A queda de outro ex-presidente do Brasil, a nova fatura da Lava Jato à velha política brasileira

Lula e Temer estão presos (Foto: UESLEI MARCELINO -REUTERS)

Por Naiara Galarraga Gortázar

El País

Dois dos sete presidentes que o Brasil teve desde o fim da ditadura dormem atrás das grades, derrotados pelas suspeitas de corrupção. Michel Temer, 78 anos, está há duas noites em uma sala de 20 metros quadrados sem janelas, mas com vaso sanitário, chuveiro e ar condicionado, em uma sede da Polícia Federal no Rio de Janeiro. Luiz Inácio Lula da Silva, 73 anos, cumpre quase um ano de reclusão em uma cela preparada especialmente para abrigá-lo em instalações da PF em Curitiba (Paraná), epicentro da investigação da Operação Lava Jato. Nessa novela de centenas de capítulos com heróis, vilões, tramas e subtramas na qual o caso se transformou, a prisão de Temer na última quinta-feira representa uma guinada no roteiro que causou impacto, apesar de ser uma possibilidade há vários capítulos. Mais precisamente desde 1 de janeiro, quando o veterano político perdeu a imunidade ao entregar a faixa presidencial a Jair Bolsonaro.

O juiz Marcelo Bretas afirma que Temer era “o líder de uma organização criminosa” que durante 40 anos cobrou propinas em troca de contratos públicos, inflou orçamentos de obras, lavou dinheiro e até mantinha um departamento de contrainteligência para prejudicar as investigações.

Esta trama que ganhou fama em torno da Petrobras e da construtora Odebrecht foi crescendo e cobrou uma fatura alta à velha política brasileira. Outros três governantes foram investigados em casos derivados da Lava Jato, incluídos os que foram destituídos por impeachment, Dilma Rousseff, a quem Temer sucedeu em 2016, e Fernando Collor de Mello. Outro é José Sarney, denunciado por suspeitas de envolvimento com desvios da Transpetro. O único ex-presidente vivo a salvo é Fernando Henrique Cardoso, que foi mencionado na investigação, mas por fatos considerados prescritos. Em cinco anos outros 150 poderosos políticos e empresários entraram na prisão, enquanto o descontentamento da população com a classe política aumentava.

Como pano de fundo da prisão, um novo capítulo na batalha entre juízes e promotores da Lava Jato e a classe política tradicional. Um episódio no qual se destacam o juiz que prendeu Lula e agora é ministro da Justiça, Sergio Moro, e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, cujo sogro é Moreira Franco, ex-ministro preso no mesmo dia que Temer. Como nas novelas, às vezes é difícil acompanhar a trama e as relações cruzadas do elenco. Enquanto isso, impera o temor de que a prisão do ex-presidente, que ainda tem aliados no Congresso, complique a aprovação de projetos impopulares como a reforma da Previdência, vista como crucial para reativar a economia.

Um dos motivos do sucesso eleitoral de Bolsonaro é que o tsunami da Lava Jato não passa perto dele. Apesar de um de seus filhos, Flávio, senador, ser investigado por lavagem de dinheiro à margem da trama. O presidente atribuiu a prisão aos “acordos políticos (de Temer) para garantir a governabilidade”, mas um dos dirigentes de seu partido, Major Olímpio, empregou o tom que tanto agrada os bolsonaristas: “Prisão para todos que dilapidaram o patrimônio do povo brasileiro e envergonharam a política. Precisam pagar, sim, perante a Justiça”.

Temer é o último político envolvido (até agora) nessa enorme teia. A edição do EL PAÍS no Brasil publicou em primeira mão a partir de 2017 alguns dos documentos que supostamente comprovam a cobrança de subornos e que os promotores citam em seu pedido de prisão de Temer. Ninguém podia imaginar em 17 de março de 2014 que o que nascia como uma investigação sobre uma suposta lavagem de dinheiro em um lava jato pudesse se tornar o maior escândalo de corrupção da história do Brasil e estendesse suas ramificações por toda a América Latina.

Mas esse mega escândalo que pôs à luz uma corrupção sistêmica da qual se beneficiavam empresas e políticos de todos os partidos foi o estopim de mudanças profundas que no Brasil se materializaram em um presidente de ultradireita e uma oposição irrelevante. O abalo também é forte no Peru, com a líder de oposição, Keiko Fujimori, na prisão, e vários ex-presidentes envolvidos: Alejandro Toledo, fugido para os Estados Unidos, Ollanta Humala, que passou pela prisão, e outros dois cuja saída do país está proibida. A trama salpicou por meio de campanhas eleitorais os colombianos Juan Manuel Santos e Álvaro Uribe. No México, não se abriu uma só investigação apesar das acusações contra um ministro de Enrique Peña Nieto, nem na chavista Venezuela.

Ao menos quatro outras noites sob custódia é o que aguarda Michel Temer, porque seu pedido de habeas corpus só será analisado na quarta-feira. Em seu primeiro interrogatório manteve silêncio depois de ter afirmado que, diante de seus conhecimentos de advogado constitucionalista, a prisão preventiva era “absolutamente improcedente”.

Na mesma operação foram detidos sete supostos cúmplices do ex-presidente do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), um partido fisiológico, sem ideologia e especializado em dar a maioria aos partidos governantes em troca de postos-chave com acesso a contratos públicos.

Com a chegada de 2019, Temer passou a ser um cidadão como outro qualquer. Seus casos voltaram para a Justiça comum e a investigação prosseguiu. Nunca foi querido. Chegou ao topo depois do impeachment de Rousseff, do Partido dos Trabalhadores de Lula, e saiu do Palácio do Planalto com uma popularidade de 7% depois de presenciar como o deputado veterano com uma carreira política irrelevante conseguia capitalizar a ira dos brasileiros contra a corrupção. O capitão do Exército Bolsonaro soube catalisar como ninguém o profundo fastio de seus compatriotas com a velha classe política —a qual ele, no entanto, pertence há três décadas—, sua ânsia de derrotar o sistema e de apostar em uma novidade extremista como ele.

Temer também teve de passar pela humilhação de que o país inteiro visse na televisão cada minuto de sua queda graças à descomunal cobertura da imprensa inclusive com câmeras em helicópteros. O público viu seu primeiro olhar de surpresa e desgosto, os dois policiais armados com fuzis automáticos, seu transporte ao aeroporto para voar até o Rio de Janeiro e sua entrada na sede policial que se converteu em seu novo dormitório, por enquanto.

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto