A graça presidencial não é remédio rescisório: um caso concreto

Bolsonaro e Daniel Silveira estão em conflito com o STF (Foto: reprodução)

Por Rogério Tadeu Romano

Está sendo por demais debatida nos meios jurídicos a graça, indulto individual, concedido pelo presidente da República a um deputado federal.

A graça é instituto próprio da execução penal e se caracteriza por ser uma forma de extinção de punibilidade.

Como disse Hélio Tornagh(Curso de Processo Penal, 1980, volume II, pág. 445) “ a graça se recomenda por ato de heroísmo, por serviço de alto valor, pela necessidade de amparar a família do condenado, por alguma razão de Estado e por inúmeros outros motivos de grande valor social”.

Fala-se então em condenado, apenado, o que leva em conta que a decisão condenatória tenha trânsito em julgado, pelo menos, para a acusação.

Sem a existência de uma pena, em processo penal, transitada em julgado não se pode falar em graça, perdão individual, que se distancia do indulto coletivo.

Como disse o ministro Moraes em despacho proferido no âmbito da AP 1.044: “A análise da possibilidade ou não de extinção de punibilidade pela concessão de indulto individual, antes da publicação do necessário Acórdão condenatório, ou mesmo, antes do trânsito em julgado é necessária, pois, em que pese a doutrina ser amplamente majoritária quanto ao cabimento da graça e do indulto somente após o trânsito em julgado da sentença condenatória (DAMÁSIO DE JESUS. Código Penal anotado, 23 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, fls. 406-408; CEZAR ROBERTO BITENCOURT. Tratado de Direito Penal : Parte Geral. 16 ed. Fls. 804/805; EUGENIO RAÚL ZAFFARONI e JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro [livro eletrônico] : Parte Geral/4. ed. –São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020; RENÉ ARIEL DOTTI. Curso de direito penal [livro eletrônico]:parte. Geral/2. ed. colaboração de Alexandre Knopfholz e Gustavo Britta Scandelari. — São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018; CRISTIANO RODRIGUES. Manual de Direito Penal.Indaiatuba/SP. Editora Foco. 2019, fl. 414; NORBERTO AVENA. Execução Penal – 5. ed., rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método. 2018, fls. 451-452; LUIZ REGIS PRADO. Curso de direito penal brasileiro, volume 1 [livro eletrônico] / 6. ed. – São Paulo:Mastersaf, 2018.e Execução Penal [livro eletrônico] – 2. Ed. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2017; RODRIGO DUQUE ESTRADA ROIG. Execução penal [livro eletrônico] : teoria crítica — 2. ed. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2022), há decisões do próprio SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL entendendo possível a concessão de indulto, desde que, após a publicação da sentença condenatória, haja somente recurso da defesa pendente, tendo ocorrido trânsito em julgado para a acusação, como bem destacado pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE:

“A apelação exclusivamente da defesa – e de nossa jurisprudência constante – não impede o indulto, nem é prejudicada pela concessão deste (v.g. RHC 50.871, 6.4.73, Bilac, RTJ 56/68; RE 87.819, 5.5.78, Moreira, RTJ 88/1038; HC 71.691, 9.8.94, Pertence, RTJ 156/152; HC 74.038, 3.9.96; Moreira, DJ 29.11.96); sendo “admissível, em tese, a aplicação do decreto de indulto coletivo, quando a condenação – embora pendente de recursos de defesa – , já não pode ser exasperada, à falta de recurso de acusação” ( HC 71.691-1/RJ, 1ª TURMA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, 9.08.94).”

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 2.795, o ministro Maurício Corrêa, em voto acolhido pelos seus pares, conceituou o indulto como “instrumento de política criminal colocado à disposição do Estado para a reinserção e ressocialização dos condenados que a ele façam jus, segundo a conveniência e oportunidade das autoridades competentes”.

O indulto, como perdão da pena, existe nos países civilizados, como, entre outros, Alemanha, França, Estados Unidos, Argentina, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Holanda, França, Portugal, Suécia e a Suíça.

Não servirá para ser um meio rescindendo, desconstitutivo, de decisões judiciais.

Como bem acentuou o ministro Carlos Mário Velloso, em artigo para o Estadão, em 24 de abril do corrente ano:

“No caso, o presidente da República tem competência para conceder indulto e comutar penas. Nessa atividade, entretanto, não pode desviar-se da lei, porque não vale a vontade do governante, vale a vontade da lei. Acresce que, sem a existência de uma pena legalmente fixada (a decisão pende de recursos), estaria perdoando uma pena inexistente, formalmente. E vai além, desviando-se da finalidade do ato, pratica abuso de poder, dado que o decreto presidencial constitui, simplesmente, tentativa – ao arrepio da cláusula pétrea da separação dos Poderes – de anular a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Ora, o que a Constituição outorgou ao presidente da República foi competência para conceder indulto. E o indulto nada mais é do que o perdão da pena formalmente imposta. É perdão que se concede para a realização de uma finalidade de interesse público, jamais para confrontar o Judiciário, jamais para corrigir a justiça ou injustiça da decisão judicial.”

Somente o Judiciário pode sustar ou desconstituir suas próprias decisões.

A graça, como indulto individual, não é forma de correção de decisões do Judiciário.

Para o caso, debruço-me com relação a chamada “correção” de decisões judiciais pelo que acabou sendo pelo Poder Executivo, nas mãos de um ditador.

