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Reeleição de Lawrence para presidência da Câmara corre risco de ser questionada na Justiça?

Lawrence foi reeleito ontem com um ano e meio de antecedência (Foto: Edilberto Barros)

Em dezembro de 2020 o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou a tentativa de Davi Alcolumbre (DEM/AP) e Rodrigo Maia (DEM/RJ) se reelegerem dentro da legislatura presidentes respectivamente do Senado e Câmara dos Deputados.

Nem os regimentos internos das duas casas nem a Constituição Federal permitiam isso.

A decisão abriu um precedente para que outras reeleições fossem contestadas a depender das circunstâncias. O Blog do Barreto pesquisou alguns casos e consultou juristas a respeito do assunto para conferir se há risco de a reeleição antecipada em um ano e meio de Lawrence Amorim (SD) ser passível de contestação.

É preciso lembrar que o STF decidiu sobre Senado e Câmara dos Deputados com base no artigo 57 da Constituição Federal e que Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas têm autonomia e regimentos próprios.

Há decisões sobre omissões em regimentos. Em abril Luís Roberto Barroso em decisão liminar limitou a uma única reeleição para presidente da Assembleia Legislativa de Alagoas. Em janeiro Alexandre de Moraes chegou a impedir a ocorrência de reeleições sucessivas na Assembleia Legislativa de Roraima.

A preocupação do STF é coibir as sucessivas reeleições, o que não seria o caso de Lawrence que conquistou a primeira ontem. Além disso, o Regimento Interno da Câmara Municipal de Mossoró permite a reeleição.

Acrescente-se que, observando a letra fria do artigo 57 da Constituição Federa, é possível perceber que ela está delimitada ao Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado):

Art. 57. O Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na Capital Federal, de 152 de fevereiro a 3017 de junhojulho e de 1º de agosto a 1522 de dezembro.

  • 4º Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2dois(dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente.

II – pelo Presidente da República, pelos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ou a requerimento da maioria dos membros de ambas as Casas, em caso de urgência ou interesse público relevante., em todas as hipóteses deste inciso com a aprovação da maioria absoluta de cada uma das Casas do Congresso Nacional.

Em síntese: como há uma insegurança jurídica é possível que a reeleição de Lawrence seja questionada pelo Ministério Público, mas por ter sido a primeira e o Regimento Interno da Câmara Municipal de Mossoró ser claro na permissão para isso é pouco provável que tenha êxito.

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Assalto no “Carrefour”: lei não cumprida

Foto: Carlos Daniel/Inter TV Cabugi

Por Ney Lopes*

Em pleno início da tarde de ontem, 15, criminosos fortemente armados invadiram o supermercado Carrefour, no bairro da Candelária, em Natal, causaram pânico, correria dos clientes e aprisionaram funcionários como reféns.

Isso não era para ocorrer na cidade de Natal, se as leis vigentes fossem cumpridas, a rigor.

Em 2009, entrou em vigor no município, a lei 0279/09, de autoria do então vereador, Ney Lopes Júnior, em cuja ementa se lê: “determina horários diferenciados para circulação de carros-fortes em horário comercial e próximo às escolas”.

Á época, a Câmara Municipal de Natal sofreu fortes pressões e protestos de empresas de segurança privada de Natal, alegando aumento de custos para a implementação da norma.

O autor persistiu e conseguiu a aprovação da sua proposta, que é norma vigente nas maiores cidades do mundo, visando à proteção e segurança do cidadão.

A propósito da “lei não ter sido respeitada”, cabe lembrar André Gide: “tudo já foi dito uma vez, mas como ninguém escuta é preciso dizer de novo”.

A falta de fiscalização fez com que ocorresse episódio deplorável como o de ontem, no Carrefour.

No Brasil, o STF já se pronunciou sobre a constitucionalidade dos municípios legislarem nessa área de “segurança pública” e “interesse local”.

Transborda a convicção de que normas sobre “segurança pública” se caracterizam como “interesse local”, desde que sejam complementares e não se oponham às regras pré-fixadas pelos Estados e a União.

Configura-se, portanto, a competência municipal implícita, para zelar e guardar a Constituição, através de leis e normas próprias, em função do disposto no artigo 144 da Lei Maior, que define a “segurança pública, como dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”.

Os municípios podem e devem atuar na segurança pública, através da imposição de restrições administrativas a direitos e liberdades.

