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Política de Estado Mínimo em processo de morte: sobreviverá ao coronavírus?

Por Maria Marleide da Cunha Matias*

A pandemia causada pelo novo coronavírus revela para o mundo a incapacidade do capitalismo neoliberal fundado na especulação do capital financeiro e livre mercado, de enfrentar a crise humanitária global. A pandemia Covid-19 já matou 139 mil pessoas (até o momento em que escrevia esse texto), em sua maioria localizadas nas grandes potências mundiais, sendo o maior número de mortes nos Estados Unidos. Do ponto de vista das políticas, estas mortes têm revelado para o mundo o retumbante fracasso das políticas neoliberais de minimização do estado e consequente limitação do financiamento das políticas públicas de proteção social, posto em prática para fazer reinar o livre mercado. A questão é: esse fracasso da política neoliberal de Estado Mínimo será reconhecido ou levará a inspiração de novas engenhosidades de intervenção neoliberal no estado? Haverá um recuo tático do neoliberalismo no pós-pandemia?
No presente ensaio reflito sobre o processo de morte do Estado-Mínimo enquanto um dos pilares do neoliberalismo, ameaçado pela pandemia covid19 que vem escancarar ao mundo as entranhas da vulnerabilidade do livre mercado e da sua incapacidade de atender as necessidades da humanidade. Lançamos luz sobre a necessidade de um Estado forte de proteção social para sair do caos. Inicialmente farei um breve comentário sobre a ideia de Estado-mínimo enquanto projeto político para depois refletir sobre a sua incapacidade de sobreviver a pandemia.

A demissão do Estado e a admissão da empresa

É importante iniciar este tópico esclarecendo que a expressão “demissão do Estado” não tem a pretensão de afirmar o colapso do Estado, mas sim de chamar a atenção para as profundas alterações que ele vem sofrendo na redução da sua esfera de ação. Assim, o Estado vive um recuo de sua atuação no âmbito de provedor das políticas sociais, ao passo que ocorre um alargamento do espaço de atuação empresarial e internalização dos princípios do mercado no âmbito da esfera pública, portanto, uma admissão da empresa.
As primeiras décadas do século XXI revelam o fortalecimento do poder de conglomerados econômicos, que concentra riqueza, ciência e tecnologia capaz de instaurar uma matriz ideológica fundada no mercado como regulador de toda a vida social. É posto em prática um racionalismo de mercado que reduz todas as coisas à mercadoria e transforma todas as pessoas em agentes econômicos. O discurso de racionalismo de mercado é de um lado, extremamente poderoso e unificador de políticas e corporações econômicas; de outro lado, ele povoa o senso comum, impondo como significações legítimas as crenças e valores dos que detêm o capital econômico e cultural aos que não detém capital nenhum. É por essa incorporação sutil dos valores dos dominantes que a “Miséria do Mundo” (Bourdieu, 2012) se reproduz até mesmo entre os dominados.
Nesse novo modelo de reorganização do capital, ganham força, em vários países – inicialmente, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Austrália, e posteriormente na Europa Continental e Brasil – ideias neoliberais denunciadoras da ineficácia do Estado como provedor dos serviços públicos. No interesse de demolir a ideia de serviço público, o liberalismo econômico é apresentado como condição suficiente para a liberdade política, enquanto o intervencionismo do Estado é assimilado ao totalitarismo. Dessa forma, associa-se, de acordo com Bourdieu (2012, p. 217), eficácia e modernidade à empresa privada, e arcaísmo e ineficácia ao serviço público. Nesse sentido, uma aliança entre organismos multilaterais e instituições regionais põe em jogo forte poder econômico, político e ideológico que atua na implantação de um novo paradigma que prega o enfraquecimento do Estado, forçando o seu recuo em ações sociais estruturais que asseguravam os mais elementares serviços públicos, e na garantia de direitos, ao mesmo tempo que incentiva o consumismo, a produtividade, a competitividade e a eficiência valorizados pelo mercado.
Segundo essa lógica neoliberal, os conceitos empregados pelo setor privado são considerados mais eficazes e mais igualitários (livre concorrência), portanto devem ser assimilados pelo setor público que carece de “modernização”. Desse modo, mudam-se a linguagem e a concepção do que é ser público: a) a relação com o usuário transforma-se na relação com o cliente; b) os serviços públicos mais rentáveis são entregues à empresa privada, que fica protegida dos riscos financeiros, ocasionando uma restrição da esfera pública e uma ampliação dos espaços privados; c) os trabalhadores do serviço público são responsabilizados pela ineficiência e excesso de burocracia do Estado e atacados por se beneficiarem da função pública, construindo estatutos que os protegem contra os riscos da livre empresa; d) entra em curso um desmonte dos direitos sociais coerente com o ideário da desregulamentação, flexibilização e privatização. A defesa desse paradigma de gestão pública é que a aplicação de estratégias do modelo gerencial do setor privado resultará em eficiência, eficácia e produtividade nas instituições organizacionais.
O objetivo da lógica de diminuição do papel do Estado é arrancar-lhe todas as áreas capazes de gerar lucro, além de reduzir a quase zero os gastos com a gestão social da vida pública, o que significa se limitar a uma atuação do que Bourdieu (2012) chama de “caridade de Estado”, para designar uma política que visa simplesmente corrigir os efeitos da distribuição desigual de capital econômico e cultural destinada a uma parte de “pobres merecedores”. Vários países, inclusive o Brasil, se submeteram a essa lógica. Agora, em tempo de crise aguda provocada por uma pandemia a humanidade sofre as consequências, mais notadamente em virtude da ausência de um sistema público de saúde. A questão é: aprenderemos a lição e tomaremos o caminho de volta?

