O RN navega perdido e a deriva no mar da COVID-19

 

Por José Dias do Nascimento*

 

Na briga do mar com as pedras, quem morre são os aratus

Não existe nenhuma novidade ou dúvida que a forma mais comum de contrair o vírus corona é através das reuniões sociais, — a infecção acontece por gotículas e o contato físico. A infecção por gotículas pode se espalhar de uma pessoa infectada para uma pessoa saudável, pela inalação de microgotas contendo vírus, liberadas pelos infectados por meio de tosse e espirro. A infecção por gotículas pode ocorrer até uma distância de 1–1,5 metros em média. Seus sintomas, (tosse, falta de ar ou dificuldade em respirar, febre ou calafrios) entre 1 — 11 dias de infecção (5–6 em média).

Portanto, sem vacina e com diversas cepas, e em situação de calamidade, o bloqueio (ou lockdown ) é muito eficaz em termos de assegurar o distanciamento social e colocar uma barreira entre o vírus e os indivíduos saudáveis, evitando assim a primeira etapa do ciclo, ou seja, a infecção direta.

Pois bem, em 5 de março de 2021 o Rio Grande recebe cedo a notícia aguardada sobre o novo decreto da Governadora sobre as novas medidas de isolamento social. Estas deveriam ser mais restritivas, à principio. No entanto, antes da coletiva a imprensa já circulava por interlocutores (autorizados?) a notícia de quais medidas seriam adotadas. Claramente o veiculo apresentava que o comitê científico da SESAP-RN descartava o lockdown no Rio Grande do Norte e modificada somente os horários do toque de recolher (abaixo).

Figura 1 — Trecho da Reportagem da Tribuna do Norte http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/comita-descarta-lockdown-no-rio-grande-do-norte/504344

utilização desonesta do termo “comitê científico” fere à ciência, ainda mais sabendo que falas por lá, nestes comitês nem sempre são consensuais, e quando expostas assim na mídia, têm um efeito de pressão, o que pareceu oportunista. Nesta fala acima, não é dito nada sobre quais parâmetros científicos esta decisão foi tomada. Nada sobre quais os indicadores que apontaram para isto. É rude, grosseiro e desonesto camuflar este ponto e se esconder em falas personalíssimas e falácias não científicas. Não cabe a um comitê científico autorizar ou não um Lockdown baseado nas questões financeiras, fiscais de uma população e seu auxílio emergencial, mas na análise das questões epidemiológicas, técnicas e dinâmicas do espalhamento da doença. O Gestor político pode até não aceitar e seguir uma decisão política CONSIDERANDO OUTRO mérito, mas é inaceitável colocar a responsabilidade, desta forma, na bagagem de um comitê científico que não usa sequer um modelo de dinâmica de população para as projeções no estado do Rio Grande do Norte. Além do mais, este posicionamento vai de encontro frontal ao que preconiza, por exemplo, o Subcomitê 9 do C4NE (Cientistas do Nordeste) de especialistas, no qual o parecer sobre a situação atual e projeções numéricas para o Rio Grande do Norte, avaliadas em 6/03/2021 é pelo lockdown urgente. Segue logo abaixo.

Figura 2— Subcomitê 9 do C4NE (Cientistas do Nordeste) — Grupo de Modelos Matemáticos. Parecer sobre a situação atual e projeções numéricas para o Rio Grande do Norte avaliadas em 6/03/2021

A pergunta que fica é: QUEM SE RESPONSABILIZARÁ PELAS MORTES QUE CONTABILIZAREMOS NO PÓS 05.03.21 SEM LOCKDOWN? Devem ser creditadas ao comitê científico? A seu interlocutor? Ao secretario? ou a Governadora? O fato de não ter recursos assistenciais não pode sustentar uma posição técnica de não-Lockdown. Isto é uma Falácia da Dispersão Falsa Dicotomia, e ocorre sempre que alguém apresenta uma situação com apenas duas alternativas, quando de fato outras existem, existiram e podem existir.

