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A democracia militante

Por Rogério Tadeu Romano* 

I – O NEOFACISMO

O fato que foi noticiado pelo site do Estadão, em 12 de setembro do corrente ano, nos traz preocupação:

‘Cem anos depois da chegada do líder fascista ao poder, o culto a Benito Mussolini se mantém intacto entre o povo de Predappio, onde nasceu e foi enterrado. Seu túmulo, localizado na cripta da capela da sua família, atrai dezenas de milhares de visitantes todos os anos.

Nostalgia ou curiosidade, muitas pessoas transitam diante dos restos mortais de “il Duce”, cujo legado segue forte no partido pós-fascista Irmãos da Itália. Comandada por Giorgia Meloni, a legenda lidera as pesquisas para as eleições parlamentares, marcadas para 25 de setembro.

Na cripta, decorada com um busto branco de Mussolini, um livro dourado colocado diante do sarcófago de pedra, coberto com a bandeira italiana, está repleto de mensagens amorosas: “Nunca vou te esquecer”, “vamos renascer”, “volta!”.”

Hoje o movimento neofacista no Brasil  se apresenta sob a forma do bolsonarismo.

Esse neofascismo no mundo ganha cada vez mais adeptos. Veja-se o que ocorre na Hungria, na Polônia.

Na Suécia, com raízes neonazistas,  o partido Democratas da Suécia (SD) conquistou mais de 20% dos votos nas eleições do dia 10 de setembro do corrente ano, e pode fazer parte do governo pela primeira vez na História.

No Brasil, o desfile “cívico-militar”, no 7 de setembro de 2022, deve ser visto como um alerta para os que amam a democracia. Aliás, Bolsonaro é um personagem tipicamente de extrema-direita que não convive com os ideais democráticos.

Disse bem Mathias Alencastro, em artigo para a Folha, publicado em 12 de setembro de 2022, que Jair Bolsonaro é de extrema-direita.

Guilherme Caetano(O Globo) salientou:

“Uma das mais notáveis mudanças foi a aceleração da internacionalização da extrema-direita brasileira, agora ator global de peso, diz Odilon Caldeira Neto, coordenador do Observatório da Extrema Direita. E, após as derrotas de Donald Trump nos EUA e José Antonio Kast no Chile, as eleições brasileiras, afirma, ganharam mais relevância:

— O Brasil passou de receptor a produtor de premissas de extrema direita. Não à toa, Steve Bannon tem muito interesse na eleição daqui — diz.

O ex-conselheiro político do ex-presidente Trump foi considerado um dos responsáveis pela vitória do republicano em 2016. E antes mesmo de assumir a Presidência, Bolsonaro já mantinha contato com Bannon, relação cujo elo sempre foi o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).”

II – O FASCISMO

O fascismo nos evoca episódios de triste memória.

O fascismo é diferenciado das ditaduras militares porque o seu poder está fundamentado em organizações de massas e tem uma autoridade única. Os seus membros são na sua grande maioria provenientes da classe operária e da pequena burguesia rural e urbana, ou seja, dos ameaçados pelos fortes intervenientes do grande capital e do sindicalismo comunista.

Quando o fascismo se estabelece no poder, aceita a presença do grande capital e se impõe de forma disciplinadora, impedindo que as organizações operárias defendam a luta de classes (sindicatos, partidos políticos).

O fascismo é caracterizado por uma reação contra o movimento democrático que surgiu graças à Revolução Francesa, assim como pela furiosa oposição às concepções liberais e socialistas.

O termo fascismo passou a ser usado para englobar tanto os regimes diretamente ligados ao eixo Roma-Berlim e seus aliados, como os sistemas de autoridade que atribuíam ao estado funções acima daquelas que as democracias lhe entregavam. É o caso das referências ao “fascismo” espanhol, brasileiro, turco, português, entre outros.

Em 1945, com a queda dos principais estados fascistas e com a divulgação das atrocidades cometidas, o movimento fascista perdeu possibilidades de grandes mobilizações. Apesar disso, alguns grupos minoritários se mantiveram nos antigos estados fascistas (neofascismo).

O Estado fascista criado por Benito Mussolini, na Itália, em 1922, foi o ponto de partida para o totalitarismo da direita que teve notável incremento na Europa depois do 1º conflito mundial, entre 1914 e 1918, e atingiu a América Latina a par dos movimentos de exaltação nacionalista.

A liberal democracia, em franca decomposição, não podia fazer face à terrível crise social que assolava o mundo, nem podia oferecer a resistência eficaz à ameaça do imperialismo russo, de esquerda. Nessa conjuntura perigosa para a liberdade dos povos e para a sobrevivência da civilização ocidental, foi que se deu o aparecimento dos homens providenciais, ousados condutores das massas que sabiam explorar não só o descontentamento do proletariado como ainda aos sentimentos nacionalistas, arvorando-se em salvadores das nações. Na lição de Pedro Calmon, em todas as épocas de ruptura do equilíbrio entre um método clássico de governo e a inquietação social que impõe outras formas políticas, proporcionou o advento do que a sociedade chamou como “homens providenciais”.

Assim as novas organizações políticas que surgem inspiradas pela vontade onipotente desses líderes ou detentores eventuais do poder, constituem esse conjunto heterogêneo de Estados Novos, no panorama confuso do pós-guerra, todos eles adaptados arbitrariamente, em cada país, às contingências transitórias de um dado momento histórico.

Nessa situação certas características são comuns encontradas em estados de extrema-direita no poder: a) concentração de toda a autoridade nas mãos de um chefe supremo; b) restrições às liberdades públicas e regime de censura; c) prevalecimento do interesse coletivo sobre o individual; d) partido único; e) dirigismo econômico; f) estatismo, nacionalismo ou racismo, como objetivo moral do Estado.

Valeram-se os ditadores de ideias forças (unificação e grandeza da pátria) para galvanizar os espíritos e polarizar os sentimentos cívicos da comunidade nacional. No setor econômico, postergavam a livre concorrência, o laissez faire, do capitalismo, estabelecendo o primado da coletividade sobre o indivíduo.

Na Itália, com o fascismo, embora surgisse do oportunismo, sem doutrina, depois de consolidado no poder, passou a teorizar um sistema peculiar: o Estado é criador exclusivo do direito e da moral; os homens não têm mais do que o Direito que o Estado lhes concede: o Estado é personificado no partido fascista e este não encontra limites morais ou materiais à sua autoridade; todos os cidadãos e seus bens lhe pertencem; os opositores são considerados como traidores e sujeitos à justiça que é controlada pelo órgão executivo.

No fascismo, cabe ao Estado dar ao povo uma vontade consequentemente uma existência efetiva. O Estado, dentro da concepção trazida por Hegel, é absoluto, diante do qual os indivíduos e os grupos são o relativo. Daí porque se dizia: “Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado”.

É evidente a afinidade entre o fascismo e a doutrina do famoso secretário florentino exposta no livro, O Príncipe, tanto que o próprio Mussolini, na Itália, como chefe de governo, escrevendo Prelúdios a Maquiavel, em 1924, mencionou que na atualidade italiana o maquiavelismo estava mais vivo do que na época de seu aparecimento. Para o príncipe, para que haja respeito é preciso que se tema.

O partido que assume o poder não é um órgão de representação política, mas depositário único da confiança nacional e o intérprete exclusivo da vontade do povo.

É a própria nação italiana, sob o fascismo, que integra no partido e se deixa dirigir pela vontade incontrastável do homem providencial. O partido era ao mesmo tempo, Estado, nação, governo e organização produtiva.

No final de 1921, nasceu o Partido Nacional Fascista (PNF), cujo símbolo era exatamente o “fascio littorio”. Menos de um ano depois, Mussolini assume o poder. Ele fortaleceu sua influência na Itália angariando o apoio de industriais, empresários e do Vaticano, e tornou-se referência para regimes autoritários mundo afora – Francisco Franco na Espanha, António Salazar em Portugal e, sobretudo, Adolf Hitler na Alemanha (que por muito tempo manteve um busto do Duce italiano em seu escritório) tiveram em Mussolini e no seu regime uma grande fonte de inspiração.

Regime totalitário baseado num partido único, a característica fundamental do fascismo foi a militarização da política, que era tratada como uma experiência de guerra: além do projeto de expansão imperial, com a supremacia fascista imposta no Estado e na sociedade, o regime tratava os adversários como inimigos que deveriam ser eliminados. No mês passado, a Itália lembrou os 80 anos da chamada lei racial, aprovada contra os judeus e que estava em consonância ao regime nazista de Hitler.

“O fascismo sempre negou a soberania popular, enquanto o nacionalismo populista de hoje reivindica o sucesso eleitoral. Esses políticos de agora se dizem representantes do povo, pois foram eleitos pela maioria. Isso o fascismo nunca fez”, comenta Emilio Gentile.

No Brasil ele se apresentou nos anos trinta do século XX através do integralismo, que se infiltrou de forma voraz na vida nacional, produzindo obra através de vários pensadores a partir de Plínio Salgado.

III – A DEMOCRACIA MILITANTE

A democracia precisa reagir.

O princípio da democracia destina-se, pois, a amarrar um procedimento de normatização legítima do direito. Ele significa, portanto, que somente podem pretender ter validade legítima leis juridicamente capazes de ter o assentimento de todos os parceiros de direito em um processo de normatização discursiva. O princípio da democracia contém, desta forma, o sentido performativo intersubjetivo necessário da prática da autodeterminação legítima dos membros do direito que se reconhecem como membros iguais e livres de uma associação intersubjetiva estabelecida livremente.

Na lição de Habermas, o princípio da democracia pressupõe preliminarmente e necessariamente a possibilidade da decisão racional de questões práticas a serem realizadas no discurso, da qual depende a legitimidade das leis.

Para Habermas, é equitativa a ação quando a sua máxima permite uma convivência entre a liberdade do arbítrio de cada um e a liberdade de todos conforme uma lei geral.

Na democracia há a permanente realidade dialógica. No totalitarismo rompe-se o diálogo, aniquilam-se as liberdades. Desconhecem-se direitos.

Pensemos em barreiras legais à ação daqueles que advogam contra os princípios e as instituições democráticas. Nesse sentido, Karl Loewenstein propôs, em 1937, a controvertida doutrina da “democracia militante”, incorporada pela Lei Fundamental em 1949 e aplicada pela Corte Constitucional alemã nas décadas seguintes. Foi o caso do combate a organizações terroristas de esquerdas que atuaram na década de 1970 na Alemanha e no combate à extrema-direita, que tem por objetivo acabar, solapar, a democracia.

Por essa doutrina, é possível investigar e mesmo restringir direitos de grupos que ameaçam a democracia, como agora ocorre com os radicais no Brasil.

O grande exponente da teoria da democracia de militância foi o constitucionalista alemão Loewenstein (1937), o qual defendia que não deveriam sequer participar da competição política os partidos políticos que não se coadunassem com o regime democrático.