O Estado Mínimo incapaz sobreviverá a pandemia?

O que se tem visto no mundo é que os países que investiram no fortalecimento do Estado, no desenvolvimento de sólidos sistemas de saúde pública e de proteção social estão conseguindo minimizar os efeitos da onda devastadora da pandemia. Segundo Boa ventura de Souza Santos “ os governos com menos lealdade ao ideário neoliberal são os que estão a actuar mais eficazmente contra a pandemia, independentemente do regime político. Basta mencionar a Taiwan, Coreia do Sul, Singapura e China (2020, 24-25)”.
Infelizmente, o Brasil caiu nas promessas ilusórias do neoliberalismo e deu prioridade ao mercado em detrimento do Estado. Mergulhou na privatização de áreas essenciais como água, energia, educação, saúde, desmontou o sistema de seguridade social, precarizou o Sistema Público de Saúde – SUS, reduziu investimentos em ciência e tecnologia, minando a capacidade do Estado em responder a qualquer crise. A partir de 2016, o governo brasileiro pôs em ação uma avalanche de desinvestimento em políticas públicas de proteção social e retirada de direitos da classe trabalhadora tornando a população cada vez mais indefesa. E para piorar o quadro de dificuldades diante de uma pandemia que já levou a morte mais de dois mil brasileiros(as), o presidente Jair Bolsonaro, ignora as recomendações técnico-científicas da Organização Mundial da Saúde e, de forma irresponsável, incentiva a população a romper o distanciamento social e promove a anticiência.
Quanto maior o grau de Estado-Mínimo, tanto maiores serão as consequências da pandemia na vida das pessoas e maiores a necessidade de aporte de recursos financeiros para socorrer as empresas e assegurar os empregos e renda mínima. Os países irão se endividar mais ainda para pagar os gastos com a pandemia e no final o povo vai pagar a conta a juros altos, caso não se aprenda a lição.
O período pós-pandemia será momento de escolhas que apontarão o quão estaremos preparados para as crises futuras. Ignoraremos o fracasso do Estado Mínimo colocando em curso mais políticas de austeridade e desmonte dos serviços públicos? Ou retornaremos o caminho e desenvolveremos um Estado forte que tome as rédias do mercado e cumpra seu papel de indutor e provedor de políticas sociais? Sobreviverá a pós-pandemia a política neoliberal de Estado Mínimo ou renascerá um novo Estado? As lições estão na nossa cara, resta saber se vamos aprendê-las.
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*É Mestre em Educação pela UERN.

Referências Bibliográficas
BOURDIEU, P. A miséria do mundo. 9. ed. Petrópolis, RJ. Vozes, 2012.
SANTOS, B. S. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra. Edições Almedina, 2020

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Flávio Rocha e as contradições de um defensor do “estado mínimo” que busca financiamentos estatais

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Hoje o ex-deputado federal Flávio Rocha desembarca em Mossoró para lançar o “Movimento Brasil 200”, às 15h, no auditório do Garbos Recepções e Eventos. A iniciativa não deixa de ser interessante porque propõe um debate honesto a partir de elementos de uma direita democrática que o Brasil precisa para estancar as alternativas autoritárias que estão colocando a cabeça para fora após mais de 30 anos de silêncio.

Primeiro é preciso lembrar que é importante sim que a direita e a esquerda façam um debate honesto sobre questões sociais, economia, saúde, segurança, educação e, em menor escala, temas comportamentais que só servem para expor uma enfadonha histeria conservadora.

Entendo que o “Movimento Brasil 200” é importante nesse sentido, principalmente se conseguir impor no campo da direita assumida ideias democráticas.

No entanto, o problema está no idealizador do projeto. Flávio Rocha que prega o “estado mínimo” num dos países mais desiguais do planeta onde os seis mais ricos reúnem uma fortuna equivalente aos 100 milhões mais pobres segundo relatório da ONG britânica Oxfam.

Além disso, Flávio Rocha, dono da gigante Richuelo, é um empreendedor que curte um financiamento público e uma isenção fiscal. Entre 2009 e 2016, ele pegou mais de R$ 1,4 bilhão em empréstimos no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a sua Guararapes deixou de pagar R$ 542 milhões ao erário graças ao programa de isenção de impostos. Ao mesmo tempo, Flávio Rocha se disse “vítima do Estado” e defendeu a extinção do BNDES. “Pelo que você está falando parece que um aluno liberal, por exemplo, não pode estudar na UFRN, da mesma forma que eu que sou um liberal não posso usar uma estrada daqui até o aeroporto. Estou dizendo é que não devem existir esses mecanismos de deformação. Não tem que ter o BNDES. Agora seria uma penalização se toda empresa têxtil tivesse acesso ao crédito do BNDES e o Rio Grande do Norte não tivesse o mesmo acesso. Mas eu quero lhe dizer que eu preferia que não existisse BNDES porque o BNDES é uma máquina de quem sabe fazer para dar para quem sabe conversar. Nós somos muito melhores em fazer do que conversar, mas temos que conversar, fazer power point, botar uma gravata, mostrar nosso projeto aqui na fábrica de Extremoz para não sair fora do jogo”, justificou Flávio Rocha em entrevista a Agência Saiba Mais.

Flávio encara um processo na Justiça do Trabalho em que acusado de irregularidades nas relações trabalhistas nas facções que prestam serviços à Guararapes. Na ação de R$ 38 milhões ele se defende afirmando que gerou empregos ao realizar o sonho de levar desenvolvimento para o interior do Rio Grande do Norte através do Pró-Sertão. Não é bem o que falou o diretor industrial da Guararapes Jairo Amorim em depoimento à Justiça do Trabalho que explicou que o projeto teve a finalidade de diminuir custos e garantir mais agilidade na entrega dos produtos (que demoravam até seis meses para chegar da China) para a Guararapes. “Em função disso, apresentei à empresa que era melhor repatriar produtos porque ganhava em tempo de entrega. Reduzimos de seis meses para 45 dias com as oficinas de costura e, (produzindo) em outros Estados, recebíamos com 60 dias. Percebendo isso, a empresa aprovou a proposta e começamos a verificar o potencial que já havia em algumas oficinas do interior que não temos na Guararapes. E fui ao interior verificar se essas oficinas eram legais. Me surpreendi com o nível das oficinas. A primeira que visitei foi em Acari. Aprovado o modelo (do programa Pro-Sertão) pelo Governo do Estado, via secretaria de Desenvolvimento Econômico, vimos a oportunidade de fomento industrial”, afirmou Jairo em depoimento reproduzido pela Agência Saiba Maias.

As facções do Pró-Sertão foram um grande negócio para o empresário “vítima do Estado”.

A ideia do “Movimento Brasil 200” é importante e tende a enriquecer o debate dando aos liberais uma relevância maior e mostrando que a direita é algo além de ideias toscas e preconceituosas. Mas as contradições sempre vão perseguir seu idealizador.

Nota do Blog: eu, jornalista Bruno Barreto, não tenho nada contra empresários buscarem financiamentos em bancos estatais. Apenas fiz uma observação nesse texto quanto à contradição de quem prega o “estado mínimo” e utiliza-se de benefícios estatais para projetos particulares.

Foto: UOL