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Uma medida provisória questionável

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O VETO PRESIDENCIAL

Com o veto o Presidente da República nega a aquiescência à formação da lei, por entendê-la inconstitucional ou por contrária ao interesse público.

Aliás, desde 1891 (Constituição Federal, artigo 37, § 1§), restringem-se os casos de veto: a) a inconstitucionalidade do projeto; b) a ofensa aos interesses nacionais.

Ensinou Paulino Ignácio Jacques (Curso de Direito Constitucional, 9ª edição, pág. 263) que é uma instituição própria do governo presidencial, que se desenvolveu e se aperfeiçoou nos Estados Unidos. Afasta-se o veto do modelo antigo romano, exercido pelos tribunos plebei, e com o qual invalidaram o senatus consultus.

Trata-se de poder e direito porque o seu exercício depende da vontade do Presidente da República, que é manifestada de acordo com a Constituição.

Historicamente, ainda ensinou Paulino Jacques (obra citada, pág. 264) foram conhecidos três espécies de veto: o absoluto, o suspensivo e o restitutório. O absoluto, vigente ao tempo do tribunato romano, consistia na oposição irrevogável dos tribunos aos decretos do Senado; o segundo, o suspensivo, foi fruto do constitucionalismo anglo-americano (1689 – 1776), suspendia a vigência da lei até nova deliberação; o restitutório, que foi inaugurado na República de Weimar, submetia ao povo, em plebiscito a solução da controvérsia.

Em Portugal, o veto de inconstitucionalidade pode ser superado por expurgação ou confirmação por maioria qualificada (artigo 279, º 2º).

No Brasil, o veto pode ser suprimido pelo Legislativo, por maioria absoluta de cada uma das Casas reunidas em sessão conjunta, no prazo de trinta dias, contados de seu recebimento pelo Presidente do Senado (artigo 66, § 4º). É caso de veto relativo e não de veto absoluto, como já observara Celso Ribeiro Bastos (Curso de direito constitucional, 11ª edição, pág. 314).

II – ADI 7232

O que dizer quando o Poder Executivo, ao desconhecer a derrubada do veto, criar nova norma jurídica em detrimento daquela decisão do Poder Legislativo?

Por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) referendou a liminar concedida pela ministra Cármen Lúcia para suspender os efeitos da Medida Provisória (MP) 1.135/2022, que alterou leis que davam apoio financeiro ao setor cultural e de eventos. A decisão se deu, na sessão virtual extraordinária realizada, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7232, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade.

A fim de ajudar o setor cultural em razão da pandemia da covid-19, o Congresso Nacional editou a Lei 14.148/2021 (que criou o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos), a Lei Aldir Blanc 2 (Lei 14.399/2022) e a Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar 195/2022). As normas foram vetadas pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, e, após a derrubada dos vetos pelo Congresso, ele editou a MP.

Em seu voto pela manutenção da cautelar, a ministra Cármen Lúcia reiterou que a medida provisória esvaziou a eficácia das normas aprovadas pelo Legislativo.

A relatora observou ainda que a MP não atendeu aos requisitos de urgência e de relevância do tema. Segundo ela, as leis foram resultado de um longo processo legislativo, conduzido por quase um ano.

Outro ponto assinalado foi o desvio de finalidade na edição da MP. “O que se tem é um quadro no qual o presidente da República não aceita o vetor constitucional nem a atuação do Poder Legislativo e busca impor a sua escolha contra o que foi ditado pelo Parlamento, que é, no sistema jurídico vigente, quem dá a última palavra em processo legislativo”, afirmou.

Ao deferir a liminar, a ministra considerou que a medida provisória esvaziou a eficácia das normas aprovadas pelo Legislativo.

Ficam assim suspensos os efeitos da medida provisória em sua integralidade, desde o início da sua vigência, mas ela continuará a tramitar como projeto de lei no Congresso Nacional, nos termos do artigo 62 da Constituição Federal. Ficam, assim, restauradas as leis anteriores.

Deve o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes, no caso da perda de vigência da MP.