Sobre essa doutrina da democracia de militância, nos ensina Tarsila Ribeiro Marques Fernandes (Democracia Defensiva, in RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 133-147 abr./jun. 2021):

“As premissas da democracia militante, portanto, eram a de que o regime democrático deveria contar com mecanismos (ainda que antidemocráticos) para evitar que agentes políticos com ideais totalitários de poder, tais como Hitler, utilizassem instrumentos democráticos para chegar ao poder. Assim, deveriam ser criados meios para que a democracia se defendesse dos partidos que buscassem alçar-se ao poder para destruí-la. Isso porque o fascismo, classificado por Loewenstein (1937) como uma técnica política, só conseguiria ser vitorioso em razão das condições favoráveis oferecidas pelas instituições democráticas, em especial em virtude da tolerância democrática.

De acordo com Loewenstein (1937, p. 424):

A democracia foi incapaz de proibir aos inimigos de sua própria existência o uso de instrumentalidades democráticas. Até muito recentemente, o fundamentalismo democrático e a cegueira legalista não estavam dispostos a perceber que o mecanismo da democracia é o cavalo de Tróia pelo qual o inimigo entra na cidade. Ao fascismo, disfarçado de um partido político legalmente reconhecido, foram concedidas todas as oportunidades das instituições democráticas.

Com base na teoria da democracia militante, partidos políticos com objetivos antidemocráticos deveriam ter o seu registro negado ou cassado, em nome da defesa do próprio regime democrático. A necessidade de uma democracia militante, portanto, surge do imperativo de autoproteção e autopreservação da democracia (LOEWENSTEIN, 1937, p. 429).”

Isso pode-se chamar de democracia militante.

Dir-se-ia que as democracias constitucionais já estabeleceram mecanismos voltados a conter ataques aos seus pilares fundamentais. Mas, a democracia, como forma de convivência, tem sempre a sua volta o espectro de pensamentos contra ela voltados. Para tanto, há, como no Brasil, com sua Constituição-cidadã de 1988, a fixação de cláusulas pétreas que defendem a sua integridade contra qualquer possibilidade de alteração. Isso é um indicativo a Corte Constitucional, suprema guardiã da Carta Democrática, para a sua atuação. Um desses pontos que não podem ser objeto de alteração é o respeito a independência dos poderes.

Tal serve de alerta para o Brasil onde temos um Executivo em flerte com a ditadura e o autogolpe.

Disse ainda Tarsila Ribeiro Marques Fernandes (obra citada):

“Por essas razões, para que a democracia possa sobreviver, é imprescindível que mecanismos sejam criados no ambiente democrático a fim de restringir a liberdade de grupos ou atores políticos que, por meio de ideias totalitárias ou intolerantes, ameacem a própria democracia. Nesse ponto, percebe-se que as ideias de Loewenstein e de Popper se aproximam no sentido de defender a necessidade de exclusão de certos grupos políticos como forma de sobrevivência da democracia. De uma maneira objetiva, pode-se concluir que a lógica tanto da democracia militante quanto do paradoxo da tolerância é no sentido de que a democracia não pode transformar-se num pacto suicida, razão pela qual devem ser garantidos mecanismos para a legítima defesa da ordem democrática.”

Não há convivência entre a extrema-direita fascista e a democracia, homenageada pela Constituição de 1988 que elegeu o Estado Democrático de Direito como meio de convivência de nossa sociedade.

No Brasil, o chamado inquérito em que o Supremo Tribunal Federal apura a existência e materialização de atos antidemocráticos é um exemplo claro da aplicação dessas teses da democracia defensiva.

Aliás, os julgamentos preferidos pelo STF nas ADIs nos 6.347, 6.351 e 6.353 e na ADPF no 572 demonstram que a teoria da democracia defensiva, ainda que sem referência ao seu nome, já tem sido objeto de aplicação prática. Ademais, esses julgamentos evidenciam que a Suprema Corte brasileira está consciente do momento de crise aguda que o País enfrenta e do seu papel como um dos garantidores da democracia.

Em caso de erosão da democracia e de hipertrofia de algum dos Poderes, as demais instituições devem agir de forma firme e proporcional ao ataque sofrido.

Temos para tanto, como defesa, nossa Constituição-cidadã, que é o único caminho viável e democrático para a superação da crise.

Na democracia brasileira, sob o bojo da Constituição-cidadã de 1988, não há lugar para Jair Messias Bolsonaro, candidato da extrema-direta.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

 

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Estados Unidos e a união com os Soviéticos na Segunda Guerra Mundial: 2022 no Brasil não será Esquerda contra Direita

Por Tales Augusto*

Aprendamos com a História e a máxima que “o inimigo do meu inimigo, é meu amigo”. Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos e União Soviética tinham a maior parte do mundo sob suas influências, blocos econômicos, políticos e até militares, era a época da Guerra Fria.

Contudo, muitos esquecem que os antagonismos ideológicos foram deixados de lado por algo maior durante o maior conflito que a humanidade vivenciou, a luta contra a barbárie e tudo de pior que tivemos na História da Humanidade representado, o Fascismo e no pior deles, o Fascismo Alemão denominado Nazismo uniram o que pensávamos ser impossível unir.

Parece que nós brasileiros não sabemos ou queremos aprender com a História, tanto que temos componentes e características do fascismo em solo tupiniquim e em 2022 mais uma vez eclodindo a cadela do fascismo, esta que sempre está no cio e que o ovo da serpente parece já ter parido desde 2018 muito do lixo da História que deveria ter ficado apenas nos livros didáticos, para não se repetirem.

O politicamente incorreto, o racismo, os preconceitos diversos a minorias como os grupos LGBTQI+, a violência contra a mulher e a tríade mais que batida do “Deus, Pátria e Família”. Ah, este trio esteve presente nos Fascismos Italiano, Alemão (Nazismo), Português (Salazarismo) e Espanhol (Franquismo). Não a toa que o inglês Samuel Johnson disse que “o patriotismo é o último refúgio do canalha”. O mais irônico que esta versão de políticos patriotas com características fascistas tupiniquins, até continência para a bandeira dos Estados Unidos já fez, estranho, estranho demais.

Estamos em 2021, caminhando para o pleito de 2022, pleito este que será um dos mais pesados da História do Brasil. Redes sociais, robôs, fake news, violências diversas e o principal ingrediente, a adoção não envergonhada de defender a Barbárie descaradamente. Tentam colocar todos os candidatos num mesmo balaio. Porém, além de ser uma ação inglória, mentirosa, débil, sem fundamentação.

Estamos rumo as eleições de 2022 onde um candidato defende o negacionismo, violência, armamentismo, racismo, homofobia e tudo que o lixo da História faz questão que lembremos para não esquecer e repetir. Do outro lado a defesa da vida, das diferenças, dos direitos humanos coletivos e individuais, defesa da vacina, ciência, defesa do emprego, do SUS, dentre tantas outras pautas.

Se na Segunda Guerra Mundial, os antagonismos estadunidense e soviético se uniram contra o Fascismo, em 2022 as esquerdas e direitas busquem se unir contra o nosso fascismo tupiniquim que dia a dia cresce e necessita ser parado, temos a chance de o parar pelas urnas, pelo voto e que jamais deixemos que volte ao poder. Vigilância continua, necessária e não duvidem, tentarão não sair do poder mesmo perdendo, repito, a cadela do Fascismo sempre está no cio.

*É Historiador, autor do livro HISTÓRIA DO RN PARA INICIANTES e mestrando em Ciências Sociais e Humanas na UERN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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A volta do fascismo

