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Assistencialismo na saúde e na doença

Constantino: Obras que outros governos prometiam são entregues por ...
Bolsonaro invade território político da esquerda (Flickr Palácio do Planalto)

Por Fernando Rizzolo*

Ainda me lembro, como se fosse hoje, das desvirtudes que o “lulopetismo” amargou quando a classe média e a direita – que nem sabia que pertencia à direita – acusavam o Bolsa Família de ser um “projeto assistencialista”, que induzia o povo pobre a não trabalhar, pois o petismo não “ensinava os pobres a pescar”, dando-lhes o “peixe pronto”.

Em um dos meus artigos de meados de 2019, já previa que a sobrevivência do bolsonarismo dependia da virada à esquerda, mesmo se portando e posando de liberal conservador. Dizia também, e com muita sobriedade, que as formas tácitas de apropriação política do petismo deveriam ser angariadas e cooptadas pelo bolsonarismo, uma vez que sobreviver ao capital eleitoral apenas com patriotismo e combate à corrupção seria impossível por não alcançar a densidade populacional pobre deste país.

A grande verdade é que estrategicamente o governo Bolsonaro, até como inspiração militar de técnicas de contenção ao inimigo, se apercebeu de que a população pobre, mormente vivenciando uma crise econômica, pouco se interessa por palavras, por ideias de luta de classes, a não ser que tenha dinheiro e a renda mensal garantida, assim como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez.

Portanto, ao que parece, um novo “pai dos pobres” pode estar a caminho, afinal Bolsonaro aprendeu com Lula que passar quatro anos dando 120 reais todo mês beneficiou cerca de 14 milhões de famílias, atingindo 57 milhões de brasileiros, e fez dele o “mito da esquerda”. Atualmente o valor médio do benefício é de 191 reais.

Assim, a estratégia para o aumento da densidade eleitoral por parte do governo Bolsonaro é no mínimo inteligente. Senão vejamos: o auxílio emergencial deverá injetar 300 bilhões na economia, e já beneficiou 66,2 milhões de brasileiros, multiplicando a renda dos atendidos. Dessa forma, em eventuais ameaças de queda em sua popularidade, estabelecerá Bolsonaro metas e estratégias fiscais que viabilizem sua perenidade.

O Bolsa Família custou 34 bilhões ao erário público. Se houver uma ampliação do benefício médio para que possa abranger um número maior de beneficiários e se tal benefício se tornar contínuo, o avanço da esquerda pode ser contido, além de capitalizar votos para a reeleição. Até mesmo o ministro Paulo Guedes entendeu a equação política e luta por novos tributos, como a volta da CPMF, desta feita disfarçada.

A chegada consagrada do Programa Renda Brasil, nos moldes melhorados do Bolsa Família e mais generoso, põe os liberais como guardiões dos pobres e nada sobrará para a atual esquerda. Vamos então, quem sabe, abandonar Celso Furtado, furtando seus ideais através de uma tática estrategista militar, e restará ao PT e à esquerda, se quiserem sobreviver, apenas dar as mãos ao bolsonarismo.

Celso Furtado, foi, portanto, vítima de um furto ideológico baseado na figura jurídica que chamamos de “estado de necessidade”… de o bolsonarismo voltar ao poder.

*É Advogado, Jornalista, mestre em Direitos Fundamentais.

Este artigo não representa a mesma opinião do blog. Se não concordar, faça um rebatendo que publique como uma segunda opinião sobre o tema.

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Entrevista

“Bolsonarismo é uma ideologia de classe média americanizada, ressentida”, diz historiadora

Enders é professora titular de História Contemporânea da Universidade Paris 8.  Foto: Arquivo pessoal

Carta Capital

A historiadora francesa Armelle Enders é apaixonada pelo Brasil, país que visita e estuda há mais de 30 anos. Nesta entrevista a CartaCapital, ela comenta o episódio dos ataques grosseiros desferidos por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes à primeira-dama francesa, Brigitte Macron. “O bolsonarismo é uma ideologia de classe média americanizada, ressentida. E tem também a personalidade do Macron, um homem culto, o que para o bolsonarismo é uma coisa que instiga a homofobia deles. Cultura é vista como uma coisa feminina, desprezível, de homossexual.”

A historiadora desconstrói ainda a personagem de Fernando Henrique Cardoso, “que goza de uma reputação de esquerda esclarecida entre franceses de sua geração, mas é, na realidade, um coronel da política brasileira que faz em Paris análises totalmente equivocadas sobre a realidade do País”.

Professora titular de História Contemporânea na Universidade Paris 8 e pesquisadora do Institut d’Histoire du Temps Présent, Armelle Enders publicou, entre outros livros, A História do Rio de Janeiro (Editora Gryphus) e Histoire du Brésil (Chandeigne), que acaba de ganhar a terceira edição, atualizada com a eleição de Bolsonaro.

MACRON E BOLSONARO FOTO: FREDERICO MELLADO / ARG

CartaCapital: Em janeiro deste ano, em Paris, FHC disse que não houve golpe de Estado, as instituições no Brasil funcionavam normalmente e a eleição de Bolsonaro foi a expressão da rejeição da corrupção e da violência.

