Sinais

Por Natália Bonavides

Sou autora da ação popular em que houve a decisão que proibiu o governo federal de celebrar o golpe militar de 1964. Essa decisão foi recém-suspensa pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. O ministro entendeu que chamar o golpe de 1964 de “marco para a democracia brasileira” seria de direito do seu ex-assessor e hoje ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Considerou que seria censura limitar o conteúdo de uma “simples ordem do dia” (documento endereçado a todas as Forças Armadas e que externa a posição institucional de seus comandos).

A decisão do ministro fala em interferência de um Poder em outro. Que fique explicado para quem nos lê: nossa ação popular não fala em fechar o STF com um cabo e um soldado, nem nada do tipo! Fala, sim, que é um absurdo usar a estrutura do Estado brasileiro para fazer apologia à ditadura criminosa que destruiu famílias, censurou, assassinou, estuprou, sequestrou e ocultou cadáveres de brasileiras e brasileiros.

Outro dia li que a democracia não costuma avisar quando está morrendo. Verdade. Cabe a nós atentarmos aos sinais. Está acontecendo no Brasil, dia após dia, uma escalada autoritária, e os sinais gritam tão alto quanto o presidente mandando um jornalista calar a boca.

Os sinais chegam tão perto quanto os aglomerados das manifestações que, com a presença do presidente Jair Bolsonaro, pedem golpe militar. Os sinais são tão transparentes quanto o filho do presidente falando de AI-5. Os sinais são tão estridentes quanto o barulho de um caixão sendo aberto para que um parente confira se o corpo está lá mesmo, dúvida plantada pelas milícias virtuais que manipulam o debate público. Os sinais chegam em nossa cara como se fossem o hálito putrefato de 1964 e o bafio terrível de 1968, como Lima Duarte falou em sua homenagem a Flávio Migliaccio. Enfim, os sinais são tão escandalosos como uma ordem do dia em que o ministro da Defesa afirma que, no golpe de 1964, as instituições se moveram para sustentar a democracia.

E seria justamente às instituições brasileiras —às quais não abriremos mão de recorrer para defender a democracia— que caberia acolher esses sinais e tomar um lado.

Há quase exatos 56 anos, meu avô (que eu não conheci porque morreu de câncer antes de eu nascer) descrevia no seu diário como foi receber a primeira visita da família no local onde estava preso, no Ceará, por ser comunista. Não pretendo que minhas netas leiam nada desse tipo.

Sim, é longo o caminho em defesa da memória e da verdade. Em 2019 (!), ainda estava o Tribunal Europeu de Direitos Humanos a referendar que a negação do Holocausto não estava protegida pelo direito à liberdade de expressão –por constituir-se, na verdade, em falseamento da história. O presidente da África do Sul, há poucas semanas, teve que assinalar que o apartheid foi um crime contra a humanidade. E cá estamos a lembrar, a registrar, a reafirmar que o Brasil viveu uma ditadura e que permitir que isso seja negado somente serve a quem adoraria ver um novo AI-5, uma intervenção militar, fechar o Congresso e fechar o STF (palavras tiradas de cartazes de uma manifestação de dias atrás).

O caminho é longo. Mas não deixaremos de trilhá-lo.

O caminho é duro, mas é nosso papel sacudir o ambiente para que se acorde desse nocaute que a democracia sofre.

Recorreremos da decisão e buscaremos um julgamento célere —e não apenas esperaremos a história julgar. Esta, sim, será dura.

Mais uma vez relembro Lima Duarte, agora quando citou Brecht: “Os que lavam as mãos o fazem numa bacia de sangue”.

*É Deputada federal (PT-RN), advogada e mestre em direito constitucional.

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Canal Bruno Barreto