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Molière é ícone do teatro francês

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

O que é um “tartufo”? Socorro-me do bom e velho dicionário “Aurélio” (edição da Nova Fronteira, impressa e pesadona, de 1986), para apresentar duas definições: (i) “homem hipócrita” e (ii) “devoto falso”.

Mas o mesmo “Aurélio” relaciona o verbete à peça “Le Tartuffe ou l’Imposteur” (1669), do escritor francês Molière (1662-1673). E é por esse autor e por esse clássico da dramaturgia, até para dar um quê de elegância à coisa, que inicio a crônica de hoje.

Jean-Baptiste Poquelin, dito Molière, nasceu em uma família de comerciantes parisienses. Recebeu excelente educação. Ainda jovem se meteu com o teatro e percorreu o país com a sua trupe de então. Voltou a Paris e tornou-se protegido do rei Luís XIV (1638-1715). Foi dramaturgo, diretor e ator (diversas vezes no papel principal). Sobretudo escreveu bastante, para lá de trinta peças, sendo um dos fundadores da dramaturgia francesa. Seu forte era a comédia satírica, criticando os costumes da época (que, de resto, vão e voltam na história dos homens). Desgostou a muitos, claro. Faleceu, aos 51 anos, na Paris de seu nascimento e glória.

O legado de Molière é enorme. “L’école des femmes” (“Escola de mulheres”, 1662), “Dom Juan ou le Festin de Pierre” (“Don Juan”, 1665), “Le misanthrope” (“O Misantropo”, 1666), “L’avare” (“O Avarento”, 1668), o citado “Tartuffe” (“Tartufo”, 1669), e “Le malade imaginaire” (“O doente imaginário”, 1673), entre outros textos, são obras-primas, lidas e encenadas em toda a terra redonda. Lembro-me da maravilha que foi assistir a “O Avarento”, com o nosso Jorge Dória no papel principal (saudade do tempo em que podíamos aglomerar no teatro). A celebrada Comédie-Française tem Molière como patrono espiritual, assim como o têm os atores franceses. Para se ter uma ideia do lugar de Molière na francofonia e nas letras, o francês é comumente designado como a “língua de Molière”, assim como se faz, quanto aos respectivos vernáculos, com os gigantes Shakespeare, Dante, Goethe, Cervantes e Camões.

O enredo de “Le Tartuffe” gira em torno da casa e da família de Orgon, um rico burguês parisiense que toma Tartuffe – a personagem-título, mas que só aparece no terceiro ato da peça – por um santo devoto. O “piedoso” Tartuffe conquista a confiança de Orgon ao ponto de este recebê-lo em casa. A família se divide. A confusão está armada. Uma secretária da casa, Dorine, e a esposa de Orgon, Elmire, decidem desmascarar Tartuffe. E, assediando até a dona da casa, Tartuffe se mostra o que quase todo/a vestal, sobretudo o que brada contra uma tal “bandidagem”, a corrupção (mas apenas a dos outros) e os “maus costumes” (seja lá o que isso for), é: um hipócrita impostor.

E aqui volto às definições do nosso “Aurélio”. Vocês já atentaram que fomos tomados por “homens hipócritas” e (terrivelmente) “falsos devotos”? Eles nos assombram diariamente com notícias sabidamente falsas. Paridos pela ditadura e pela tortura, eles pagam de “defensores da liberdade”. Aglomeram em verde e amarelo mas ofendem e passam a mão em pretos, pardos e índios. Pedem morte para todos os supostos “bandidos”, mas confraternizam e até homenageiam a outra banda da “bandidagem”. Mandam o povo para as ruas e templos, explorando suas necessidades, sem dar-lhe as mínimas condições e as vacinas necessárias. Nos costumes, pregam um ultraconservadorismo quando sequer cumprem o dever em casa. Têm mil bocas para orar, mas nenhuma mão para ajudar.

Dizem que Luís XIV, aquele que disse “o Estado sou eu”, proibiu a representação da primeira versão do “Tartuffe”. Molière escreveu ao Rei e obteve o “placet” (a aprovação régia) para a sua obra. Mas o que faria hoje um grande dramaturgo em relação àquele que afirma “eu sou a Constituição”? Um Molière ou mesmo um Paulo Gustavo (1978-2021), que perdemos em meio a essa pandemia e a essa impostura genocida. Talvez simplesmente lhe dedicasse a peça.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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