Por Rogério Tadeu Romano*

I – ORIGENS HISTÓRICAS DO FASCISMO
O fascismo é diferenciado das ditaduras militares porque o seu poder está fundamentado em organizações de massas e tem uma autoridade única. Os seus membros são na sua grande maioria provenientes da classe operária e da pequena burguesia rural e urbana, ou seja, dos ameaçados pelos fortes intervenientes do grande capital e do sindicalismo comunista.
Quando o fascismo se estabelece no poder, aceita a presença do grande capital e se impõe de forma disciplinadora, impedindo que as organizações operárias defendam a luta de classes (sindicatos, partidos políticos).
O fascismo é caracterizado por uma reação contra o movimento democrático que surgiu graças à Revolução Francesa, assim como pela furiosa oposição às concepções liberais e socialistas.
O termo fascismo passou a ser usado para englobar tanto os regimes diretamente ligados ao eixo Roma-Berlim e seus aliados, como os sistemas de autoridade que atribuíam ao estado funções acima daquelas que as democracias lhe entregavam. É o caso das referências ao “fascismo” espanhol, brasileiro, turco, português, entre outros.
Em 1945, com a queda dos principais estados fascistas e com a divulgação das atrocidades cometidas, o movimento fascista perdeu possibilidades de grandes mobilizações. Apesar disso, alguns grupos minoritários se mantiveram nos antigos estados fascistas (neofascismo).
O Estado fascista criado por Benito Mussolini, na Itália, em 1922, foi o ponto de partida para o totalitarismo da direita que teve notável incremento na Europa depois do 1º conflito mundial, entre 1914 e 1918, e atingiu a América Latina a par dos movimentos de exaltação nacionalista.
A liberal democracia, em franca decomposição, não podia fazer face à terrível crise social que assolava o mundo, nem podia oferecer a resistência eficaz à ameaça do imperialismo russo, de esquerda. Nessa conjuntura perigosa para a liberdade dos povos e para a sobrevivência da civilização ocidental, foi que se deu o aparecimento dos homens providenciais, ousados condutores das massas que sabiam explorar não só o descontentamento dos proletariado como ainda aos sentimentos nacionalistas, arvorando-se em salvadores das nações. Na lição de Pedro Calmon, em todas as épocas de ruptura do equilíbrio entre um método clássico de governo e a inquietação social que impõe outras formas políticas, proporcionou o advento do que a sociedade chamou como “homens providenciais”.
Assim as novas organizações políticas que surgem inspiradas pela vontade onipotente desses líderes ou detentores eventuais do poder, constituem esse conjunto heterogêneo de Estados Novos, no panorama confuso do pós-guerra, todos eles adaptados arbitrariamente, em cada país, às contingências transitórias de um dado momento histórico.
Nessa situação certas características são comuns encontradas em estados de extrema-direita no poder: a) concentração de toda a autoridade nas mãos de um chefe supremo; b) restrições às liberdades públicas e regime de censura; c) prevalecimento do interesse coletivo sobre o individual; d) partido único; e) dirigismo econômico; f) estatismo, nacionalismo ou racismo, como objetivo moral do Estado.
Valeram-se os ditadores de ideias forças(unificação e grandeza da pátria) para galvanizar os espíritos e polarizar os sentimentos cívicos da comunidade nacional. No setor econômico, postergavam a livre concorrência, o lessez faire, do capitalismo, estabelecendo o primado da coletividade sobre o indivíduo.
Na Itália, com o fascismo, embora surgisse do oportunismo, sem doutrina, depois de consolidado no poder, passou a teorizar um sistema peculiar: o Estado é criador exclusivo do direito e da moral; os homens não têm mais do que o Direito que o Estado lhes concede: o Estado é personificado no partido fascista e este não encontra limites morais ou materiais à sua autoridade; todos os cidadãos e seus bens lhe pertencem; os opositores são considerados como traidores e sujeitos à justiça que é controlada pelo órgão executivo.
No fascismo, cabe ao Estado dar ao povo uma vontade consequentemente uma existência efetiva. O Estado, dentro da concepção trazida por Hegel, é absoluto, diante do qual os indivíduos e os grupos são o relativo. Daí porque se dizia: “Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado”.
É evidente a afinidade entre o fascismo e a doutrina do famoso secretário florentino exposta no livro, O Príncipe, tanto que o próprio Mussolini, na Itália, como chefe de governo, escrevendo Prelúdios a Maquiavel, em 1924, mencionou que na atualidade italiana o maquiavelismo estava mais vivo do que na época de seu aparecimento. Para o príncipe, para que haja respeito é preciso que se tema.
O partido que assume o poder não é um órgão de representação política, mas depositário único da confiança nacional e o intérprete exclusivo da vontade do povo.
É a própria nação italiana, sob o fascismo, que integra no partido e se deixa dirigir pela vontade incontrastável do homem providencial. O partido era ao mesmo tempo, Estado, nação, governo e organização produtiva.
No final de 1921, nasceu o Partido Nacional Fascista (PNF), cujo símbolo era exatamente o “fascio littorio”. Menos de um ano depois, Mussolini assume o poder. Ele fortaleceu sua influência na Itália angariando o apoio de industriais, empresários e do Vaticano, e tornou-se referência para regimes autoritários mundo afora – Francisco Franco na Espanha, António Salazar em Portugal e, sobretudo, Adolf Hitler na Alemanha (que por muito tempo manteve um busto do Duce italiano em seu escritório) tiveram em Mussolini e no seu regime uma grande fonte de inspiração.
Regime totalitário baseado num partido único, a característica fundamental do fascismo foi a militarização da política, que era tratada como uma experiência de guerra: além do projeto de expansão imperial, com a supremacia fascista imposta no Estado e na sociedade, o regime tratava os adversários como inimigos que deveriam ser eliminados. No mês passado, a Itália lembrou os 80 anos da chamada lei racial, aprovada contra os judeus e que estava em consonância ao regime nazista de Hitler.
“O fascismo sempre negou a soberania popular, enquanto o nacionalismo populista de hoje reivindica o sucesso eleitoral. Esse políticos de agora se dizem representantes do povo, pois foram eleitos pela maioria. Isso o fascismo nunca fez”, comenta Emilio Gentile.
II – O NOVO FASCISMO
Umair Haque, em texto sobre o novo fascismo, afirmou:
“Acredito que o Novo Fascismo, em sua individualidade, é o acontecimento político mais importante de nossas vidas. Trata-se de um momento crítico para a sociedade global – um momento decisivo. E, como todo momento decisivo, é um teste. Um teste que avalia o melhor de nós: se as sociedades civilizadas podem, de fato, continuar civilizadas, no sentido mais essencial dessa expressão – ou se corremos o risco de mergulhar, outra vez, numa era de guerra mundial e genocídio.”
E ainda disse:
“O fascismo é sempre um produto de uma inconveniência econômica. A inconveniência cria uma sensação ardente de injustiça. O bolo da riqueza encolhe, desmorona e se deteriora. As sociedades começam a disputar a quem pertencem as fatias, que vão ficando cada vez mais finas, cada vez mais emboloradas.”
E aqui vem a segunda etapa do fascismo: vamos chamá-la demagogia, como concluiu Umair Haque:
Surge uma briga entre os líderes no sentido de fazer alguma coisa em relação ao problema da estagnação. Tanto a esquerda quanto a direita vão ficando mais extremadas. E aí acaba o centro. O vácuo que o centro ocupava dá espaço para um tipo de político inteiramente novo – um tipo de político que normalmente era freado pela esquerda em sua luta contra a direita, mas agora livre para combinar o que há de pior na esquerda e na direita.
Logo aparece um demagogo, que grita: o bolo pertence ao povo – e só ao povo! Ele sintetiza o que há de pior, tanto na esquerda quanto na direita. É um socialista, mas só para as pessoas certas. Mas também é um nacionalista e não reivindica apenas domínio e recursos, como terra: ele reivindica a superioridade, pelo sangue ou por deus, de um povo, para além dos recursos. Daí a expressão, paradoxal, “nacional socialismo”.
A perigosa apelação do demagogo é a seguinte: ele localiza a fonte de estagnação naqueles que não têm pertencimento, que são inferiores – não apenas moral, mas existencialmente – e os aponta com o dedo, aponta o veneno dentro da sociedade. É muito mais fácil acreditar que a sociedade está sendo envenenada por um conjunto de pessoas corruptas que não pertencem a ela, do que acreditar que o contrato social acabou e deve voltar a ser escrito – e assim se abre o caminho do demagogo para o poder.
E chegamos ao terceiro estágio do fascismo: a tirania.
Mas quem é “o povo”? Quem é, de fato, inferior e quem é superior? Quem merece os frutos do nacional socialismo – o direito a consumir fatias do bolo que encolhe, que é do que trata toda esta ideologia? E aí vem à tona a noção de volk: os verdadeiros moradores da terra, os herdeiros do destino, o direito de nascer, a superioridade. E como os definiríamos? Afinal, essa é uma pergunta traiçoeira, que não admite certezas óbvias. Você merece os recursos da Nação-Sociedade simplesmente por ter nascido ali? Ou porque você viveu ali? Ou seria porque seus avós já nasceram ali? É justamente a essas perguntas que a Nação-Sociedade, Na-Zi, começa a dedicar seus recursos. Imensas burocracias são organizadas, trilhas de papel são criadas, investigações são realizadas.
Sob o enfoque econômico, já se disse que o fascismo é o sistema de governo que opera em conluio com grandes empresas (as quais são favorecidas economicamente pelo governo), que carteliza o setor privado, planeja centralizadamente a economia subsidiando grandes empresários com boas conexões políticas, exalta o poder estatal como sendo a fonte de toda a ordem, nega direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos (como a liberdade de empreender em qualquer mercado que queira) e torna o poder executivo o senhor irrestrito da sociedade.
Não se pode criar um index totalitário que enxerga no professor alguém que está proibido de passar informações aos alunos, seja da natureza que for (ideológica, política, cultural, credo).
Ensinar é viver e conviver com renovações, na velocidade em que vierem.
III – DECISIONISMO
Essas teses antidemocráticas têm origem no decisionismo.
De fundamental importância nesse fenômeno sob o ponto de vista juridico foram as ideias de Carl Schmitt, na concepção de uma teoria decisionista.
Schmitt distinguia quatro conceitos básicos de Constituição: um conceito absoluto (a Constituição como um todo unitário) e um conceito relativo(a Constituição como uma pluralidade de leis particulares), um conceito positivo(a Constituição como decisão de conjunto sobre o modo e a forma da unidade política) e um conceito ideal (a Constituição assim chamada em sentido distintivo e por causa de certo conteúdo).
Na visão decisionista, uma Constituição é válida enquanto emana de um poder constituinte e se estabelece por sua vontade. Assim era a vontade do povo alemão que dava fundamento a sua unidade político e jurídica.
A Constituição em sentido positivo surgia mediante um ato do poder constituinte. Este ato não continha, como tal, quaisquer normas, mas sim, e precisamente por ser um único momento de decisão, a totalildade da unidade política considerada na sua particular forma de existência; e ele constituía a forma e o modo da unidade política, através do titular do poder constituinte, adota por si própria e se dá a si própria.
Nesse conceito decisionista a essência da Constituição não residia, pois, numa lei ou numa norma; residia na decisão política do titular do poder constituinte(do ditador, numa ditadura e do povo, numa democracia).