Figura 3 — Dados da regulação de Leitos em 7 de março de 2021

Percebe-se que um sistema com uma fila de mais de 80 — 90 pacientes na espera por UTI’s e com requisições em 100% não tem sustentação científica nenhuma que desvie do mérito da solução “Lockdown imediato”. No dia 7 de março temos quase uma centena de pacientes esperando UTI’s. Mais de 15 óbitos/dia e uma situação caótica com baixíssimo nível de isolamento social (Figura 4, abaixo)

Figura 4— Modelos MOSAIC-UFRN e a projeção de hospitalização. A linha verde claro é para leitos clínicos e a curva verde escuro para leitos de UTI. No momento em que se ultrapassa a linha pontilhada horizontal (limite da quantidade de leitos no estado), acontece a saturação do sistema hospitalar. Abaixo a regulação de leitos com 100% de ocupação em praticamente todos os hospitais.

Ou seja, qualquer comitê minimante científico não descartaria o lockdown numa situação assim. A Figura 4, mostra nossos modelos que já apontavam para uma saturação dos leitos clínicos (curva verde claro) e leitos de UTI (curva verde escuro) mais tarde no início de março de 2021. Na figura 4b a comprovação observacional mostrando 100% em praticamente todos os hospitais. A leitura desta situação é clara. Se o gestor não escutar, por opção, que a conta não seja colocada no saco da ciência.

o Lockdown num “país” chamado CEARÁ?

Figura 5 — Trecho da Reportagem da Tribuna do Norte http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/comita-descarta-lockdown-no-rio-grande-do-norte/504344

No trecho acima, tenta-as novamente inserir um discurso nonsense e não científico sobre definições e epistemologia do termo. Que na verdade é o que menos interessa aqui. Como chamar um isolamento restrito? Seja como for chamado, ele é possível sim e foi feito no Ceará, nosso estado vizinho. Me parece ai na reportagem, no trecho acima, que temos mais uma vez uma tentativa de impor um posicionamento baseado em uma falácia. Desta vez do tipo Reductio ad absurdum (redução ao absurdo) onde se tenta averiguar uma hipótese, chegando a um resultado absurdo, para depois tentar invalidar essa hipótese.

Figura 6— Rank do índice de isolamento médio da InLoco

OCE, com índice de isolamento médio de 40% (no RN 35.5% em média) baseado em dados da Inloco na data de 5 de março de 2021, é o maior índice de isolamento do Brasil no dia de hoje, como mostramos a Figura 6 acima. É ainda um índice baixo com relação ao que deveria ser em tempos de controle epidêmico. Ou seja, é o lockdown acontecendo sim. Ao contrario do que se “vende” no artigo da tribuna.

Figura 7 — Índice de isolamento social para o RN em 9 de março de 2021. Inloco. Viz Author: Inloco

O CE mostra como se deve fazer e nos dá várias lições. Primeiramente por lá, usam os modelos SIR, como o nosso SEIR MOSAIC-UFRN [1]. Mesmo tendo modelos por lá, por diversas vezes os cearenses me pediram rodadas dos nosso modelos, segundo eles, são melhores e mais apropriados a COVID-19. No CE, entre maio e junho de 2020 o fortalezense viveu o seu primeiro Lockdown e agora mais um novo lockdown de 15 dias começando. Enquanto RN & Natal patina. Temos um negaciosismo científico, despreparo e discussões abstratos sobre “o que é um lockdown?”.

Figura 8—

O resultado das atitudes no enfrestamento da COVID-19 no CE ao longo do tempo, assim como os efeitos deste índice recente de isolamento em torno de 40% mostrado na figura anterior, se refletem nos modelos epidemiológicos MOSAIC para evoluções da COVID-19 e baseados nos dados da Secretaria de saúde pública do CE. A Figura 9 abaixo faz um comparativo direto pari passo entre as duas realidades. A do CE e do RN. Curvas similares até, porém o RN apresenta “saltos”, referentes as aberturas pouco estratégicas, como por exemplo em Junho de 2020, sob pressão dos logistas e setembro de 2020 das escolas privadas, entre outros setores.