A teor do parágrafo 11 do artigo 62 da Constituição, não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.

III – NÃO TEM O PODER EXECUTIVO SUPERPODER PARA SUSPENDER DECISÃO DO CONGRESSO QUE DERRUBOU SEU VETO

Já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF), em mais de uma ocasião ( ADI n.º 2.010; ADI n.º 7.232), que a “medida provisória não é desvio para se contornar a competência do Congresso Nacional”, sendo “inconstitucional a utilização deste instrumento excepcional para sobrepor-se a atuação presidencial à vontade legítima das Casas Legislativas”.

Quando o Congresso promulga a lei e o Executivo edita MP para desfazer o trabalho congressual, tem-se uma anomalia no sistema.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2010 – 2 – Distrito Federal (Medida Cautelar) deixou destacado:

“PRINCÍPIOS DA IRRETIBIBILIDADE DOS PROJETOS REJEITADOS NA MESMA SESSÃO LEGISLATIVA ( CF, ART. 67)– MEDIDA PROVISÓRIA REJEITADA PELO CONGRESSO NACIONAL – POSSIBILIDADE DE APRESENTAÇÃO DE PROJETO DE LEI, PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA , NO INÍCIO DO ANO SEGUINTE EM QUE SE DEU A REJEIÇÃO PARLAMENTAR DA MEDIDA PROVISÓRIA”.

De toda sorte, não cabe ao Presidente da República ter uma espécie de superpoder para rever, quando bem entender, decisões tomadas por amplíssima maioria no Congresso Nacional, sobretudo quando por meio do exercício de derrubada de veto.

Em suas razões de voto, no julgamento daquela Ação Direta de Inconstitucionalidade aqui reportada, disse a ministra Cármen Lùcia: “O advento de medida provisória, alterando o que fora aprovado, vetado e superado pela promulgação da lei pelo Congresso Nacional impõe quatro níveis de questionamento sobre a validade jurídica do ato normativo: a) o primeiro, sobre a obediência aos requisitos de relevância e urgência para a expedição da medida; b) o segundo, a natureza provisória da medida (que, no caso, impõe a postergação do que fora determinado em lei); c) o terceiro, sobre a legitimidade constitucional de burla ao devido processo legislativo pela superação do que fora ultrapassado ao veto oposto. Deu-se novo tratamento do tema em via extraordinária, o que configura desvio de finalidade do exercício da competência conferida constitucionalmente ao Presidente da República; d) o quarto, se seria possível, constitucionalmente, alterar-se matéria cuidada em lei complementar (a Lei Complementar n. 195/2022), cujo processo legislativo é específico, com exigência de quórum qualificado, por medida provisória.”

Explicou o Ministro Celso de Mello que, “a possibilidade de controle jurisdicional, mesmo sendo excepcional, apoia-se na necessidade de impedir que o Presidente da República, ao editar medidas provisórias, incida em excesso de poder ou em situação de manifesto abuso institucional, pois o sistema de limitação de poderes não permite que práticas governamentais abusivas venham a prevalecer sobre os postulados constitucionais que informam a concepção democrática de Poder e de Estado, especialmente naquelas hipótese em que se registrar o exercício anômalo e arbitrário das funções estatais” ( ADI 2.213-MC, Relator Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 23.4.2004).

IV – O CASO DE MP QUE TRATA DE DESONERAÇÕES TRIBUTÁRIAS

Veja-se o caso da edição de medida provisória em flagrante oposição a derrubada de veto presidencial no caso das desonerações tributárias.

O governo editou uma medida provisória ( MP 1202/2023) que muda as regras da desoneração da folha de pagamento, promulgada, no dia 28.12.23, pelo Congresso Nacional, após a derrubada do veto do presidente Lula. O texto prevê alterações já a partir de abril: alíquota menor apenas para um salário mínimo por trabalhador e redução gradual de benefícios, como informou o portal da Rádio Senado.