Isso ocorreu sob a Constituição de 1937, que criou a possibilidade de se suspender mediante ato legislativo, decisão judicial que declarasse inconstitucionalidade de ato normativo. Isso deveria ocorrer através de uma resolução do Parlamento, aprovada por uma maioria qualificada de 2/3 dos votos (artigo 96).

Segundo Francisco Luiz da Silva (Diretrizes constitucionais do novo Estado Brasileiro, RF v. 72, n. 415/417, pág. 229, janeiro/março de 1938), tal necessidade se justificava com o caráter pretensamente antidemocrático da jurisdição, o que acabava por permitir a utilização do controle das normas como instrumento aristocrático de preservação do poder ou como expressão de um Poder Moderador.

Ora, como é sabido, a chamada faculdade confiada pela Constituição ditatorial de 1937, ao Parlamento, acabou sendo dada ao “ditador”, mediante a edição de decretos-leis (Constituição de 1937, artigo 180). Confirmada a sua inconstitucionalidade passaria o Supremo Tribunal Federal a reconhecer ipso iure a sua validade.

Isso estava previsto na chamada Constituição da Polônia, de 23 de abril de 1935.

Sobre isso, ensinou Karl Loewenstein sobre o direito americano (Verfassungsrecht und Verfassungspraxis der Vereinigten Staten, 1959, pág. 429), quando disse:

“Um outro mecanismo de limitação do poder da Corte Suprema assenta-se na possibilidade de nulificação dos efeitos da decisão mediante lei de alcance corretivo. Trata-se apenas de casos em que o Congresso manifesta divergência com interpretação conferida à norma pela Corte Suprema. Esse mecanismo não se aplica às hipóteses de declaração de inconstitucionalidade de índole formal ou material. Nesses casos, apenas uma reforma constitucional mostra-se apta a solver o conflito…”

Contudo, como disse Karl Loewenstein, não se cuidou propriamente de “rejeição” da decisão da Corte Suprema(o que representaria a supressão da independência do Poder Judiciário), mas de posterior reforma constitucional resguardando-se íntegra a decisão da Corte Suprema.

Aliás, tem-se como exemplo que, em 1989, relativamente ao caso Texas vs. Jonhson, onde se apreciava o episódio de queima da bandeira nacional, deu-se a tentativa de nulificação da decisão da Corte Suprema pela edição de lei pelo Congresso. Posteriormente, como nos disse o ministro Gilmar Mendes, o próprio diploma congressual veio a ser impugnado pela Suprema Corte.

O presidente da República pode vetar projetos de lei, apresentar ao STF ações constitucionais para declarar normas inconstitucionais. Não pode é, por sua vontade, sustar uma decisão judicial.

No Brasil, como se observou, isso só se viu na concretude de uma Constituição antidemocrática.

Não se pode conceber um presidente da República querer anular, desconstituir, decisão judicial emanada da própria corte, sem que seja por via de habeas corpus ou recurso, por via própria, mas por uma ação de controle abstrato da inconstitucionalidade. Não se concebe um presidente da República, sob a Constituição de 1988, mediante ato de controle corretivo, anular decisão judicial.

Ensinou-nos o ministro Gilmar Mendes(Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, 2ª edição, pág. 321) que “embora a doutrina não tenha logrado explicitar a origem ou a fonte de inspiração imediata desse instituto, é certo que ele não estava previsto, nem implicitamente, na Constituição polonesa de 23-04-1935, uma vez que este texto sequer previa o controle de constitucionalidade. Parece mais correto que esse instituto possui referência na própria experiência constitucional norte-americana.”

Na verdade, a cassação da decisão judicial com eficácia retroativa outorga ao modelo de 1937 uma configuração realmente peculiar.

Disse então o ministro Gilmar Mendes, naquela obra, pág. 325:

“Parece que, diante de um modelo constitucional que consagra as chamadas “garantias de eternidade”, tal fórmula não poderia jamais ser estabelecida”.

Isso parece um absurdo.

Em sendo assim o decreto de graça presidencial, como ato administrativo, é suscetível de exame pelo Poder Judiciário, no intuito de verificar se houve desvio de finalidade, uma vez que o mérito(conveniência e oportunidade) pode ser avaliado, no sentido de saber se os motivos e o objeto do ato estão dentro da devida compatibilidade, proporcionalidade, moderação.

Em linhas gerais, o decreto de graça não susta os efeitos da decisão do Judiciário, pois não é uma “rescisória às avessas”, cujo objetivo seria desconstruir decisão judicial, algo que somente o Judiciário pode fazê-lo. É providência que visa a extinguir a punibilidade sem vinculação com os efeitos secundários da decisão, como a inelegibilidade.

Segundo o ministro Moraes, a jurisprudência do STF é no sentido de que o indulto e a graça ‘não apagam o ilícito nem suprimem as consequências de ordem penal, inclusive os efeitos penais secundários da sentença condenatória’.

“Ressalte-se, ainda, que, dentre os efeitos não alcançados por qualquer decreto de indulto está a inelegibilidade decorrente de condenação criminal em decisão proferida por órgão judicial colegiado, prevista no artigo 1º, inciso I, e da LC 64/90, com a redação dada pela Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010), desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, uma vez que, conforme pacificado pelo Tribunal Superior Eleitoral, ‘o indulto presidencial não equivale à reabilitação para afastar a inelegibilidade decorrente de condenação criminal, o qual atinge apenas os efeitos primários da condenação – a pena, sendo mantidos os efeitos secundários’”, registra trecho do despacho do ministro Alexandre de Moraes.

*É procurador da República aposentado com atuação no RN.

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