Figura 9— Modelos MOSAIC para o CE e RN.

comparação da curva epidemiológica do CE & RN nos diz muito sobre a evolução dos casos nos últimos 12 meses e aponta para os erros e acertos nas duas condutas científicas adotadas. É preciso dizer, que no CE, o Governo do estado e a municipalidade de Fortaleza trabalho em conjunto. Já a loucura da prefeitura de Natal interfere muito negativamente no enfreamento do RN, pois a maior parte da dinâmica é provenientes das capitais. Se o RN vai mal é devido à Natal que puxa a transmissibilidade pra cima (já bem conhecido por análise). Isto é um fato, porém erros da Gestão científica por parte do Governo do Rio Grande do Norte que fala em nome do seu comitê científico muitas vezes em dissintonia, se superpõem também ao negaciosismos que reina na gestão da capital norte riograndense. Falta de pulso forte em seguir a ciência por parte do Governo do Estado se junta com o negacionismo total da municipalidade de Natal e produz este caldo denso de muitas mortes.

Figura 10— Modelos MOSAIC com os picos de aberturas

Para dar um exemplo dos erros de gestão por parte do Governo do estado, vejam a Figura 9 acima. As curvas apesentadas para o RN e CE são similares em aspecto global, porém o CE não tem os picos locais provocados pelos decretos mal feitos de abertura precoce do Governo do RN, com pouco critério científico. Os pontos 1 e 2 na Figura 10, poderiam ter sido evitados. Ex: Se n tivesse acontecido superposição de retorno às aulas com as campanhas políticas (ponto 2).

O RN navega para onde?

Figura 11 — Projeções dos modelos MOSAIC- UFRN, no cenário cenário sem vacinas e seguindo a situação atual dos decretos estabelecidos na última sexta feira 5 de março de 2020 (Comitê descarta lockdown no Rio Grande do Norte, TN 05.3.2021),

Segundo as projeções dos modelos MOSAIC- UFRN, no cenário cenário sem vacinas e seguindo a situação atual dos decretos estabelecidos na última sexta feira 5 de março de 2020 (Comitê descarta lockdown no Rio Grande do Norte, TN 05.3.2021), teremos que no dia 30 de março 2021 o Rio Grande estará com 4497 óbitos (Figura 11) . Em 23 dias o (linha amarela) RN segue para o descarte de aproximadamente 800 vidas. São quase 20 óbitos diários daqui pra frente. Sem vacinas, estas mortes poderiam ter sido evitadas por um decreto de isolamento social realista e mais científico, como foi feito no CE.

E se tivéssemos feito Lockdown em 5.3.21 ?

Argumentos fiscais à parte, exponho aqui que seria mais econômico fazer um lockdown de 21 dias agora e abrir mais cedo, do que insistir nesta “abertura doente” que prolonga a COVID-19 no RN. Experiencias com dinâmica de seres vivos hoje em dia podem ser feitas in vivoin vitro em silício (computadores) e estas últimas mostram como os sistemas evoluem. Apresentamos aqui abaixo na Figura 12 e 13, a situação do que ocorreria se tivéssemos feito um lockdown no dia 5/03/2021 com extensão de 21 dias. Essa seria, em princípio a melhor saída neste momento, com base na própria experiência do Ceará.

Figura 12 — Modelo MOSAIC simulando 21 dias de Lockdown começando em 5 de março de 2021
Figura 13 — Projeções do Modelo MOSAIC para p RN simulando 21 dias de Lockdown começando em 5 de março de 2021 e seus 231 óbitos ao invés dos 800 na realidade do RN hoje.

Com esta ação, certamente sairíamos da péssima situação que se encontra o RN. O lado bom do momento, é que observando o Ceará, nosso estado vizinho, já temos a comprovação dos resultados como mostrado nas Figuras acima. Nesta situação, o modelo MOSAIC-UFRN apresentado na figura mostra claramente a realidade paralela do lockdow em 5 de março de 2021. Uma descida do número de expostos e uma de redução imediata de óbitos. Ao invés de termos 800 mortes, teríamos pouco mais de 200 em 23 dias do resto de mês de março (Figura 13). É uma diferença de 500 pessoas que estavam vivas e não precisariam morrer!