O que se tem, assim, é quadro no qual o Presidente da República não aceita o vetor constitucional, nem a atuação do Poder Legislativo e busca impor a sua escolha contra o que ditado pelo Parlamento, que é, no sistema jurídico vigente, quem dá a última palavra em processo legislativo. E adota essa postura normativa pela edição da medida provisória expedida, assim, em desvio de finalidade que contamina aquele documento, maculando-o por inconstitucionalidade, como afirmado pelo autor da presente ação, como disse a ministra Cármen Lúcia em oportunidade anterior.

Caso seja exercida aquela competência para burlar a necessidade urgente sobre questão relevante pela edição de medida provisória, por exemplo, para sobrepor a decisão executiva ao que decidido e legislado pelas Casas Congressuais, está a se incorrer em inconstitucionalidade, por se desviar da finalidade a que se destina aquela atribuição.

Inexistem assim os pressupostos específicos para a edição da medida provisória: sua relevância e o perigo de demora (urgência).

O art. 62 da Constituição da República prevê: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.”

Relevância é requisito que se remete ao fundamento que há de ser, motivadamente, havido como detendo realçada importância para o exercício extraordinário da competência executiva e que precisa ser objetivamente demonstrada para legitimar a prática. A relevância mencionada constitucionalmente refere-se ao interesse público qualificado, para além do ordinário, não sendo atendida essa condição aquela previsível e de trivial atendimento pelo desempenho legislativo normal, regular, atendido pelo regular trâmite que conduz à produção das leis. Para Clermerson Merlin Clève, “a relevância não é apenas um pressuposto relacionado com a matéria a ser veiculada na medida provisória, pois deve lastrear, igualmente, a situação ensejadora do provimento… a relevância demandante de sua adoção não comporta satisfação de interesses outros que não os da sociedade… a relevância autorizadora da deflagração da competência normativa do Presidente da República não se confunde com a ordinária, desafiadora do processo legislativo comum. Trata-se, antes, de relevância extraordinária, excepcional, especialmente qualificada, contaminada pela contingência, acidentabilidade, imprevisibilidade.” (CLÈVE, Clemerson Merlin. Medidas provisórias. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 69), como lembrou a ministra Cármen Lùcia, naquela decisão reportada.

A relevância constitucional autorizadora da medida provisória relaciona-se ao interesse público extraordinariamente realçado pela sua gravidade, pelo atendimento a ser assegurado em molde a não poder aguardar a tramitação regular de um projeto de lei, tendo repercussão de tal vulto que impõe entrega pronta e eficaz da norma para cumprir a exigência pública. 26. Urgência conjuga-se com o tempo, que impõe a edição da medida por não se dispor de dilação suficiente para a tramitação ordinária de projeto de lei.

Tenha-se em conta que a medida provisória não revoga lei anterior, mas apenas suspende seus efeitos no ordenamento jurídico, em face do seu caráter transitório e precário.

Lembre-se, na lição de Paulino Jacques (Curso de introdução à ciência do direito, 2ª edição, pág. 107) que “a lei posterior revoga a anterior em três casos: a) quando expressamente o declare; b) quando, seja com ela incompatível; c) quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. “

Todavia, quando a lei posterior (lei nova) estabelece disposições gerais ou especiais ao lado das já existentes, sem que haja incompatibilidade entre elas, não revoga, nem modifica a lei anterior (lei velha).

Como ainda ensinou Paulino Jacques (obra citada, pág. 108),”demais a lei revogada não se restaura quando a lei revogada perde a vigência. Como ainda nota Oscar Tenório, “o advento de uma lei resulta, às vezes, na morte de outra. Esta não ressuscita, mesmo quando a lei que a eliminou do mundo jurídico, também se extinguiu. Somente por disposição expressa do legislador, a lei morta ressuscita, volta a ocupar lugar no sistema jurídico do país”(in Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, Editor Borsói, Rio, 1955, 2ª edição, pág. 92, nº 140). Essa lei que ressuscita a lei morta, ou sem metáfora, que restaura expressamente a lei revogada, se denomina “lei repristinatória”, que restabelece o passado.”

Sendo assim, diante do fato aqui trazido à colação, tem-se que faltam àquela MP 1202/2023 os requisitos próprios para a sua edição.

Dir-se-ia que o caminho, pois, seria a sustação dos efeitos da medida com sua devolução pelo Poder Legislativo ao Poder Executivo, para que este ofereça um projeto de lei, que, a seu tempo, deveria ser examinado pelo Congresso Nacional para aprovação ou não.

Saliente-se, entretanto, que a medida de desoneração da folha tem aspectos negativos no direito financeiro.

V – A DESONERAÇÃO DA FOLHA FERE A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL

Observe-se o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal:

Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: (Vide Medida Provisória nº 2.159, de 2001) (Vide Lei nº 10.276, de 2001) (Vide ADI 6357)

I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

…..

Essa Lei de desoneração da folha fere o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Os efeitos das perdas de receita (chamadas de renúncias fiscais, no jargão) não estão contemplados nas projeções e nas metas fiscais para 2024, tampouco a nova lei trouxe medidas para neutralizar o custo contratado.

Felipe Salto (O cheque sem fundo do Congresso, in Estadão, 18.1.24) trouxe sobre a matéria importantes conclusões do ponto de vista fiscal:

“A desoneração da folha é uma medida sem efeito sobre o emprego, a renda e o crescimento econômico. Mesmo assim, o Congresso decidiu rejeitar o veto presidencial e impor ao País um custo de cerca de R$ 20 bilhões. Pior, não mostrou como a conta seria paga, em desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal.

A Lei Orçamentária Anual não previa recursos para essas duas finalidades – a prorrogação da desoneração da folha para 17 setores de atividade econômica e a redução da alíquota de contribuição previdenciária para um conjunto de municípios (aqueles que utilizam o regime geral da Previdência para seus servidores). O Congresso, depois de garfar R$ 53 bilhões em emendas, no processo orçamentário, deu ao governo mais esse presente de grego.”

E concluiu:

“A desoneração da folha é uma medida sem efeito sobre emprego, renda e crescimento. Mesmo assim, o Congresso decidiu impor ao País um custo de R$ 20 bi.”

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Zenaide classifica como vitória nova lei do BPC

Zenaide Maia esteve na linha de frente para derrubar veto (Jefferson Rudy/Agência Senado)

A senadora Zenaide Maia (Pros-RN) comemorou a publicação, nesta terça-feira (24/03), da Lei 13.981/2020, que amplia o acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e pessoas com deficiência que não têm condições de sustento. A nova lei aumenta de 1/4 de salário mínimo (R$ 261,25) para metade do mínimo (R$ 522,50), a renda familiar mensal per capita considerada para a concessão do benefício a pessoas com deficiência e idosos carentes. “É uma vitória porque mais famílias poderão receber o BPC, no valor de um salário, uma ajuda muito importante, ainda mais nesses tempos de pandemia, de crise social e econômica”, disse Zenaide.

Zenaide Maia foi uma das parlamentares que articulou, na sessão do Congresso Nacional do último dia 11/03, a votação que acabou por derrubar o veto dado pelo presidente, Jair Bolsonaro, ao projeto de ampliação do BPC (PL 55/1996). O ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda tentou, sem sucesso, barrar a transformação do projeto em lei, ao recorrer da decisão do Congresso junto ao Tribunal de Contas da União, mas o plenário do TCU confirmou a validade da decisão do Congresso.

Sobre o BPC

O Benefício de Prestação Continuada é o único benefício da Assistência Social garantido pela Constituição Federal de 1988. A Constituição mandou que uma lei regulamentasse esse direito, o que foi feito em 1993, com a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas, que é a Lei 8742/93). O BPC substituiu a Renda Mínima Vitalícia (RMV), que havia sido instituída pela Lei 6.179/1974.

O que o Congresso aprovou e agora é lei, foi a ampliação da renda para acesso ao benefício, proposta no PLS 55, apresentado em 1996 pelo então senador Cassildo Maldaner (SC). Em 1997, esse projeto havia sido aprovado pelo Senado, mas ficou parado na Câmara dos Deputados até 2018, quando os deputados aprovaram um texto novo, chamado de “substitutivo”, o SCD 6/2018.