Com Carl Schmitt não se visa encontrar uma substância ou uma axiologia; procura-se o critério, o princípio identificador do político. Ele consiste na distinção – a que reconduz a atos e móveis políticos – entre amigo e inimigo.
Carl Schmitt via a POLÍTICA COMO SUPERIOR ao direito, ele teoriza que a política é quem toma as decisões e institui o direito. Quem elabora o direito é a política sendo o direito um mero instrumento da política.
A Alemanha estava em Estado de exceção, e a única forma de solução executar o poder de decidir do governante. O governante, nesse sentido, toma as decisões com o objetivo de manter a homogeneidade social, o funcionamento do sistema e garantir a preservação da unidade estatal. Por isso o governante deve ser soberano, porque é ele que decidirá sobre um Estado de exceção.
Ao povo cabe obediência em troca da habilidade decisiva governamental. Para Schmitt, todo governo capaz de ação decisiva deve incluir um elemento ditatorial na sua Constituição. o Estado de Emergência é limitado (até mesmo em posteriori, pela lei), para “soberania da ditadura”, onde o Direito foi suspenso, como em clássico Estado de Exceção, não para “salvar a Constituição”, mas para criar outra. Foi assim como ele autorizou a suspensão contínua de Hitler da ordem constitucional legal durante o Terceiro Reich (A Constituição da República de Weimar nunca foi ab-rogada, como citou Giorgio Agamben; particularmente, foi “suspensa” por quatro anos, sendo a primeira em 28 de fevereiro de 1933 pelo Decreto de incêndio do Reichstag e a suspensão era renovada a cada quatro anos, similiando-se a um – contínuo – Estado de Emergência).
Hà de se ver o normativismo de Hans Kelsen e o decisionismo de Carl Schmitt. Em síntese, poderia-se dizer que o normativismo impõe uma derrota à racionalidade buscada pelo Direito Natural, ao afirmar que só haveria uma espécie de lei, a lei positiva, posta pelo Estado, que deveria governar este e os cidadãos, concluindo que haveria tão somente uma “ordem jurídica normativa”. E a partir daí, se poderia falar legitimamente de uma Teoria Pura do Direito.
Doutro giro, para Schmitt, as coisas não se davam bem assim. Para ele, Kelsen escamoteava o pressuposto de qualquer norma jurídica, que é a decisão, ou seja, haveria uma verdadeira subordinação do normativo ao elemento decisionista, presente no Direito, dado que a Teoria Pura do Direito, “esquece ou finge esquecer” “que uma norma não saberia produzir, por si própria, as condições de sua efetuação”, ou melhor, “ignorando, ou fingindo ignorar” que “a ideia do direito não pode efetuar-se por si mesma”.
A posição decisionista tem, assim, de culminar num relativismo que afirma o pluralismo dos valores últimos, que não passam de atos de crença, resignando-se em aceitar a possibilidade de rompimento desses pluralismos através de atos de violência ou de imposição violenta que não pode ser racionalmente contraditada, tendo de ser admitida como um fato. A posição de Kelsen é trazida aqui à colação, no sentido de que o direito nazista, embora criticável do ângulo das boas intenções moralizantes seria direito.
O discurso decisionista não suporta o diálogo, mas apenas um esquema unitário do que supõe verdade.De um lado haveria alguém do bem; do outro lado, alguém do mal.
A pragmática, dentro dos estudos de semiótica, faz a distinção entre a discussão-com e a discussão-contra. Na primeira, as partes que discutem são homólogas(que mantém com outro elemento similar uma relação de correspondência); na segunda, heterólogas. Na primeira, apenas, a busca da verdade como condição do consenso é possível; na segunda, o consenso é possível, mas não em razão da verdade(que ali se torna função do consenso), mas em razão de uma decisão. Na situação homológica, a possibilidade de verdade por si só garante uma passagem da estrutura dialógica para a monológica, pois a discussão-com vive dessa tentativa que o orador conseguir que o ouvinte se renda(se convença).
Na situação heterológica não se instaura uma perspectiva privilegiada dessa natureza, mas apenas um esquema unitário que coordena a pluralidade dos pontos de vista que continuam a se determinar mutuamente, um em oposição ao outro. A língua e a fala num mundo de subordinação politica e económica se distinguem claramente. Há a fala que, para Saussure, é um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1o) as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2o) o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar essas combinações”. [SAUSSURE, 2002: 22]
“Não é possível conceber um Direito legítimo no nazismo”, explica o advogado André Rafael Weyermüller. Para ele, “o Direito não era mais Direito. Era, sim, mais um instrumento de controle e legitimação da ideologia de um regime baseado, sobretudo, nas idéias de alguns poucos homens que não tinham a menor consideração por um mínimo de senso de humanidade”. Em sua opinião, “é muito difícil afirmar qual foi o fator mais importante que levou uma nação de filósofos e músicos célebres a gerar, acolher e seguir um homem extremamente limitado e perturbado com uma vida pessoal extremamente obscura e confusa, com idéias radicais e agressivas”. Mas Weyermüller pondera que, “além de músicos e filósofos, a Alemanha tinha um antecedente histórico guerreiro e militarista prussiano e um forte senso de respeito à autoridade e a disciplina. Se o Direito daquela época tinha mecanismos capazes de legitimar a ascensão do nazismo, esse senso de dever e obediência não permitia a transgressão ou a rebeldia, pelo menos foi assim para a maioria do povo”. Felizmente, conclui, “à luz do Direito hoje, principalmente do Direito Internacional, não seria possível conceber a ascensão de um poder tão absoluto e tão perverso”.
Prosseguiu Weyermüller:
“À luz do Direito hoje, principalmente do Direito Internacional, não seria possível conceber a ascensão de um poder tão absoluto e tão perverso, pois todos nós carregamos um pouco dessa e de outras experiências negativas que servem como uma espécie de freio que mostra que algo pode estar muito errado. Além do mais, a Declaração dos Direitos do Homem de 1948 e os instrumentos internacionais que se seguiram, estabelecem parâmetros, legais inclusive, que não permitem a assimilação por parte de um sistema jurídico de um regime a exemplo do nazista. Não esqueçamos, porém, que após o nazismo tivemos no mundo vários regimes que se diziam e se dizem “legais”, mas que cometem graves atrocidades contra minorias políticas, étnicas e religiosas. É contra esses embriões que precisamos lutar impondo o Direito supremo, esse sim das garantias do ser humano independentemente de sua origem ou crença. Um Direito com coerência e humanidade, com limites e fundamentos éticos e morais de defesa de direitos individuais e humanos.”
No Brasil, nossa Constituição-cidadã, fruto do legado deixado por Ulisses Guimarães, nos traz um modelo de convivência de forma a assegurar a efetividade de liberdades fundamentais, direitos sociais e dos direitos humanos.
Uma corrente política poderá sobreviver, a trazer uma ruptura democrática?
Na matéria observo excelente artigo de Ingo W. Sarlet(Proibição e dissolução de partidos políticos na Lei Fundamental da Alemanha) onde diz:
“… alguns Estados optaram por prever — inclusive nos respectivos textos constitucionais — o instituto da proibição e dissolução de partidos políticos que atentarem contra a ordem democrática, justamente como meio de defesa contra movimentos radicais e antidemocráticos, que buscam, valendo-se dos próprios instrumentos disponibilizados pelo Estado Democrático de Direito (como justamente a liberdade partidária, o direito de manifestação, entre outros), justamente colocar em cheque e mesmo fazer ruir a democracia e suas instituições.
Dentre os países que previram um procedimento dessa natureza (proibição e dissolução de partidos políticos), situa-se a República Federal da Alemanha, cuja Lei Fundamental, no artigo 21 item 2º, prevê que mediante requerimento por parte do Conselho Federal (Bundesrat) — a Casa do Parlamento Federal que assume uma posição similar ao Senado —, da Câmara de Representantes (Bundestag) ou do governo federal, o Tribunal Constitucional Federal analisa e decide sobre a inconstitucionalidade e dissolução do partido político cujo programa e cujas ações forem tidas como atentatórias à ordem livre e democrática.
Nesse contexto, calha sublinhar que a razão histórica que motivou a inserção de tal disposição na Lei Fundamental (1949) reside precisamente numa tentativa de correção de evidentes fragilidades da Constituição da República de Weimar, em especial para salvaguardar o Estado Democrático de Direito de uma corrosão e mesmo desconstrução interna por parte de agentes e movimentos de natureza autoritária e manifestamente antidemocrática, como ocorreu, precisamente, com o Partido Nacional-Socialista.
De qualquer sorte, cuida-se de medida excepcional e acionada quando estritamente indispensável, já que do contrário também poderia ser manejada para o seu efeito contrário, inibindo fortemente a liberdade política e partidária e mesmo para afastar do jogo democrático-deliberativo formações partidárias tidas como inconvenientes aos interesses das grandes agremiações. Já por tal razão a Lei Fundamental prevê que o requerimento ao Tribunal Constitucional seja inicialmente deliberado no Parlamento, passando por um duplo controle.
Assim, ao longo de toda a história da República Federal da Alemanha, antes e depois da reunificação, o Tribunal Constitucional reconheceu a inconstitucionalidade e determinou a dissolução de apenas dois partidos políticos, formados na fase imediatamente posterior ao final da 2ª Guerra Mundial, num contexto marcado pelo início também da polarização entre o bloco soviético (socialista) em formação e o bloco formado pelos países ocidentais liderados pelos aliados que, juntamente com a União Soviética, saíram vencedores do conflito.
Cuidava-se, na ocasião, do SRP (Partido Social Imperial) e do KPD (Partido Comunista), ambos de caráter extremista (direita e esquerda) e com programas e ações políticas tidas como flagrantemente contrárias ao modelo democrático concebido pela Lei Fundamental. No caso, evidencia-se também — como já adiantado — o contexto de polarização que já se havia estabelecido na ordem mundial, mas também os precedentes do período que permeou as duas grandes guerras, onde a extrema direita (representada em especial pelo Partido Nacional-Socialista) e a extrema esquerda revolucionária (representada pelo Partido Comunista) se digladiavam com violência ostensiva.
Mais recentemente (2003), o Tribunal Constitucional Federal foi provocado conjuntamente pelos três órgãos legitimados para decidir sobre a extinção, nos termos do artigo 21, item 2, da Lei Fundamental, do Partido Nacional-Democrata Alemão (NPD), agremiação de direita, tendo rechaçado o pleito, na ocasião em virtude da violação de garantias essenciais ao Estado de Direito na obtenção de elementos para fundar a acusação.
Em 2013, foi então formulado novo pedido, agora apenas pelo Conselho Federal (Bundesrat), o qual foi objeto de julgamento pelo Tribunal Constitucional, tendo a decisão sido publicada na terça-feira (17/1). A decisão já tem gerado controvérsia, pois o Tribunal Constitucional novamente julgou a ação improcedente, desta feita adentrando o mérito propriamente dito.
Num primeiro passo, o tribunal admitiu que o NPD, que adota uma postura similar à do Partido Nacional-Socialista, de fato expressa e defende uma concepção política contrária à ordem constitucional livre e democrática, objetivando substituí-la por um Estado autoritário, nacionalista e caracterizado como uma comunidade etnicamente definida, de modo a advogar um conceito de povo excludente (em relação a minorias religiosas, estrangeiros e imigrantes) e que ofende a dignidade humana, sendo, ademais, favorável à derrubada da democracia representativa e parlamentar.