Armelle Enders: Acho que há um divórcio entre a imagem que o FHC tem na França, por causa das relações que ele tem de amizade com uma certa inteligência francesa da geração dele, e a realidade. Ele tem uma imagem de esquerda esclarecida, esquerda moderna, e na realidade é um coronel da política brasileira. Como historiadora, vejo como uma coisa típica que havia na Primeira República: políticos que tinham posições públicas progressistas e, na verdade, no reduto eleitoral de poder deles, eram muito atrasados, oligarcas tradicionais. A análise dele é equivocada. É a versão do PSDB, surgida antes da campanha de 2014, de que o “lulopetismo era um sistema para se perpetuar no poder”. A propaganda foi massiva e espalhou-se. Pode-se contestar o PT, num contexto democrático isso faz parte da luta política. Mas, com o golpe, a situação política no País virou uma construção diabólica, de destruição do Estado.

CC: Uma construção diabólica?

AE: O PT foi acusado de se corromper para manter um projeto autoritário de poder. Foi isso o que os brasileiros teriam rejeitado. A afirmação de FHC é a consagração dessa lógica, que se desenvolveu num contexto de eleições, mas virou verdade para muita gente. Acabou por abalar as consciências. Outro argumento foi usado no pleito de 2018: o PT e Bolsonaro são dois extremos. Então, ambos devem ser rejeitados. Esses dois temas são desdobramento do contexto eleitoral, mas totalmente equivocados.

FOTO: LUIZ RAMPELOTTO/EUROPA NEWS WIRE/AFP

CC: O escritor chileno Ariel Dorfman afirmou recentemente: “O Brasil continua de costas para seu passado. A impunidade das Forças Armadas brasileiras abriu o caminho para Bolsonaro ser presidente e dizer as barbaridades que pronuncia diariamente”. Concorda?

AE: Na verdade, esse conflito nasce da correlação de forças no final da ditadura. A extrema-direita militar e civil negociou uma transição pretensamente democrática feita por cima, um acordão. O poder estava do lado dos militares, o que estava em jogo era a anistia. Foi preciso escolher: ou a ditadura persiste ou se processa os militares. O preço foi uma anistia negociada, sem punição. O problema sempre surge em função dos militares.

CC: Por que não se revogou a Lei da Anistia, como Néstor Kirchner fez na Argentina?

AE: Essa correlação de poder se manteve. A Comissão Nacional da Verdade desfez o pacto da Anistia, mas sem julgar os torturadores e responsáveis por crimes contra a humanidade.

CC: E essa série de incidentes degradantes e ridículos protagonizada por Bolsonaro, Guedes e outros em relação à França? Houve ofensas à mulher do presidente Macron que envergonham qualquer brasileiro decente.

AE: Analiso em dois níveis. Primeiro, o nível político, da relação do Brasil de Bolsonaro com o governo americano e Trump. Houve atritos entre Trump e o presidente Macron. Logo em seguida, começaram os atritos do Bolsonaro com Macron, o alinhamento era evidente. Foi também uma maneira de Bolsonaro agitar a bandeira da soberania diante das velhas potências europeias. Há ainda um componente cultural. A representação da Europa, e particularmente da França, é o contrário da ideologia dos bolsonaristas. A França é representada pela cultura, sofisticação de uma certa elite brasileira tradicional. O bolsonarismo é uma ideologia de classe média americanizada, ressentida. E tem também a personalidade do Macron, um homem culto, o que para o bolsonarismo é algo que instiga a homofobia. Cultura é vista como uma coisa feminina, desprezível, de homossexual. Macron valoriza a cultura, não é o estilo varonil do russo Vladimir Putin. O casal que ele forma com Brigitte, uma mulher culta e mais velha, representa tudo o que eles odeiam.

CC: Bolsonaro não esconde o interesse de se apropriar das terras indígenas para favorecer o agronegócio e explorar as riquezas do subsolo. Como a comunidade internacional pode ajudar a proteger a biodiversidade da Amazônia, mas também a proteger essas populações?

AE: Políticos populistas, como Trump, Netanyahu ou Putin, desrespeitam totalmente as instituições internacionais. Imagino que Bolsonaro fará a mesma coisa. As ONGs sofrem perseguição do governo brasileiro, e há ainda os consumidores do mundo. O que pode alterar a situação do Brasil da era Bolsonaro são os interesses econômicos. Mas não é fácil, porque muitas empresas multinacionais lucram com o bolsonarismo.

CC: Em artigo publicado no Le Monde, o filósofo Alain Badiou sustentou que o capitalismo é o responsável pela destruição do planeta. E propôs: “Que não exista propriedade privada do que deve ser comum, a saber a produção de tudo o que é necessário à vida”.

AE: Na verdade, a única alternativa que tivemos ao capitalismo foi a União Soviética, que em relação ao meio ambiente também não foi exemplar. É uma crise não só do capitalismo, mas da civilização, do que era a social-democracia. Não acredito também na economia administrada ou num Estado todo-poderoso, que pode acabar sendo predador.

CC: Qual seria a solução?

AE: É uma questão de consentimento das populações. Uma grande parcela apoia a predação. É difícil resolver.

CC: Será resolvido somente quando todos perceberem que estamos à beira do precipício?

AE: Já estamos. Aparentemente, há uma consciência mais nítida do que muitos anos atrás. O Brasil tem uma coisa mais forte, uma tradição escravocrata, que vem da época colonial. E o Bolsonaro refere-se a isso no imaginário da conquista do Oeste. Existe a ideia de que o território do Brasil é infinito. Pode-se explorar as terras à vontade, com permissividade absoluta.