Categorias
Matéria

Doutrinação? Ação de Fábio Faria obriga que alunos assistam propaganda do governo antes acessar internet pública

O Jornal O Estado de S. Paulo veiculou hoje reportagem que mostra até onde vai a falta de escrúpulos do bolsonarismo para fazer aquilo que acusava os adversários quando estava na oposição.

A matéria informa que os usuários do programa Wi-fi Brasil, que integra o projeto do Conecta Brasil, mantido pelo ministério das comunicações Fábio Faria, exige que os estudantes assistam a propagandas do Governo Federal.

O único que abre sem que obrigue os alunos a verem a propaganda oficial é o WhatsApp.

O bolsonarismo sempre acusou as esquerdas de fazerem doutrinação maxista nas escolas e de aparelhamento do Estado, mas na prática faz o que denunciava.

Confira a reportagem do Estadão:

BRASÍLIA – A internet banda larga chegou às escolas da zona rural de Santa Filomena, no interior do Piauí, mas a novidade veio com uma exigência. Estudantes, professores e moradores precisam assistir a uma propaganda de 30 segundos sobre programas sociais do governo Bolsonaro a cada vez que acessam a rede. A peça publicitária é uma imposição aos beneficiários do Wi-fi Brasil, projeto do Conecta Brasil, um conjunto de iniciativas para promover a inclusão digital tocadas pelo Ministério das Comunicações.

O único aplicativo que abre sem a publicidade é o WhatsApp. “Para usar o Google e o Caixa Tem, a gente assiste ao vídeo”, diz a estudante Gabriela Silva, de 14 anos, do 9.º ano da Escola Municipal Anita Studer, no povoado de Sete Lagoas. Funciona assim: se o usuário precisar entrar na internet cinco vezes no dia, ele vai ter de assistir a propaganda cinco vezes. Se demorar para usar, a rede desconecta e tem de assistir de novo.

Pelas estimativas do Ministério das Comunicações, ao menos 26 milhões de brasileiros passaram a ter acesso à banda larga pelo Conecta Brasil. O programa tem um custo previsto de R$ 2,7 bilhões. Deste montante, R$ 2,46 bilhões serão alocados no Norte e no Nordeste, onde é maior a carência de internet.

Também essas são as duas regiões onde o presidente Jair Bolsonaro enfrenta os maiores desafios para garantir mais um mandato em 2022. O Nordeste é o principal reduto eleitoral do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e o Norte foi onde Bolsonaro venceu o petista Fernando Haddad, em 2018, com pequena margem de votos.

Diante disso, Bolsonaro planeja uma série de ações e viagens, especialmente, aos municípios do semiárido e às capitais nordestinas para reduzir a diferença com seu principal opositor. Há tempo que os grotões sertanejos recebem visitas de comitivas de Brasília. Em 20 de maio, quem apareceu em Santa Filomena (PI), foram o ministro das Comunicações, Fábio Faria, e o vereador e filho do presidente, Carlos Bolsonaro. Eles estiveram na cidade justamente para instalar o sinal público de wi-fi.

Em discurso, o ministro disse que a internet era uma fonte alternativa de informações em oposição ao que chamou de “notícias contra o presidente”. E aproveitou para reclamar do que considerava uma perseguição a Carlos. “Eles fazem isso porque eles sabem que Carlos Bolsonaro foi responsável pela eleição de Jair Bolsonaro! Apareça, Carluxo! Não fique no Rio, não. Fique do lado do seu pai em Brasília. Sabe por quê? Porque há 15 dias atrás ninguém via na televisão que ia ter manifestação. Semana passada, ninguém via nos jornais que o agronegócio ia para Brasília. Mas ele sabia, porque ele conversa com quem não assiste as mesmas notícias todos os dias contra o presidente.”

 

Foi então que Carlos subiu no palco e cumprimentou o ministro. O vereador é considerado o mentor da campanha eleitoral do pai nos meios digitais e costuma dar o tom dos posicionamentos nos perfis oficiais do presidente nas redes sociais, aos quais tem acesso livre. É ele quem comandaria o chamado gabinete do ódio, grupo na mira do Judiciário acusado de usar as redes sociais a espalhar fake news, distorcer fatos e perseguir adversários do presidente.

Entre as medidas adotadas pela gestão de Bolsonaro elencadas no vídeo de propaganda estão o 13.º salário do Bolsa Família e a instalação de sinal de internet em escolas, conforme indicam capturas de tela obtidas pelo Estadão. Os roteadores são colocados em locais em torno dos quais as comunidades contempladas se reúnem, como escolas, postos médicos e unidades de segurança pública.