Bolsonaro revive o fascismo no Brasil (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

A despeito desse reconhecimento, o tribunal entendeu que ainda não é possível ter como perfectibilizado o suporte fático da regra constitucional justificativa da proibição do partido, pelo fato de que ainda (e é conveniente frisar o ponto) faltam elementos concretos de suficiente peso (gravidade) que permitem constatar e real viabilidade de efetivação dos objetivos anticonstitucionais do NPD.
Por um lado — argumenta o tribunal —, o NPD não possui condições reais de alcançar isoladamente uma maioria ou mesmo dispõe da possibilidade efetiva de participar de uma coalização partidária que lhe permitisse alcançar os seus objetivos. Da mesma forma, o NPD não apresenta condições de atingir os resultados pretendidos fora da esfera de ação parlamentar, em virtude de seu pequeno número de militantes (menos de 6 mil em toda a Alemanha) e da baixa capacidade de organização, mobilização e mesmo de influenciar de modo relevante o processo de formação de opinião. Além disso, o tribunal recorre ao princípio da proporcionalidade, entendendo que eventuais e pontuais ações criminosas cometidas por integrantes do partido ou simpatizantes, ainda que registradas, não têm o condão de inquinar a agremiação como tal, podendo e devendo ser combatidas, em caráter preventivo e repressivo, por meio do exercício do poder de polícia e da persecução criminal pessoal.”
Mas sendo assim, o Estado Democrático deve se preocupar com adoção de medidas alternativas para conter o autoritarismo, o fundamentalismo, a xenofobia, o racismo e a intolerância em geral.
IV – CONDUTAS FASCISTAS
Mas o fascismo não morreu.
Traço abaixo o que foi publicado no site do Estadão, em data de 30 de outubro de 2018:
“O Ministério Público Federal, em Chapecó (SC), recomendou às universidades da região e gerências regionais de educação, ‘que se abstenham de qualquer atuação ou sanção arbitrária e, mesmo, que impeçam qualquer forma de assédio moral a professores, por parte de estudantes, familiares ou responsáveis’. A recomendação atende representações recebidas pela Procuradoria da República sobre um canal anônimo de denúncia contra professores criado pela deputada estadual eleita em Santa Catarina Ana Caroline Campagnolo (PSL), aliada do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL).
Após a vitória do deputado nas eleições 2018, Ana Caroline abriu um canal informal de denúncias na internet para fiscalizar docentes em sala de aula a partir da segunda-feira, 29. A deputada eleita pede que vídeos e informações sejam repassados para o seu número de celular com o nome do professor, da escola e da cidade.
“Garantimos o anonimato dos denunciantes”, diz a imagem compartilhada pela deputada em uma rede social.
Ana Caroline conclamou alunos a filmar o que ela denomina de “professores doutrinadores”. Segundo a deputada eleita, os docentes “inconformados e revoltados” com o resultado da eleição para presidente da República, fariam das salas de aula “auditório cativo para suas queixas político-partidárias”, insuflando os estudantes a filmar e gravar todas as manifestações que, em seu entendimento, seriam “político-partidárias ou ideológica (sic)”.
A Recomendação do Ministério Público, se ignorada, pode implicar em responsabilização, mas não significa ato de autoridade que venha a delinear o ajuizamento de mandado de segurança.
O poder de recomendação do Parquet é um instrumento útil de provocação extrajudicial da constitucionalidade. Sabemos que o Ministério Público é um dos principais agentes de defesa da democracia, daí a recomendação.
Essas recomendações não gozam de coercibilidade, tendo um forte valor moral e político.
Na Recomendação, a Procuradoria aponta que pesquisas realizadas no Facebook ‘denotam que efetivamente a deputada estadual catarinense, eleita no recente pleito, manifestou-se nesse sentido’. O Ministério Público anexou à Recomendação cópia de imagens da aliada de Bolsonaro nas redes sociais. Em uma delas, Ana Campagnolo aparece empunhando uma arma.
Na avaliação do Ministério Público Federal, a conduta, ‘além de configurar flagrante censura prévia e provável assédio moral em relação a todos os professores do estado de Santa Catarina – das instituições públicas e privadas de ensino, não apenas da educação básica e do ensino médio, mas também do ensino superior – afronta claramente a liberdade e a pluralidade de ensino’.
Assédio moral é a exposição de alguém a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções.
Na Recomendação, a Procuradoria da República destaca a abertura de inquérito civil, ‘que objetiva apurar suposta intimidação a professores do Estado de Santa Catarina, por parte de deputada estadual eleita no último pleito’.
Historiadora, Ana Campagnolo processou a professora Marlene de Fáveri, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), e sua ex-orientadora no mestrado, em 2016, por suposta “perseguição ideológica”. O caso, que marcou as discussões acerca do movimento Escola Sem Partido, foi julgado improcedente em setembro deste ano pelo 1º Juizado Especial Cível de Chapecó (SC), mas a atual deputada recorreu.
O chamado “dedodurismo” é umas das chagas do fascismo.
A aprovação do projeto Escola Sem Partido no Congresso é uma das principais bandeiras de Jair Bolsonaro. O movimento, por sua vez, já foi contestado pela Advocacia-Geral da União (AGU), Ministério Público Federal (MPF) e associação de professores.”
Tempos difíceis que estão a surgir, com trovoadas, temporais, um ar asfixiante, tal como o ingresso no ordenamento nacional do AI – 5, em dezembro de 1968.
Esse movimento tem tentáculos pelo mundo afora.
Na Itália, como se vê das perseguições de caráter nacionalista apoiadas pela Liga.
Na Itália, Liga, CasaPound, M5S e todos os movimentos populistas, nacionalistas e fascistas italianos se unem na defesa dos direitos dos trabalhadores a salários “dignos”, dos contratos estáveis e na luta contra a precarização. A base eleitoral deles é a mesma de Trump e dos grupos ultranacionalistas europeus: os trabalhadores brancos que se sentem prejudicados pela globalização.
Na Hungria, na Polônia, como exemplo.
Na Hungria vive-se uma situação de proto-fascismo, onde nem os aspectos formais da democracia estão já salvaguardados, quanto mais os valores da liberdade e do pluralismo substanciais.
A Hungria é, talvez, para alguns, um país distante – mas interessa muito às nossas próprias liberdades, porque não vivemos dentro da casca de um ovo, porque as dinâmicas regressivas começam nuns países e alastram a outros… e porque nada do que é humano nos é indiferente.
Isto questiona a União Europeia, que prega uma Europa sem fronteiras e ainda uma Europa congregada.
Para alguns, a União Europeia devia ser só uma união de interesses, um mercado. Mas, para os socialistas, não faz sentido uma União Europeia onde há metas e sanções para os domínios económicos e financeiros e não há a mesma exigência para proteger os direitos sociais e as liberdades.
Por isso nos temos batido para que a União Europeia atue em relação aos países onde o Estado de Direito está em perigo, porque se não nos mobilizamos pelo Estado de Direito não fazemos sentido como comunidade.
O Parlamento Europeu votou uma proposta para sancionar a Hungria por desrespeitar as regras da UE sobre democracia, direitos civis e corrupção. É um passo novo e importante.
O governo da Hungria alinha pelo partido dominante da direita europeia, o PPE. Vergonhosamente, o PPE não deu uma orientação clara para apoiar a medida, porque há deputados da direita europeia, no PPE, que enchem a boca com a democracia mas dão prioridade a proteger aqueles que consideram seus amigos (embora amigos vergonhosos).
O chefe da pasta de Economia da União Europeia, o francês Pierre Moscovici, abriu a primeira saia justa para Bruxelas em relação ao Brasil. Em declarações nesta manhã, o comissário para Assuntos Econômicos do bloco criticou a eleição de Jair Bolsonaro e pediu que as lideranças no mundo “acordem”.
“Bolsonaro é evidentemente um populista de extrema direita”, disse o ex-ministro francês em diferentes governos socialistas em declarações à TV do Senado francês. “Atrás dele, vemos a sombra dos militares que estiveram por um longo tempo no poder no Brasil, constituindo uma ditadura terrível”, declarou. “Ele mesmo é um ex-militar e seu vice-presidente é um militar”, destacou o comissário.
V – BOLSONARISMO
No Brasil, desgraçadamente, há o fenômeno fascista do bolsonarismo.
Seu empenho está voltado para afirmar a prevalência do direito sobre o poder.
Isso é a essência do pensamento de Schmitt.
Schmitt dedica-se a subordinar o direito ao poder.
Schmitt é o “guardião do arbítrio”, como observa Michelangelo Bovero.
Lúcida e orientadora a abordagem de Celso Lafer, em artigo para o Estadão, no dia 19 de setembro de 2021, quando disse:
“Há muita sintonia relacionada ao mal ativo na convivência política em nosso país entre os paradigmas schmittianos e o instinto da ação do presidente Jair Bolsonaro.
O presidente está sempre propenso a afirmar a prevalência do seu poder sobre a Constituição, da qual se considera, independentemente do STF, o seu guardião; a construir a sua conduta política pela ascensão aos extremos da distinção amigo/inimigo; a buscar no seu decisionismo a soberania de declarar a exceção e a exasperar-se com a normalidade; e a postular a sua legitimidade de chefe em detrimento da legalidade das normas.”

*É procurador da república com atuação no RN aposentado.

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PC do B vai denunciar jornalista por incitação ao crime

Alex Medeiros será acusado de incitar a violência (Foto: reprodução)

O jornalista Alex Medeiros, colunista da Tribuna do Norte, postou ontem no Twitter uma imagem de uma pistola Glock e sugeriu que ela devesse ser apontada para bandidos e comunistas.

A atitude provocou reação do PC do B que anunciou que irá apresentar notícia-crime contra o profissional.

Em nota o PC do B classificou a atitude como “transloucada”:

Em atitude tresloucada, típica dos que se nutrem de ódio e que são incapazes de manter convívio democrático com quem pensa diferente, Medeiros reproduz uma pistola Glock e sugere que a arma deveria ser apontada para “assaltantes e comunistas, não necessariamente nesta ordem”.

“Compreendendo que liberdade de opinião não se confunde com ameaça e incitação ao crime, prática sujeita à punição, conforme artigo 286 do Código Penal (incitar, publicamente, a prática de crime), o PCdoB natalense informa que apresentará notícia-crime contra o jornalista”, complementa.

Leia a nota do PC do B na íntegra

 

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Cancelamento está mais próximo do fascismo que da democracia

Por João Pereira Coutinho*

Folha de S. Paulo

1. “Cultura do cancelamento”: será que existe? E será que, existindo, é uma ameaça para a liberdade de expressão?

Estou confuso. Sobretudo depois de ler o texto confuso que Milly Lacombe escreveu para esta Folha. Que nos diz a autora?

Basicamente, que a “cultura do cancelamento” existe (oba!, já é um progresso). Mas não é uma ameaça à liberdade de expressão porque o objetivo é “cancelar” ideias e atitudes, não pessoas.

Lamento, Milly, não é o que tenho visto. Quando falamos em “cultura do cancelamento”, não estamos apenas a “cancelar” ideias ou atitudes (“apenas” uma ova: se fosse só isso, já seria aberrante). “Cancelamos” pessoas, sim, destruindo reputações e carreiras. E por quê?

Ilustração de homem sendo entrevistado, várias mãos com microfones segurando em direção a ele
Angelo Abu

Porque os “cancelados” revelaram em público ideias ou atitudes que não agradam à fúria irracional das redes sociais. Eis como, partindo de ideias e atitudes, chegamos facilmente às pessoas.

Mas o texto de Milly Lacombe assenta num erro mais básico: na própria definição de liberdade de expressão. Diz a autora que liberdade de expressão exige prudência, disciplina, respeito pelo outro. Porque as palavras podem ferir ou até matar.

Não duvido. É por isso, aliás, que existem tribunais: para punir abusos da liberdade de expressão, de acordo com a lei. Eu sei disso, até na qualidade de ex-condenado.

O problema é que as redes sociais não são tribunais nem atuam de acordo com a lei; são hordas anônimas que destroem à margem da lei, sem garantir ao acusado nenhum direito de defesa.

Para usarmos a palavra fatal, a “cultura do cancelamento” está mais próxima do fascismo do que da democracia propriamente dita.

Claro que essa conversa sobre a lei e o estado de direito pode parecer trivial para quem participa dos linchamentos virtuais. Também era trivial para os fascistas.

Mas basta imaginar o mundo do avesso para valorizarmos imediatamente essas relíquias: o que diria Milly Lacombe se a “cultura do cancelamento”, que hoje cancela posições mais conservadoras, desatasse a cancelar com a mesma fúria qualquer posição progressista?

Será que a autora diria, com a mesma leveza, que “o que foi hoje cancelado pode ser descancelado — porque a vida é movimento”?

Ou gostaria que a lei pudesse defender quem é atacado selvática e injustamente só porque tem ideias ou atitudes diferentes da norma?

Esse é o problema de aprisionarmos a liberdade de expressão a um imperativo do respeito. Todos temos concepções diferentes de “respeito”: o que para mim pode ser uma verdade necessária é para o meu parceiro a violação de um tabu.

Para respeitar todo mundo, a humanidade ainda estaria nas cavernas. Para evitar ofender, nenhum preconceito seria criticado; nenhuma concessão desumana seria banida; nenhum abuso seria corrigido.

