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País vive regressão mental, política e cultural de proporções bíblicas

Por Marcos Augusto Gonçalves

O ano será bom. As escolas ensinarão que a Terra é plana e que Deus a criou assim —e essa é a verdade, pela qual nos libertaremos. Nas salas de cinema (as que ainda não se transformaram em templos) e nas plataformas de streaming serão preteridos filmes com mensagens, mesmo subliminares, ofensivas à família papai com mamãe, ao baile de debutantes, ao rosa para elas e azul para eles, ao perfil light da escravidão, à evidência de que os índios são latifundiários preguiçosos e à certeza de que a Amazônia está sob ameaça de Leonardo Di Caprio.

Veja principais memes de 2019

Na vida real, os humanos direitos poderão trabalhar e andar pelas ruas em paz, com o novo ritmo da eliminação em massa de bandidos e indivíduos propensos ao crime —como se sabe, aqueles todos, ou quase todos, à exceção de empregados domésticos com cartas de recomendação, que têm pele escura e vivem nas favelas.

A vida intelectual será enfim elevada à estatura do pensamento de Olavo de Carvalho, doravante denominado O Cânone —guia luminoso dos patriotas cultivados e funcionários públicos ilustrados. “A Imagem do Homem na Astrologia” e os dois tomos de “O Imbecil Coletivo” passarão a estar obrigatoriamente disponíveis, junto da Bíblia, em salas de espera, repartições, autarquias e cabeceiras de camas de quartos de hotel.

Bem, espero que não se concretizem as previsões acima, obra de uma vidente que preferiu não se identificar, mas admitiu morar em famoso condomínio na Barra da Tijuca.

Charges que marcaram 2019

Seja como for, elas correspondem aos votos sinceros, feitos ao longo de 2019, pela malta que tomou de assalto os órgãos culturais depois que o Mito subiu aos céus da Presidência. Para confirmar, basta conferir as declarações de alguns dos canastrões em cena.

O secretário Roberto Alvim, por exemplo, que arremessou seu chinelo furado contra a atriz Fernanda Montenegro, convocou os colegas de aparelhamento estatal a uma “guerra cultural” —como se fosse disso que o Brasil necessitasse de seu principal gestor público na área de cultura.

Em sintonia com o chefe, o maestro Dante Mantovani, indicado para a Funarte, disse, em dantesca manifestação, que “o rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto”. Não esquecendo que o regente já havia vibrado sua batuta em defesa do terraplanismo.

Os exemplos são inúmeros. Na Ancine, que agora se dedica a destruir o cinema nacional, arrancam-se das paredes os pôsteres de filmes clássicos brasileiros. Para onde se olhe a mensagem parece ser uma só: vamos cortar a luz. O caráter folclórico dessas manifestações não deveria servir para esconder o que, de fato, estamos presenciando: uma regressão mental, política e cultural de proporções bíblicas.

BACURINGA

Montagem com os filmes mais falados do ano foi postado por Kleber Mendonça Filho, diretor de “Bacurau”. Seu personagem, Lunga (Silvero Pereira), surge pintado como o Coringa (Joaquin Phoenix) do diretor Todd Phillips.
Montagem com os filmes Bacurau de Kleber Mendonça FIlho e “Coringa” do diretor Todd Phillips – Reprodução

Montagem com os filmes mais falados do ano foi postado por Kleber Mendonça Filho, diretor de “Bacurau”. Seu personagem, Lunga (Silvero Pereira), surge pintado como o Coringa (Joaquin Phoenix) do diretor Todd Phillips.

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Parte do Brasil é composta de “burros trágicos”

Por Leonardo Boff*

Em um dos seus escritos perguntava F. Nietzsche: “Pode um burro ser trágico? Pode na medida em que sucumbe ao peso de uma carga que não pode carregar, nem pode livrar-se dela”.

