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Os deputados que votaram para soltar mandante do assassinato de Marielle e a normalização do absurdo

A Câmara dos Deputados decidiu manter a prisão de Chiquinho Brazão (sem partido/RJ) por 277 x 129. A votação foi apertada porque se tem 21 votos a menos o suspeito de mandar matar a vereadora Marielle Franco em 2018 seria libertado.

Na bancada do Rio Grande do Norte três deputados foram a favor de soltar Brazão: Sargento Gonçalves (PL), General Girão (PL) e Paulinho Freire (União). Os dois primeiros a gente espera isso mesmo porque são bolsonaristas raiz. O terceiro é uma decepção não pelos gestos recentes, mas pelo conjunto de sua história política com status de moderado.

Paulinho decidiu radicalizar para ter o voto bolsonarista em Natal esquecendo-se que para vencer a eleição de prefeito de Natal precisa de 50% + 1 dos votos válidos e Natal rejeitou Jair Bolsonaro (PL) nas eleições presidenciais de 2022.

A dificuldade em manter a decisão do ministro Alexandre de Moraes dá uma ideia do quanto o absurdo foi normalizado no Brasil com a ascensão do bolsonarismo.

Desde o início o bolsonarismo demonstrou desprezo pela morte de Marielle. Afinal de contas é uma mulher negra, LGBT e que desceu o morro para fazer política no asfalto. Tudo que um reacionário mais detesta. Como não podem dizer isso abertamente, apelam para subterfúgios que não param em pé como a defesa da constituição, um contrassenso em se tratando de bolsonarismo, que tem no golpismo um de seus pilares.

O Brasil pós-bolsonarismo abraçou a normalização do absurdo em nome de uma suposta imparcialidade que no fundo pinta como concordância envergonhada. O problema é que o tempo vai passando e mais gente vai perdendo o constrangimento em se alinhar com o absurdo.

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Porque as mortes da PM catarinense e da vereadora carioca provocam comoções diferentes

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O Brasil está muito estranho. Estamos sendo obrigados a ter que explicar o óbvio que muitos não percebem num ambiente toscamente polarizado entre “coxinhas” x “mortadelas”, “bolsominions” x “petralhas”.

Em primeiro lugar mortes são mortes. As famílias vão sofrer uma dor inimaginável que não temos condições de mensurar. Mas o que vai comover os estranhos são as circunstâncias. São eles que vão gerar mais falatório.

O interesse da mídia também vai variar conforme alguns aspectos como a localização geográfica da tragédia ou o apelo das pessoas envolvidas. A morte de um ator jovem comove muito mais do que a de artista beirando os 100 anos.

Eu mesmo já fiquei indignado com as diferenças de tratamentos que levam em conta a localização geográfica porque entendo que a vida humana tem o mesmo valor nos EUA ou na África. Mas a minha crítica se refere a tragédias climáticas e atos terroristas, há uma assimetria na desgraça com comoções diferentes na mídia.

Um latrocínio (assalto seguido de morte) e uma execução são crimes de homicídio de naturezas diferentes. A vítima do latrocínio é escolhida ao acaso. A vítima de uma execução é alvo de uma morte planejada e o motivo é variado como as ideias que defende ou simplesmente por ser mulher, negra ou homossexual.

O Rio Grande do Norte está chocado com a morte da policial militar catarinense Caroline Pletsch. Mas setores conservadores querem impor nas redes sociais que a comoção pela morte dela seja igual a da vereadora carioca Marielle Franco. Isso não vai acontecer porque foram tragédias de naturezas diferentes. Uma vítima da banalização da violência. Outra alvo de uma execução com fortes indícios de crime político.

Não por ser uma homossexual e outra heterossexual. Não porque uma era negra e a outra branca. Não é porque uma lutava pelos direitos humanos e outra policial (como se policiais não pudessem lutar por justiça e quem luta por justiça não pudesse defender os policiais).

No caso de Marielle, o fato dela ser mulher, negra e homossexual gera uma carga simbólica maior por ela reunir em si alguns dos grupos mais discriminados no país. Mas o fator principal é ser vítima de um crime de execução com forte indício de motivação política, repito. É muito parecido com o assassinato da freira Dorothy Stang, assassinada em 2005 por sua atuação em defesa dos menos favorecidos no conflito por terras no Pará. A religiosa estadunidense não era negra nem homossexual e, ainda por cima, era do país onde um tiro para cima tem repercussão mundial. A morte dela gerou comoção por ter uma motivação política.