Antes da chegada do Wi-fi Brasil na escola em que Gabriela e outros 61 alunos estão matriculados, em Sete Lagoas, havia uma torre que fornecia sinal de rede aos moradores do povoado. Em dezembro do ano passado, a instalação foi derrubada por uma ventania. Situada a cerca de 60 km do centro da zona urbana de Santa Filomena, o povoado também não dispõe de sinal de telefonia.

Durante o período em que estiveram sem conexão, comunicavam-se por cartas e muitos alunos eram levados pelos pais até fazendas particulares onde era possível acessar a internet. Outros, no entanto, não tinham meios de percorrer as distâncias necessárias e puderam apenas fazer as tarefas das apostilas entregues pelos professores em casa. Como a motocicleta é o veículo mais comum na região, alguns pais precisaram escolher quais filhos levariam às fazendas.

O vereador de Santa Filomena Adilson Lopes (Progressistas) observa que o Whatsapp, aplicativo onde Bolsonaro tem forte presença, tornou-se a principal fonte de informação dos moradores. Não há exigência de publicidade do governo para acessar o aplicativo.

Por sua vez, o prefeito Carlos Braga (Progressistas) disse que não sabia da necessidade de assistir à propaganda do governo para acessar a internet em Sete Lagoas, onde vivem 400 habitantes, segundo estimativa da prefeitura. “Eu estou sabendo agora. Não sabia desse vídeo. Não vi ninguém ainda relatando esse fato”, disse. “Não vou aqui me arriscar a dizer que pontos de internet estão sendo utilizados para determinados fins político-eleitorais. É claro que nas redes a gente vê e ouve muita coisa.”

A banda larga chega aos grotões do Nordeste – a segunda região do País com mais eleitores 26% (39,2 milhões)– no momento em que bolsonaristas planejam repetir estratégias de uso de redes sociais adotadas em 2018. Quando concluído, o Nordeste Conectado irá beneficiar cerca de 16 milhões de pessoas.

Procurado, o Ministério das Comunicações informou que o Cidades Digitais destinou R$ 44,8 milhões em investimentos no Nordeste. “Desse total, R$ 16,4 milhões no atual governo.” Segundo a pasta, “a veiculação de vídeos institucionais está prevista no projeto básico da implantação de pontos de acesso gratuito à internet em localidades públicas, pelo programa Wi-Fi Brasil” e é instrumento importante “de divulgação de mensagens de utilidade pública”.

Em escolas da região Norte também só se acessa a rede pública de internet após assistir a propaganda do governo federal. Um braço do Conecta Brasil, o Norte Conectado terá ao menos duas de um total de nove infovias de fibra óptica concluídas no ano eleitoral de 2022. As outras sete serão entregues até 2025.

“O investimento total para o Norte Conectado é de cerca de R$ 1,8 bilhão, dos quais R$ 248 milhões já foram repassados. O restante está condicionado à realização do leilão do 5G”, informou o Ministério das Comunicações.

O alto custo do projeto se deve, em larga medida, à dificuldade de instalação da infraestrutura no território cortado por rios. Para realizar a operação são necessários estudos hidrográficos e licenciamento ambiental. Parte dos 12 mil km de cabos deverão passar por debaixo de áreas fluviais extensas para chegar às comunidades. Não se sabe ao certo quantas pessoas serão beneficiadas até o ano que vem, pois a liberação de recursos para construção das sete infovias restantes depende da realização do leilão do 5G. De acordo com o Ministério das Comunicações, já há 475 pontos de internet do governo federal em áreas demarcadas e mais 95 devem ser instalados até 2022.

Uma das principais armas do arsenal retórico do bolsonarismo, o discurso contrário às organizações de defesa das comunidades indígenas chega quase diariamente aos celulares dos moradores da região do Rio Negro, onde vivem 23 etnias indígenas. Velha demanda daquelas populações, o avanço da conexão à internet pelo Wi-fi Brasil trouxe, com os benefícios da inclusão digital, a ampliação do alcance das fake news.

Presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Marivelton Baré disse que é frequente o recebimento de mensagens com conteúdo enganoso sobre ONGs que atuam no local.

“Temos orientado o pessoal com esse negócio de fake news, muito comum, principalmente no momento atual. Como aqui é uma região de fronteira, também tem o Exército falando em soberania nacional (para atacar entidades do terceiro setor)”, afirmou Baré.