Bem sei que a autora não deseja esse mundo, que no limite seria o suicídio da sua arte e até da sua vontade de contestar “um modo de vida que nos desautoriza e deslegitima enquanto sujeitos”.

Mas até para contestar esse modo de vida é preciso mais liberdade de expressão, não menos. O que significa mais discussão e menos “cancelamento”.

2. Sempre que alguém defende a “cultura do cancelamento” no Ocidente, penso em Joshua Wong. Quem é Wong?

Um dos rostos da luta pela democracia em Hong Kong e autor de “Unfree Speech: The Threat to Global Democracy and Why We Must Act, Now” (da editora Penguin, 288 págs.), uma espécie de autobiografia política.

Parece piada escrever uma autobiografia aos 23 anos. Mas quando lutamos pela liberdade a partir dos 12; quando somos presos pela primeira vez aos 17; quando passamos uma longa temporada no cárcere aos 20; e quando, aos 23, somos impedidos de concorrer às eleições legislativas de Hong Kong porque a ditadura de Pequim nos considera inimigos do regime, percebemos que a idade é um pormenor.

O livro de Wong, que também inclui o seu diário na prisão, é uma defesa dramática de certos direitos ou princípios que as sociedades ocidentais dão por adquiridos —eleições livres, liberdade de expressão, Judiciário independente etc.—, mas que se tornaram artigos ainda mais raros depois de a China aprovar a nova lei de segurança nacional.

Eis um retrato do mundo: em Hong Kong, jovens como Wong sacrificam tudo pelas liberdades mais básicas. No Ocidente, o sacrifício do momento é mandar calar a boca de quem não pensa como nós.

*É escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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Já dá pra chamar Bolsonaro de fascista? Parte da academia diz que sim

O ditador fascista Benito Mussolini em seu gesto característico de “dar uma banana” ao discursar (Reprodução)
Por Fábio Zanini*

Jair Bolsonaro é fascista? Um ano e meio depois de o capitão ter assumido a Presidência, muitos do que se debruçam sobre seus discursos e práticas parecem ter perdido o receio de aplicar-lhe a pecha, ainda que com ressalvas.

Nas últimas semanas, a busca por elementos que liguem o bolsonarismo ao fascismo tomou parte do meio acadêmico. Fazer essa relação não é algo trivial.

Chamar alguém de fascista só não é mais grave do que dizer que fulano é nazista. E é mais sério até do que dizer que sicrano é stalinista, porque, incrivelmente, parte da esquerda continua festejando ditadores comunistas de ontem e de hoje.

Um exemplo foi um texto publicado no caderno Ilustríssima, da Folha, em 9 de junho. Assinado por oito acadêmicos ligados à USP, tem um título categórico: “Por que assistimos a uma volta do fascismo à brasileira”.

A tese ali exposta é que os elementos que ligam Bolsonaro a esta ideologia, que ficou identificada com o italiano Benito Mussolini a partir os anos 1920, são inúmeros: ultranacionalismo, aceitação da violência, intolerância ao contraditório, defesa da família patriarcal e religiosidade extremada, entre outros.

Outra iniciativa recente na mesma linha é o projeto “Bolsonarismo: o novo fascismo brasileiro”, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia, da PUC-SP.

Seu objetivo é “compreender o atual estágio da crise da democracia liberal, constitucional e representativa, a ascensão de populismos de extrema direita, a degradação das instituições brasileiras e a ameaça política, social e humanitária representada pelo movimento social e político do bolsonarismo“. 

O projeto, iniciado em 5 de junho, reúne 40 professores e pesquisadores, de diversas instituições de ensino e afiliações ideológicas.

Há desde conservadores clássicos como Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha, até nomes ligados a grupos liberais de oposição a Bolsonaro, como Livres e MBL (Movimento Brasil Livre). A coordenação-geral é de Eduardo Wolf, doutor em Filosofia pela USP e professor do Laboratório.

Entre os temas a serem estudados, estão o uso de redes sociais, disseminação de fake news, neopentecostalismo, influência dos militares e o olavismo (sim, o guru de Bolsonaro agora é um “ismo” estudado em universidades).

“É uma tentativa de entender o que está acontecendo com a democracia brasileira. Está dado que existe uma crise, um deficit democrático, que se expressa em nível mundial”, diz Rodrigo Coppe Caldeira, historiador e professor do programa de pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-Minas, um dos membros do grupo.

A ascensão da extrema direita e de um regime iliberal como o de Bolsonaro, segundo ele, é um retrato desse fenômeno.

“O fascismo está relacionado a um momento histórico determinado, então é preciso ir com cuidado ao fazer a comparação. Mas elementos que caracterizam aquele fascismo italiano nos levam a observar semelhanças com o bolsonarismo, como o flerte com as milícias, o discurso da violência, o antipluralismo, a ideia do líder como defensor do povo contra as elites corruptas”, afirma Caldeira.

A direita que apoia Bolsonaro, obviamente, rejeita a pecha de fascista. Afirma que é apenas um rótulo usado pela esquerda para tentar desacreditar uma agenda conservadora de costumes, com menos interferência de Estado e em oposição ao “globalismo”.

As investidas contra as instituições, para os bolsonaristas, seriam apenas críticas respaldadas pela liberdade de pensamento, que não pode jamais ser castrada. Episódios de violência seriam casos pontuais e difíceis de serem controlados.

Outras iniciativas de estudo da extrema direita que estão surgindo veem a relação entre bolsonarismo e fascismo com cautela, como é o caso do Observatório da Extrema Direita, ligado à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

“Você tem elementos claramente fascistas no governo, como o olavismo, ou os praticantes de um  catolicismo exacerbado. Mas o governo Bolsonaro é muito cacofônico”, diz Guilherme Casarões, professor da Fundação Getulio Vargas.

Ele é um dos coordenadores do Observatório, ao lado de Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea da UFJF, e David Magalhães, professor de Relações Internacionais da Faap e da PUC-SP. No total, 13 professores e pesquisadores estão envolvidos com o projeto.

“Às vezes a agenda do Bolsonaro atrai grupos fascistas, ou neointegralistas. Mas a definição de fascismo é relativamente recortada”, diz Magalhães.

Como lembra Caldeira Neto, o governo Bolsonaro tem espaço também para componentes cuja relação é bem maior com o liberalismo, embora regimes fascistas no passado tenham recorrido a liberais como suporte técnico. São os casos de Paulo Guedes (Economia) e Tereza Cristina (Agricultura), por exemplo.

“O bolsonarismo é fenômeno muito diversificado. O presidente tem relações com a extrema direita, mas não dá para dizer isso do governo como um todo”, afirma.

Ao menos num ponto a semelhança é indiscutível. A exemplo de Mussolini, Bolsonaro gosta do gesto de “dar uma banana” para seus detratores, como fez algumas vezes em Brasília.

O presidente Jair Bolsonaro “dá uma banana” para a imprensa em frente ao Palácio do Alvorada (Reprodução)*Texto extraído do Blog Saída Pela Direita da Folha de S. Paulo.

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Foro de Moscow 113 – O STF COMEÇA A REAGIR AO FASCISMO?

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Quando todos somos fascistas

Por Daniel Verdú

El País

Você é um fascista. E o seu vizinho. E também muitos dos manifestantes do último Dia do Orgulho Gay em Madri, segundo a deputada catalã Inés Arrimadas. E as pessoas do município espanhol de Alsasua que gritavam contra políticos do partido Cidadãos. Mas também os militantes do Vox e seus dirigentes, e Matteo Salvini e suas hordas da Liga Norte. Isso sem contar os que declararam a independência no Parlamento da Catalunha em outubro de 2017, os novos partidos que reivindicam Mussolini na Itália e os que dirigem seus veículos pelas cidades sem respeitar as ciclovias. Nenhuma palavra foi tão utilizada nos últimos tempos para desqualificar rivais de todo tipo, para refletir um autoritarismo crescente ou para definir, recorrendo ao passado de forma cansativa, um aroma político que emana do presente e cujas características se repetem no mundo todo sem uma resposta adequada.

O irresistível magnetismo de um período histórico em que alguns, como Umberto Eco, decifraram um estado de ânimo político e moral em permanente retorno tomou conta também do setor editorial. Quase uma dezena de novidades que abordam a questão acabam de chegar às livrarias e indagam sobre suas raízes, personagens e paralelismos com o momento atual. A Itália lidera a tendência com o maior catálogo de propostas, em meio aos rumos autoritários e xenofóbicos do Governo formado pela Liga e o Movimento 5 Estrelas. A obra mais festejada é M. Il figlio del secolo (M., o filho do século), com a qual Antonio Scurati venceu recentemente o Prêmio Strega. Uma extraordinária biografia romanceada sobre a ascensão ao poder de Benito Mussolini – pensada como a primeira parte de uma trilogia que também dará origem a uma série da TV – que triturou definitivamente o tabu de narrar os acontecimentos mais obscuros da primeira metade do século XX do ponto de vista dos carrascos. Certo, mas existem realmente semelhanças entre aquele período e o atual para justificar tanto furor?

Manifestação de ultradireitistas em Roma.
Manifestação de ultradireitistas em Roma.FABIO FRUSTACI (CAMERA PRESS)

Scurati, em plena ressaca pelo prêmio mais importante da Itália (a Alfaguara publicará o livro em janeiro na Espanha), encontra alguns paralelismos em aspectos muito concretos localizados no clima em que o monstro foi forjado. “A analogia mais forte está no sentimento de derrota, mal-estar, abandono, desilusão, rechaço e repulsa à velha classe dirigente e às instituições parlamentares. Também o fracasso da social-democracia de 1919 até 1921, um cenário em que o fascismo encontrou terreno fértil. Esse tipo de sentimento antipolítico, que nada tem a ver com a análise racional de nossa vida, é análogo. Volta a ser detectado, como na época, em elevadas porcentagens do eleitorado. Afeta pais de família, trabalhadores, gente de bem atraída por líderes e movimentos que manifestam abertamente o desprezo pela velha política, mas também pelas instituições parlamentares. A diferença é a violência, nisso não tem nada a ver”, afirma o autor.

Uma pequena burguesia não integrada a nenhuma classe ou grupo social, assustada pela percepção de uma invasão estrangeira; partidos que invocam atalhos extraparlamentares e dão as costas às Câmaras num clima de decomposição; e uma crise econômica incrustrada, que solapou a base da população. Esse clima é sentido há anos no Ocidente e chega até o Brasil, onde Jair Bolsonaro, um capitão reformado do Exército, ressuscita o autoritarismo e defende a tortura e a ditadura militar. Também alcança os Estados Unidos da era Trump: personagens como Steve Bannon declaram seu amor a intelectuais que deram cobertura ao fascismo, como Julius Evola. Por isso, a secretária de Estado do Governo de Bill Clinton, Madeleine Albright, portadora de extensa quilometragem diplomática, alerta com seu Fascismo: Um Alerta (Crítica) que o monstro “não é uma etapa excepcional na humanidade; faz parte dela” e se apresenta atualmente com rostos diferentes. Putin, Erdogan, Kim Jong-un…

“A maior analogia está no rechaço às instituições parlamentares. A diferença é a violência”

Todos fascistas, então? Scurati, como a maioria dos intelectuais consultados, denuncia um abuso que gerou o efeito contrário. “Muitos eleitores desses movimentos antissistema, gente integrada na sociedade, reagem também contra o antifascismo porque durante muito tempo ele foi usado de forma irresponsável. Quem quer que fosse de direita era chamado de autoritário, rotulado de fascista. Isso é inexato e já fez com que o antifascismo, abusado e defendido por gente que não conhecia seu verdadeiro significado, acabasse sendo uma arma equivocada para a democracia.”