Reforçando para quem ainda não entendeu a diferença dos casos:

  1. Caroline Plescht: foi assaltada como qualquer um de um de nós pode ser;
  2. Marielle Franco: foi vítima de um crime premeditado após sofrer ameaças por sua atuação política.

Resumindo: a vida de Caroline Plescht é tão importante quanto a de a Marielle Franco. A comoção no caso desta última é pela natureza do crime.

Caroline Pletsch foi vítima de um assalto, lutou bravamente para conter os bandidos. Já tive um amigo de infância, também policial, que morreu tragicamente dessa mesma forma, por coincidência em um lugar muito próximo ao da tragédia da segunda-feira.

A questão aí é de segurança pública, é do risco exposto aos turistas que visitam o Rio Grande do Norte e da morte de uma pessoa que estava apenas querendo descansar (um direito de todos) e conhecer as nossas belezas naturais.

O caso de Marielle foi outro. Ela foi executada após fazer denúncias de violência contra negros pobres em comunidades carentes. Morreu em defesa de uma causa.

Aqui em Mossoró a cidade está comovida com a história da professora Márcia Regina que foi vítima de doze cutiladas de tesoura pelo próprio marido. Mas aí já é um outro tipo de comoção. A reflexão provocada por um caso desse é diferente da de Marielle Franco e da Caroline Plescht. Trata-se de uma tentativa de feminícidio.

As pessoas que cobram o mesmo tratamento entre Marielle Franco e Caroline Pletsch não estão incomodadas com a maior ou menor atenção de um e outro caso. A questão é política: é sobre quem se “apropriou” do cadáver.

A última preocupação em um e outro caso é com a dor das famílias. A dor pela morte de um ente querido derrapou na política rasteira.

Ps.: trecho que trata das ameaças à Marielle Franco suprimido por equívoco do autor.

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“Tava chorando a defensora de bandido”: O que nos diferencia das bestas?

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Por Leonardo Sakamoto*

”Tava chorando a defensora de bandido, Sakamoto?” Voltando do protesto por conta da execução de Marielle Franco, que passou pela avenida Paulista, na noite desta quinta (15), ouvi a frase dita pela voz de um rapaz, acompanhada de risos de outros, provavelmente seus amigos. Dessa vez não me dignei a olhar para trás e fazer alguma brincadeira, como sempre. Apenas respirei fundo, muito fundo, e segui meu caminho, pensando na tristeza que é ter orgulho da própria ignorância.

Já havia me deparado com centenas de comentários ao longo do dia que celebraram o assassinato de Marielle – liderança feminista, do movimento negro e da comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, e quinta vereadora mais votada da capital carioca – e de seu motorista Anderson Gomes. Boa parte deles repetia exaustivamente abominações típicas de quem não faz ideia do que seja esse pacote mínimo de garantias para nossa dignidade.

Alguns dos leitores, aliás, acham que direitos humanos é o nome de um grupo de pessoas. Escreveram que ”com a morte dessa mulher, vai ter menos direitos humanos por aí” ou algo semelhante.

Parte desses jovens acha que está sendo subversiva e revolucionária, pois luta contra a ”ditadura dos direitos humanos”. Essa ditadura, claro, é uma ficção. Pois se eles fossem minimamente respeitados não teríamos essa taxa pornográfica de homicídios, mulheres sendo estupradas, negros ganhando menos do que brancos e pessoas morrendo por amar alguém do mesmo sexo. Não teríamos pessoas sendo executadas por defender a qualidade de vida de outras, inclusive daquelas que querem o seu mal.

Achei que valia a pena retomar trechos de um texto que eu havia escrito, em dezembro passado, para ilustrar a situação:

Direitos humanos dizem respeito à garantia de não ser assaltado e morto, de professar a religião que quiser, de abrir um negócio, de ter uma moradia, de não morrer de fome, de poder votar e ser votado, de não ser escravizado, de poder pensar e falar livremente, de não ser preso e morto arbitrariamente pelo Estado, de não ser molestado por sua orientação sexual, identidade, origem ou cor de pele.

Mas devido à deformação provocada por políticos escandalosos, líderes espirituais duvidosos e formadores de opinião ruidosos, a população acha que direitos humanos dizem respeito apenas a ”direito de bandido”, esquecendo que o mínimo de dignidade e liberdade do qual desfrutam estão neles previstos.