Figura — 14 Evolução da mobilidade em função dos decretos.

O que esta em jogo na verdade?

Rio Grande do Norte vive uma situação extremamente complicada e, em parte, devido à correlação de forças entre o Governo do Estado e a Prefeitura de Natal. Sabendo que boa arte da dinâmica do RN é fruto da transmissibilidade na capital (os modelos já mostram e eu já disse isto várias vezes) vemos que a confusão gerada pela contradição entre os decretos do estado e ações do município só atrapalha as ações que têm sido feitas no âmbito estadual. O prefeito de Natal, Álvaro Dias, e sua conexão com a Associação Médica quebrou a bússola do consenso científico que deveria ser fundamental para frear a epidemia do COVID-19 no RN, como aconteceu no Ceará. Seria com vistas a 2022? Do ponto de vista político fica claro que Álvaro Dias torce para que o Governo declare lockdown e ele fique com a posição antagônica com relação à Governadora Fátima Bezerra. Já Fátima, que poderia ser clara e defender os aspectos científicos, deixa uma certa desarticulação terceirizada tomar conta. Diante de um cenário tão grave, não é possível haver espaço para exposições mal feitas ou titubeantes por interlocutores de fora do governo ou um comitê científico acuado, que não convence, como posicionamento recente exposto na matéria da Tribuna do Norte (5.3.2021). Neste aspecto, seria melhor falar claramente que os parâmetros epidêmicos mostram a necessidade de um lockdown URGENTE (que já defendemos semana passada) e os argumentos financeiros, que não permitem sua implementação, deveriam ser expostos pelo setor do finanças. Não é atribuição do comitê científico falar sobre isso. A Governadora Fátima Bezerra, entendeu que não tem como fazer um lockdown sem qualquer assistência financeira por parte do governo, ok, mas isso não é dito claramente e argumentos se misturam. Isto precisa ser dito claramente, sem utilizar desculpas baseadas em estudos do comitê científico, apresentados por um interlocutor único e sem fundamento técnico. Seria importantíssimo que todos soubessem a real situação. Se o Governo do Rio Grande do Norte fosse mais claro, sem atropelos em falas personalizadas e fracas do ponto de vista científico, as pessoas entrariam mais facilmente na lógica do Pacto pela Vida, se libertariam das narrativas malucas do curandeirismo, do setor produtivo em colapso, das mentiras sobre tratamento precoce tão presentes na municipalidade de Natal. Disso tudo se repete, que na briga do mar com as pedras, quem morre na verdade são os aratus.

SITUAÇÃO DO RN EM 7 DE MARÇO DE 2021:

  • ~100 pacientes na fila aguardando uma UTI
  • ~33 Pacientes aguardando leitos clínicos
  • ~15 óbitos novos nas últimas 24h
  • ~10 óbitos em média por dia nos últimos 6 meses.
Figura 14— Evolução de Casos Confirmados por dia em Natal. Comparando com as médias de outras capitais, percebe-se que os feitos da Ivermectina e Cloroqiuna são desprezíveis, como seria de se esperar. Houve influência da terapêutica preconizada pela prefeitura sobre a curva epidêmica do RN?

O que vem por aí…

Possivelmente depois da publicação deste artigo, alguns vão defender o lockdown, outros vão deixar de ser meu amigo e por ai vai. A vida continua e termino dizendo o que já disse. Antes da pandemia eu era cientistas. Na pandemia eu fui cientistas e continuarei sendo depois.

Referências:

[1] Modelos MOSAIC — UFRN, W. Lyra, JD do Nascimento, L. de Almeida et al. (2020). “COVID-19 pandemics modeling with modified determinist SEIR, social distancing, and age stratification. The effect of vertical confinement and release in Brazil. PLoS One, v. 15, p. e0237627, 2020. doi: http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0237627. Repositório de modelos: http://astro.dfte.ufrn.br/html/Cliente/COVID19nor.php

[2] Houve influência da terapêutica preconizada pela prefeitura sobre a curva epidêmica do RN?

*É professor da UFRN

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