-presidente — segundo o Atlas Político, cerca de 57,9% do eleitorado. “O partido ficou muito preso a isso. Não sei se dentro do partido existe consenso sobre o que fazer. Enquanto isso, o ‘Lula Livre’ dá certa unidade de ação para a máquina partidária. É algo que mantém todos unidos”, explica o sociólogo Celso Rocha de Barros.

Para ele, a “atualização” do PT ainda depende de como o Governo Bolsonaro, que completa cem dias nesta semana com a popularidade em queda, vai se sair. Ainda assim, ele chama atenção para o fato de que, embora numericamente maior, é mais comum ver lideranças de outros partidos progressistas, como os deputados Alessandro Molon (PSB), Tabata Amaral (PDT) ou Marcelo Freixo (PSOL), na linha de frente da oposição. “O partido ainda não assumiu uma liderança lá dentro, porque está preso a essas questões”, explica. Em jogo está também uma disputa também no campo progressista pela hegemonia, ocupada pelo PT há 30 anos.  “Se eles querem substituir o PT, precisam atrair as pessoas que gostam o PT. O Ciro Gomes, por exemplo, pela suas declarações e posturas, acaba sendo antipático para os eleitores PT. Além disso, essas pessoas foram coadjuvantes durante muito tempo e não precisaram se posicionar sobre questões econômicas e políticas de governo. Isso ficava na conta do PT”, pondera Rocha de Barros. “No mínimo”, explica ele, “a competição vai fazer bem e vai obrigar os petistas a se mexerem”.

Essa renovação depende também da liderança do partido, hoje nas mãos de Gleisi Hoffmann, apesar das ressalvas de alguns petistas. A política paranaense é considerada uma das responsáveis por manter como prioridade do partido a pauta do “Lula Livre”, enquanto há pouco debate sobre renovação partidária e outras questões programáticas a um ano e meio das eleições municipais. “Nós consideramos o Lula um preso político. Lula é a grande liderança política e popular desse Brasil. Depois dele não surgiu mais ninguém com essa envergadura, com essa grandeza, com esse poder de mobilização”, reafirma Gleisi.

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O racismo de Ciro Gomes e a hipocrisia da esquerda

Ciro-Gomes-PDT

Por Rodrigo Constantino

Ciro Gomes é incorrigível. Como se brinca no futebol, esse daí nem é preciso marcar, pois a natureza o faz. É só dar corda que o bicho se enforca, tal como uma moreia fisgada no anzol. É colocar um microfone à sua frente e deixa-lo falar à vontade que logo, no meio de sua verborragia com afetação pseudo-acadêmica e os vários números chutados, virá algum impropério fatal.

Dessa vez o pré-candidato deixou transparecer todo seu racismo numa entrevista na rádio Jovem Pan. Sem que alguém tivesse mencionado o nome do rapaz, Ciro puxou da cartola o vereador do DEM Fernando Holiday, ligado ao MBL, para acusa-lo de “negro capitãozinho do mato”. Não há “contexto” que justifique tal injúria racial.

Ciro é mestre em mentir, em negar o que disse ou tentar inventar um pretexto, mas dessa vez ficou claro demais: foi puro racismo mesmo. Aquele que adota postura de coronelzinho nordestino, que queria sequestrar Lula para protege-lo da Justiça, que receberia o juiz Sergio Moro “à bala”, pensa que negros não podem ser liberais, pois isso seria agir como um “capitãozinho do mato”, um traidor da raça. Negro só se for de esquerda, como ele, Ciro.

Essa mentalidade, infelizmente, é muito comum na esquerda, e vem desde o marxismo. O proletário só servia se fosse socialista, caso contrário era um traidor, um instrumento de exploração do burguês, por meio da alienação ou compra. Da mesma forma, o negro não existe como gente, como indivíduo, para um típico esquerdista. É somente uma parte do “coletivo”, e só presta se endossar as bandeiras da própria esquerda.

Que alguém seja julgado só pela cor da pele em pleno século XXI é algo realmente nefasto. E é justamente o que faz a esquerda das políticas de identidade. Foram os blogs podres ligados ao PT que atacaram Joaquim Barbosa com base em sua cor, não liberais. A esquerda usa os negros como mascotes, contanto que sejam capachos, obedientes, e se prestem ao papel determinado pelas elites brancas esquerdistas.

A prova dessa hipocrisia de quem fala em nome das minorias e costuma atacar a direita pelo suposto racismo está no silêncio constrangedor e ensurdecedor das lideranças esquerdistas e dos movimentos raciais. Não saíram em defesa do jovem Holiday, e tampouco partiram para o ataque contra Ciro. Só querem “lacrar” nas redes sociais quando o alvo é de direita, demonstrando que não ligam a mínima para as pessoas de carne e osso, para os negros de fato. É asqueroso!

E que conste a indecência do próprio DEM, que também optou por fazer vista grossa ao ataque racista e gratuito de Ciro, sem sair em defesa de seu vereador. O partido de Rodrigo Maia, afinal, tem mantido conversas com o pedetista escolhido pelo Partido Comunista Chinês como melhor candidato, o que já diz muito sobre ele. O DEM, assim, comprova uma vez mais ser um partido fisiológico e sem princípios, muito menos liberais.

O vereador ligado ao MBL já avisou que vai reagir pelas vias judiciais. Está certo e em seu direito. O problema é que nosso sistema judiciário também parece ter uma seletividade imensa quando se trata de julgar falas racistas: se o político for associado à direita, o estardalhaço é grande, mas quando se trata de um esquerdista radical feito Ciro, ou então Lula, aí há uma enorme boa vontade em se compreender o “contexto”.

Eis o que sobrou para a esquerda nessa eleição: apoiar um machista, racista e autoritário, além de destemperado. E a esquerda ainda tem a pecha de tentar monopolizar a defesa das minorias. Seria cômico, não fosse trágico…