A questão incendeia qualquer debate entre historiadores, com frequência divididos como a própria sociedade. A maioria concorda, porém, que o mundo não tomou a real consciência do fascismo e não fechou esse capítulo como aconteceu com o nazismo. Emilio Gentile, o maior especialista italiano nesse período, acaba de publicar Quien Es Fascista (quem é fascista). Um título provocador que aborda com todas as letras a superexposição do conceito e a languidez semântica que seu repetitivo eco traz aos relatos e à vida diária. “Esse abuso denota um não entendimento do que foi o fascismo realmente. Aplica-se a personagens com os quais não estamos de acordo, que não nos agradam. Mas não é novo: aconteceu nos últimos setenta anos. Foi aplicado a Eisenhower, Mao, Stálin… Palmiro Togliatti [secretário-geral e fundador do Partido Comunista Italiano] chegou a definir como fascista Carlo Rosselli, que criou o movimento antifascista Justiça e Liberdade. Mas os fenômenos de hoje não têm nada a ver com o fascismo.”

Gentile, extraordinário historiador e um tanto radical nesse campo, acredita que não há nada de novo a contribuir com o estudo do fascismo e que a banalização do termo, transformado em objeto de consumo, já é insuperável. O fascismo pode voltar? “Sim, claro. Como também podem voltar o bonapartismo, o jacobinismo… Estamos usando um termo de maneira inadequada para explicar fenômenos novos. E o erro responde principalmente à incapacidade de enfrentar, com olhar crítico atual, assuntos contemporâneos”, afirma. “A raiz se encontra na falta de uma etimologia precisa, como têm o comunismo e o liberalismo: fascismo só significa agrupar. E hoje se transformou num insulto para prepotentes, antissemitas, autoritários… Mas nenhum populismo atual que invoque o princípio de soberania popular pode ser fascista. O fascismo negava tudo o que derivava da Revolução Francesa. E se o que estamos falando é de nos identificarmos com a figura de um homem forte, de alguém que se dirija diretamente ao povo, então também poderíamos dizer que [o político italiano] Matteo Renzi é um fascista, não acha?”

Uma seguidora de Matteo Salvini durante um comício.
Uma seguidora de Matteo Salvini durante um comício.ALESSIO PADUANO / REDUX

A origem do termo encontra-se no símbolo romano do fascio (feixe de varas), por sua vez herdado dos etruscos. Os fasci simbolizavam a unidade da soberania, da ordem e do poder supremo capaz de conceder justiça. O mesmo símbolo foi depois usado na Revolução Francesa, na estátua de Abraham Lincoln em Washington e na marca da própria Guarda Civil Espanhola. Um dos primeiros movimentos sociais modernos que o empregaram foram os Fasci Siciliani entre 1891 e 1894: um grupo de inspiração libertária, democrática e socialista de agricultores que defendia seus direitos trabalhistas. Mas a apropriação definitiva chegou em 1919 com os Fasci Italiani Combattimento, fundado por Benito Mussolini em 23 de março de 1919, verdadeira gênese da mudança. Em parte por essa dispersão, por sua difusão pela esquerda e a direita do espectro ideológico, muitos encontram legitimidade para usá-lo nos dias de hoje.

Um grupo de escritores, como Sandro Veronesi e Roberto Saviano, transformou a militância contra Matteo Salvini em parte de seu corpus literário e ensaístico na Itália. No extremo oposto à restrição do termo de Gentile, encontra-se também Michaela Murgia, autora de Instrucciones para Convertirse em Fascista (instruções para se transformar em fascista), um dos sucessos do ano na Espanha. É uma sorte de falso manual construído com ironia e provocação para denunciar a infiltração total do fascismo na sociedade. Sem nuances. Banalização? “Não acho. É uma maneira de recordá-lo. Não é um fenómeno histórico, mas diacrônico. Apresenta-se com formas diferentes, mas métodos iguais. Chame-o do nome que quiser, mas ele tem o mesmo impacto. Ninguém pensa que os Camisas Negras [milícia paramilitar italiana] voltarão, mas me preocupa que Salvini, por exemplo, dê entrevistas vestido de militar sem estar numa base militar.”

Murgia considera que há três elementos fundamentais que permitem pensar num terreno propício, político e moral, similar ao que levou àquele período. “Em primeiro lugar, a relação que o Ministério do Interior italiano e seus potentes apoiadores mantêm com a dissidência (lembremos do dramaturgo italiano Gabriele D’Annunzio, considerado por muitos como um dos precursores do fascismo, gritando contra o Parlamento). “Quem manifestar uma opinião contrária é atacado nas redes sociais do ministro e recebe uma avalanche de ameaças e insultos”, diz ela. “Os intelectuais estão na mira, mas também os cozinheiros do Master Chef e os DJs que o criticam. Se você expressa sua opinião contra ele, passa a ser seu adversário. Em segundo lugar, o questionamento sobre os outros poderes do Estado: ele se recusa a ser julgado e diz que os juízes estão politizados. Mas quando o Poder Executivo deslegitima o Judiciário, estamos ante um ato contra a Constituição. E, terceiro, o machismo de Estado. Salvini tende a recuperar modelos sociais superados: Deus, pátria e família. Ataca as mulheres publicamente. Contra elas dirige a violência mais forte.”

Murgia é autora também de um polêmico fascistômetro publicado no semanário L’Espresso. Um experimento que poderia remontar à Escala F, um teste de personalidade desenvolvido por Theodor Adorno para detectar traços autoritários (o F é de fascismo) e que funciona como uma espécie de j’accuse psicológico ao fascista que luta para sair de dentro de cada um de nós: todos sob suspeita. Uma ideia também transmitida pelo livro Como Funciona o Fascismo (L&PM Editores), de Jason Stanley. A ideia de que novas formas de autoritarismo espreitam nas sombras de nossas estruturas políticas, no entanto, não se sustentaria se não estivesse arraigada nessa fronteira configurada pela perda de sentido da palavra e por um cuidadoso processo de aceitação da sua acepção.

“Estamos usando um termo de maneira inadequada para explicar fenômenos novos”

Na Itália, uma ladainha tenta periodicamente convencer sobre as bondades do ditador. Estradas, trens que chegavam na hora, tratamento das zonas pantanosas, erradicação de doenças. “Mussolini também fez coisas boas”, escandalizou o ex-presidente do Parlamento Europeu Antonio Tajani em março passado. Com esse título irônico e editado pela Bollati Boringhieri, Francesco Filippi se propôs este ano a desmontar todas as fake news construídas ao redor da obra do tirano nascido em Predappio, propagadas principalmente na Internet com impacto sobretudo entre os mais jovens. “O fascismo conseguiu uma presença crossmedia e saltou dos livros de história à web. Este livro [na lista dos 10 mais vendidos há 16 semanas] pretende ser uma espécie de kit de primeiros socorros para curar algumas de suas mentiras, na maioria das vezes não contestadas. Muitos italianos, por exemplo, pensam que Mussolini criou o sistema previdenciário, quando este foi instalado em 1895, ano em que ele tinha 12 anos.”

A revisão sem preconceito daqueles anos, como propõe Scurati, gera tensões. No último Salão do Livro de Turim, vários títulos disputavam a atenção do público. Altaforte, uma editora próxima do partido declaradamente fascista CasaPound, aterrissou com uma obra biográfica sobre Matteo Salvini e foi expulsa do evento. Não fosse assim, a polêmica teria sido ainda maior: convidados como a sobrevivente de Auschwitz Halina Birenbaum ameaçaram abandonar o evento. Uma decisão razoável. Ideal também para atacar inocentes e jogar na cara de seu diretor, Nicola Lagioia, a frase atribuída a Winston Churchill: “Os fascistas do futuro chamarão as si mesmos antifascistas.” “Foi algo interessante. O Salão do Livro não praticou a censura excluindo a Altaforte. Sempre houve editoras de extrema esquerda ou direita. O fato não era a livre circulação de ideias; o problema era que [a editora] é muito próxima de um movimento político que não entendemos realmente até que ponto é legal. Depois começaram a dizer que o antifascismo era o câncer da cultura italiana”, diz ele.

A digestão literária do fascismo, consideram Lagioia e muitos outros intelectuais, não foi concluída. “Houve uma literatura antifascista importante nos anos cinquenta, mas seus autores foram marginalizados. Após a queda do fascismo, de repente ninguém na Itália tinha sido fascista. Por esse motivo, existe agora uma geração que questiona essa história. Na Espanha, Javier Cercas, Javier Marías e Fernando Aramburu têm se debruçado sobre o passado. Existe uma fornada de escritores após o franquismo que o reflete. Tolstói falou em Guerra e Paz sobre as campanhas napoleônicas muitos anos depois de ocorrerem. Agora é a vez das novas gerações se voltarem a esse passado. Fora essa questão… sim, pode ser que haja também uma moda editorial.” Enquanto isso, e até a poeira baixar, você poderia continuar sendo um fascista.

LEITURAS

Quem é fascista. Emilio Gentile. Tradução de Carlo A. Caranci. Aliança, 2019. 224 páginas. 8,90 euros.

Instruções para converter-se em fascista. Michela Murgia. Tradução de Ana Ciurans. Seix Barral, 2019. 150 páginas. 15 euros.

Facha. Como funciona o fascismo e como entrou em tua vida. Jason Stanley. Prólogo de Isaac Rosa. Tradução de Laura Ibáñez. Blackie Books, 2019. 240 páginas 18,90 euros.

Anatomia do fascismo. Robert Ou. Paxton. Tradução de José Manuel Álvarez. Capitão Swing, 2019. 424 páginas. 24 euros.

Fascismo. Madeleine Albright. Tradução de María José Velho Pérez. Paidós, 2018. 352 páginas 22,90 euros.

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O bolsonarismo trava uma guerra perdida: as novas gerações não engolem a agenda moralista

Por Rosana Pinheiro Machado

The Intercept

 

EXISTEM DUAS MANEIRAS de narrar e interpretar a reação e os desdobramentos da conferência que ministrei em São Borja, município de grande importância para o imaginário gaúcho, onde estão enterrados Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, no início de julho. Elas são também duas maneiras de interpretar o Brasil de hoje.