Há uma boa parte de nossa população que é de “burros trágicos” num duplo sentido da palavra:

Num primeiro sentido, “burro trágico” é aquele que facilmente se deixa enganar por candidatos que suscitam falsas promessas, com slogans apelativos meramente propagandísticos, como “Deus acima de tudo e o Brasil acima de todos” (lema nazista), “fora PT”, “combate à corrupção”, “resgate dos valores tradicionais” “escola sem partido” contra a “ideologia de gênero“ “combate ao comunismo”, contra “a cultura marxista”. Estas duas últimas bandeiras são de uma “burrice trágica” e palmar única, num tempo que nem mais comunismo existe e que ninguém sabe o que significa exatamente “cultura marxista”.

Estes que gritam estas consignas e que se proclamam “gente de bem” são os mesmos que mentem descaradamente, a começar pelo atual capitão-presidente, por sua “famiglia”, por aqueles que disseminam conscientemente fake news, ódios, raivas fenomenais, injúrias de todo tipo, palavrões que nem seus familiares poderiam ouvir e que mandam para o inferno, com complacência, para Cuba, Coreia do Norte ou para Venezuela os que pensam diferente.

Curiosamente ninguém os manda para China, onde de fato vigora o comunismo-maoísmo porque sabem que lá o comunismo funciona pois se produziu a maior economia do mundo e que pode enfrentar militarmente a maior potência militar do mundo: os EUA.

Esse primeiro tipo de “burro trágico” é fruto da ignorância, da falta de informação e da maldade contra quem pensa diferente.

Existe um segundo tipo de “burros “trágicos”: aqueles que são consequência de uma estratégia política de criação de “burros trágicos”, voluntariamente mantidos analfabetos, para melhor manipulá-los e terem sua base eleitoral cativa. Fazem-nos crédulos e seguidores de um “mito” inventado e inflado sem qualquer conteúdo digno de um “mito”.

Essa classe, criadora de “burros trágicos”, nem toda, graças a Deus, tem pavor de alguém que saiu de condição da “burrice trágica” e chegou à cidadania e a desenvolver espírito crítico.

O atual governo somente ganhou a maioria de votos porque grande parte dos eleitores foram manipulados com mentiras, na condição de “burrice trágica”. Negou-se-lhes a verdadeira intenção escondida: de diminuir o salário mínimo, de cortar direitos sociais, para muitos, da bolsa-família, de modificar a legislação trabalhista para favorecer as empresas, de liquidar a farmácia popular, de diminuir os vários acessos dos pobres ao ensino superior e, acima de tudo, da profunda modificação do regime das aposentadorias. De subordinar nossa economia e politica aos interesses do capital dos Estados Unidos, para onde foi esta semana prestar contas ao império.

Se tivessem revelado esta intenção jamais teriam ganho a eleição. Por isso, ela resulta espúria, mesmo feita no rito democrático. Escandalosamente, assim como se fez com Cristo, tomaram as vestes nacionais e a sortearam-nas entre si.

Nem falemos de alguns ministros que são de uma “burrice trágica” e supina como a Ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, o Ministro da Educação que sequer domina nossa língua, pois é um imigrado colombiano, o ministro do Meio Ambiente que não conhecia o nome de Chico Mendes e o Ministro das Relações Exteriores, no qual a “burrice trágica” alcança sua quintessência.

Por que chegamos a este ponto tão baixo em nossa história? Celso Furtado morreu carregando esta interrogação:”por que o Brasil, sendo um país tão rico, seja tão atrasado e tenha tantos pobres?” Ele mesmo respondeu em seu livro que vale revisitar:”Brasil: a construção interrompida” (Paz e Terra, 1992):

“Falta-nos a experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada. E nos falta também um verdadeiro conhecimento de nossas possibilidades e, principalmente, de nossas debilidades. Mas não ignoramos que o tempo histórico se acelera, e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação” (p. 35). As forças atuais em continuidade de todo um passado, se empenham em interrompê-lo na forma de uma “burrice trágica”.

Ou talvez, pensando positivamente, está se armando a “nossa crise crucial” que nos permitirá o salto para um outro tipo de Brasil, com outros valores e com menos processos de proposital “emburrecimento” da politica brasileira.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escreveu Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes 2018).