O mundo, ainda em choque com os horrores da Segunda Guerra Mundial, produziu a Declaração Universal dos Direitos Humanos para tentar evitar que esses horrores se repetissem. De certa forma, com o mesmo objetivo, o Brasil, ainda olhando para as feridas de 21 anos de ditadura militar, sentou-se para escrever a Constituição Federal de 1988 – que não é um documento perfeito, longe disso. Mas, com todos seus defeitos, ousa proteger a dignidade e a liberdade de uma forma que se hoje sentássemos para formula-lo, não conseguiríamos.

É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que o sofrimento igual nunca mais se repita. Desde então, não vivemos uma guerra como aquela entre 1939 e 1945, muito menos um período de exceção quanto 1964 e 1985. Acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando.

Minha geração herdou esses textos – um de nossos avós e outro de nossos pais. Agora, precisamos ensinar à geração de nossos filhos sua própria história sob o risco de que o espírito presente em 1948 e 1988 se perca por desconhecimento. O problema é que parte da geração que ajudou a escrever a Declaração Universal bem como a Constituição de 1988 se esqueceu por completo dos debates que levaram até elas, em nome do poder.

O mundo está em convulsão, com guerras, ataques terroristas, crises migratórias, catástrofes ambientais. O Brasil passa por um período sombrio, com um Palácio do Planalto castrador de direitos, o pior Congresso Nacional de todos os tempos (que está aprovando leis que retiram, à luz do dia, direitos de trabalhadores, mulheres, populações tradicionais, minorias) e um Poder Judiciário que, por vezes, faz política ao invés de resguardar a Justiça.

Contudo, é exatamente nestes momentos que precisamos nos lembrar da caminhada que nos trouxe até aqui. Para ter a clareza de que, mais importante do que reinventar todas as regras, é tirar do papel, pela primeira vez, a sociedade que um dia imaginamos frente aos horrores da guerra ou da ditadura. O que só se fará com muito diálogo e a garantia desse quinhão mínimo de dignidade que todos têm direito por nascerem humanos.

Só assim frases como as que podem ser lidas abaixo deixarão a boca das pessoas para cair no esquecimento. Frases que, não raro, nós falamos sem perceber, guiados pela nossa ignorância, medos e preconceitos. Até que sejamos devidamente educados para o contrário.

– Amor, fecha rápido o vidro que tá vindo um ”escurinho” mal encarado. – Aquilo são ciganos? Vai, atravessa a rua para não dar de cara com eles! – Não sou preconceituoso. Eu tenho amigos gays. – Tá vendo? É por isso que um tipo como esse continua sendo lixeiro. – Por favor, subscreva o abaixo-assinado. É para tirar esse terreiro de macumba de nossa rua. – Bandido bom é bandido morto. – Tinha que ser preto mesmo! – Vestida assim na balada, tava pedindo. – Por que o governo não impede essas mulheres da periferia de ter tantos filhos assim? Depois, não consegue criar e vira tudo marginal. – Mulher no volante, perigo constante. – Sabe quando favelado toma laranjada? Quando rola briga na feira. – Os sem-teto são todos vagabundos que querem roubar o que os outros conquistaram com muito suor. – A política de cotas raciais é um preconceito às avessas. Ela só serve para gerar racismo onde não existe. – Ai, o Alberto, da Contabilidade, tem Aids. Um absurdo a empresa expor a gente a esse risco. – Esse aeroporto já foi melhor. Hoje, tem cara de rodoviária. – Por mim, tinha que matar mulher que aborta. Por que a vida do feto vale menos que a da mãe? – Os índios são pessoas indolentes. Erram os antropólogos ao mantê-los naquele estado de selvageria. – Criança que roubou não é criança. É ladrão e tem que ir para cadeia. – 

Tortura é método válido de interrogatório. – Um mendigo! Vamos botar fogo nas roupas dele. Assim ele aprender a trabalhar. – Pena de morte já. – Eutanásia? Pecado. A vida pertence a Deus, não a você. – Temos que tirar essas regalias trabalhistas. O Brasil não aguenta crescer com tantos custos engessando o desenvolvimento.

Por fim,  gostaria de dar parabéns a todos que veem tudo isso acontecer ao seu redor, mas preferem ficar na ignorância quentinha de sua bolha na rede social porque pensam que o mundo lá fora é a barbárie. Afinal, a ignorância coletiva precisa, para se reproduzir, do silêncio dos que têm consciência, mas não falam.

E o silêncio é sentença de morte dos direitos humanos.

*É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.