A notícia da 44ª edição da minha palestra Da Esperança ao Ódio, na Unipampa, não foi bem-recebida no “Texas gaúcho”, como São Borja é chamada por seus habitantes. Homens, que têm orgulho de serem “xucros”, diriam que isso ocorreu porque, no pampa, têm mais machos valentes do que em outros lugares do mundo. Afinal, como comentavam algumas pessoas nas redes sociais: “aqui essa mocreia (sic) não se cria.”.

Dei a palestra como de costume. Os ataques seguiram um roteiro conhecido. Alguns bolsonaristas comparecerem ao evento, fotografaram slides fora de contexto da fala e desapareceram. No outro dia, estava na internet a mentira de que eu havia chamado Bolsonaro de vagabundo, mesmo que houvesse centenas de testemunhas para provar o contrário.

Acusaram-me de usar dinheiro público para difamar a imagem de Bolsonaro. Um colega especialista no monitoramento de redes sociais, que pediu anonimato, me contou que minha imagem foi uma das mais compartilhadas no WhatsApp naqueles dias no Brasil. Nos comentários de posts que viralizaram, chamavam-me de puta, baranga, corrupta, criminosa e teve até quem lamentasse que eu não estava na Boate Kiss, que pegou fogo em Santa Maria, onde moro, em 2013, matando cerca de 250 jovens e ferindo gravemente mais de 600.

Áudios no Whatsapp circulavam denunciando a professora “doutrinadora”, pedindo punição severa. Ao lado da foto de Glenn Greenwald, minha imagem foi estampada no tradicional jornal local, Folha de São Borja, dizendo que eu fazia política na universidade. Eles sentiam ódio por eu dizer que no Brasil havia ódio.

Os posts disparadores dos ataques vinham de homens tradicionalistas da faixa de 50 anos para cima. Todos eles tinham fotos de perfil e de capa no Facebook exibindo cavalos, chimarrão e a bandeira do Rio Grande do Sul. Seguindo a linha dada pelos homens, as mulheres da mesma faixa etária e com fotos de flores na capa do Facebook eram as mais agressivas nos comentários.

Não deve ser mera coincidência o fato que, nas manifestações pró-Moro em 30 de junho, chamava atenção a elevada faixa etária das pessoas que estavam nas ruas. Há um fator geracional que precisamos observar com mais atenção para compreender a radicalização do bolsonarismo. Quem, em última instância, ainda apoia um governo sem projeto e um juiz parcial?

A última pesquisa do DataFolha não deixa dúvida que, quanto mais velha é a pessoa, mais ela tende a apoiar irrestritamente a conduta inadequada da Lava Jato. A reprovação das conversas entre procuradores e o ex-juiz é de 62% entre pessoas de 35 a 44 anos, 50% entre pessoas de 45 a 59 anos e cai para 44% entre pessoas acima de 60 anos.

O Rio Grande do Sul pode ser entendido como um caso extremo e caricato do bolsonarismo. Bolsonaro empodera esse homem que se sente perdendo privilégios e nostálgico de um Rio Grande virtuoso. A metade sul do estado, por exemplo, que tanto povoa o imaginário fronteiriço, está economicamente empobrecida, mas se alimenta de histórias de um passado grandioso. O ex-capitão satisfaz esse gaúcho que idealiza o passado, cuja cultura popular exalta um homem armado e orgulhoso de ser tosco, grosso e simples. Bolsonaro é a projeção daquilo que é, ao mesmo tempo, melancolia e frustração.

Em “Como Funciona o Fascismo”, o filósofo Jason Stanley elenca o apreço ao passado mítico, glorioso e puro como a primeira característica do fascismo. Nesse passado, reina a família patriarcal e papéis de gênero tradicionais. (Não estou sugerindo que toda exaltação ao passado é fascista; apenas que a fantasia demasiadamente arraigada a um mundo que não se viveu, somada a um contexto de crise e profunda transformação, pode ser um terreno fértil para o fascismo). Segundo o autor:

“Na retórica nacionalista [ou regionalista], esse passado foi perdido pela humilhação provocada pelo globalismo. Esses mitos geralmente se baseiam em fantasias de uma realidade pregressa inexistente que sobrevive nas tradições das pequenas cidades e do campo (…). A função do passado mítico na política fascista é aproveitar a nostalgia e emoção para princípios centrais da ideologia fascista: autoritarismo, hierarquia, pureza e luta.”

Dada tal fusão de valores morais bolsonaristas com a mítica gaúcha, não estranha o fato de que, segundo a última pesquisa Ibope, ao mesmo tempo em que cresce a reprovação do governo Bolsonaro como um todo no Brasil (de 27% em abril para 32% em junho), cresce a sua aprovação na região sul (de 44% para 52%).

O ataque sofrido por mim é ilustrativo do autoritarismo patriarcal sobre o qual se agarra a geração mais velha de uma região economicamente decadente. Mas contra o que, exatamente, esse núcleo duro bolsonarista está lutando?

A 44ª VERSÃO da minha palestra na Unipampa foi inesquecível. Professores e estudantes do curso de Publicidade organizaram um evento impecável pelo profissionalismo. No cerimonial de abertura, um estudante tocou e cantou “Tempo Perdido” de Legião Urbana.

Com duas horas de antecedência, o auditório já estava lotado, fazendo com que muitos estudantes sentassem no chão ou ficassem de pé. Muita gente viajou até 200 km para estar lá.  As perguntas dirigidas a mim eram instigantes, dignas de jovens com aguçado espírito acadêmico. Ao final, passei 30 minutos recebendo abraços apertados e palavras de apoio. Os longos aplausos não eram para mim, mas para o significado e a força daquele evento. Havia ali uma verdade tangível: nós poderíamos ver, tocar e sentir estudantes qualificados e mobilizados pela universidade pública. No velho oeste, ocorreu um evento cheio de esperança.

A palestra não ocorreu em qualquer universidade, mas na Unipampa, que é um exemplo da expansão e renovação do ensino superior dos últimos anos. Foi criada em 2008, no governo Lula, para trazer desenvolvimento a uma região empobrecida. Na plateia, havia estudantes negros, LGBTs e muitas meninas feministas. Além disso, chamou-me atenção a presença de estudantes de outros estados, já que o Enem possibilitou uma maior mobilidade geográfica. São Borja, que é uma cidade muito bonita e cheia de história, é hoje também habitada por corpos diversos que renovam a região.

Como já disse por aqui, a gente não pode esquecer que a vitória da extrema direita é também uma reação a muitas conquistas que vieram para ficar.

Quem eram os bolsonaristas que me atacaram? Na palestra, eles eram dois ou três. Por que eles não exerceram seu direito de protestar no evento? Provavelmente porque faltou gente de apoio – e também porque faltou coragem. Na verdade, eu teria incontáveis casos para contar com o mesmo roteiro insosso: jovens de extrema direita agitam nas redes sociais e ameaçam protestar em uma palestra minha, mas raramente comparecem como o alardeado. Quando comparecem, chegam em número insignificante e se sentem intimidados pela maioria. Macho valente? Só nas redes sociais.

O ataque baixo que sofri cheira a desespero. Desespero da radicalização dos que sobraram, da nostalgia bolsonarista de uma geração que se sente perdendo uma cruzada moral. Isso, é claro, após a Vaza Jato e queda da popularidade de Sergio Moro. Os guerreiros estão a postos para defender seus heróis.

Essa é uma guerra perdida. Como disse Fabio Malini sobre as manifestações do dia 30 de junho: “o bolsonarismo é o teto do progressismo dos mais jovens. Com data de validade. É um passado lutando para se manter no futuro. Uma luta, sabemos, inútil”.

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Como identificar um fascista? Basta olhar um bolsonarista? Dez pontos característicos

Por Paulo Ghiraldelli Jr

Professor Jason Stanley, autor de How Fascism Works, ministra um curso chamado Propaganda, Ideologia e Democracia (Universidade de Yale). Ele fala de dez pontos que caracterizam um fascista. Cito os pontos e coloco entre parênteses meus comentários.

Fetiche do passado

A gênese do fascismo está no passado mítico, quando havia pureza étnica, religiosa ou cultural. A mitologia é intencional, para provocar nostalgia pelo que não aconteceu. (Bolsonaro falou e a Folha publicou: “queremos voltar ao Brasil dos anos 60 ou 50”).

Propaganda

Criar um problema, como uma crise de imigração fictícia e unificar um grupo em torno do combate à invasão de estrangeiros. (O conflito da Venezuela é sempre citado pelos bolsonaristas, que chegam a falar em intervenção lá, com o Brasil aliado a Trump).

Anti-intelectualismo.

Para erodir o discurso público bem informado, é preciso minar a ciência, a educação liberal, o conhecimento especializado. (Olavo de Carvalho é guru de Bolsonaro; é desescolarizado e seu papel é desautorizar o heliocentrismo etc.)

Irrealidade

Uma vez que o anti-intelectualismo é bem sucedido, o debate racional é substituído por medo e raiva, o estímulo de um sentimento de perda para o qual é preciso encontrar culpados. (O culpado  são as feministas e os comunistas, mesmo que esteja não existam mais).

Hierarquia

A natureza impõe hierarquias de domínio que são incompatíveis com a aspiração de igualdade diante da lei que vinha se expandindo sob a democracia liberal. (Pondé é o especialista em invocar todo tipo de tese anti-igualitária em seus artigos semanais; odeia o sistem de cotas, pois este empurra a igualdade no ponto de chegada).

Vitimização

Aumento de representação de minorias provoca um sentimento de vítima entre maiorias pressionadas a compartilhar poder. O coração do fascismo é lealdade à tribo – étnica, religiosa, cultural. (Tudo que Bolsonaro mais odeia são as minorias: negros, mulheres, gays, ativistas ecológicos etc).

Lei e ordem

Esse slogan mascara a licença para violar a lei e a ordem. Impunidade de assassinatos policiais, abusos carcerários são vistos como necessários para proteger a sociedade virtuosa. (“Direitos humanos para humanos direitos”: a ordem seletiva de Bolsonaro).

Ansiedade sexual

Se o demagogo é o pai da nação, qualquer ataque ao patriarcado e à família tradicional é uma ameaça. É preciso sexualizar o outro com fantasias de agressão e “desvio” sexual. Hitler dizia que os judeus conspiravam para usar soldados negros para estuprar as puras mulheres arianas. Linchamentos de negros no sul dos EUA ocorriam pelo simples boato de que um negro teria tentado flertar com uma mulher branca. (Bolsonaro ficou possesso quando Preta Gil falou de seu filho (de Bolsonaro), sendo homossexual ou ficando com uma negra, lembram?).

Nós e os outros

É preciso desumanizar segmentos da população, o “outro” como imigrantes latinos, muçulmanos, o que ajuda a justificar o tratamento destes grupos. (Bolsonaro e bolsonaristas vivem criando a ideia de uma “civilização cristã”, e tentando rechaçar cultos afros etc.).

*É filósofo.