Esse foi o propósito da lei 0279/09, considerando o risco iminente causado por carros fortes circulando, sem controle, misturando-se aos transeuntes.

O município tem o dever de fixar normas de regulação na circulação desses veículos, em horários nos quais seja menor a aglomeração de pessoas.

O STJ (RMS 29990 RJ – 2009/0136400-6) pacificou a constitucionalidade de leis como a de autoria do então vereador Ney Lopes Jr, ao fixar a competência da Câmara Municipal do Rio de Janeiro na aprovação de restrição de horário para circulação de veículos de carga e suas operações, em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

O Código Nacional de Trânsito atribui ao município a competência para legislar a respeito do trânsito de veículos, no seu âmbito territorial.

Logo, a lei municipal de Natal não vislumbra qualquer ilegalidade, porquanto tão somente permitiu o horário de circulação de veículos de carga e suas operações nos períodos compreendidos entre 06 horas às 10 horas e das 17 horas às 22 horas.

Cabe lembrar a competência das “guardas municipais”, autorizadas pela Constituição, que inclui a proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas.

É inquestionável a eficácia da lei 0279/09, do vereador Ney Lopes Jr. O que faltou, para evitar situações de inquietação como ontem no Carrefour, foi a fiscalização rígida, que poderá ser feita pela Guarda Municipal do município, ou outro órgão da administração local.

Essa é obrigação vinculada ao poder de polícia do Município e apoiada pela Constituição e leis suplementar a legislação federal e estadual.

Não se justifica que prevaleça o “jeitinho brasileiro” da “lei que não pega” e deixa de ser cumprida.

Se o poder público seguir as normas criadas em conjunto para a sociedade, o país funcionaria melhor e seria mais seguro.

O alerta foi dado, com o assalto do Carrefour.

Agora é esperar que a PMN assuma o seu papel de fiscalizar o cumprimento com rigor, o que dispõe a lei municipal número 0279/09.

Note-se que a proteção preventiva atribuída pelo vereador Ney Lopes Jr no seu texto aprovado, alcança não apenas estabelecimentos comerciais, mas também às escolas.

*É jornalista, ex-deputado federal, professor de direito constitucional da UFRN e advogado.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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O Senado Federal ou a Câmara dos Deputados não podem abrir CPI para investigar condutas nos Estados membros

Pacheco foi pressionado a estender investigações a Estados e Municípios (Foto: Filipe Cardoso/wikimedia commons)

Por Rogério Tadeu Romano*

Discute-se se o Senado Federal ou a Câmara dos Deputados, no seu âmbito de competência privativa, traçado na Constituição, têm poderes para investigar atos cometidos pelos Estados-Membros, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios.

O  artigo 146 do regimento do Senado diz:

‘Não se admitirá comissão parlamentar de inquérito sobre matérias pertinentes:

1- à Câmara dos Deputados

2- às atribuições do Poder Judiciário

3- aos Estados

A dúvida, portanto, é se competiria apenas às assembleias legislativas a criação de CPI para apurar irregularidades cometidas por governadores e secretários estaduais de Saúde.

Observo o artigo 58 da Constituição Federal:

Artigo 58 – O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.

(…) § 3º – As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo as suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.

As comissões parlamentares são órgãos colegiados, nascidos na Câmara ou no Senado, com número certo de integrantes, incumbidos de analisar as proposições legislativas a fim de emitirem pareceres a respeito delas.

O Supremo Tribunal Federal já concluiu que a comissão parlamentar de inquérito destina-se a apurar fatos relacionados à Administração. Objetiva conhecer situações que possam ou devem ser disciplinadas em lei, ou ainda verificar os efeitos de determinada legislação, sua excelência, inocuidade ou nocividade. Seu escopo não é apurar crimes, nem, tampouco, puni-los competência esta dos poderes Legislativo e Judiciário. Se no curso de uma investigação venha a deparar-se com fato criminoso, dele dará ciência ao Ministério Público, para os fins de direito como qualquer autoridade, e mesmo como qualquer do povo(STF, RDA, 199:205).

Voltada para investigar fatos relacionados com as atribuições congressuais, a comissão parlamentar de inquérito te poderes imanentes ao natural exercício de suas competências, como colher depoimentos, ouvir indiciados, inquirir testemunhas, notificando-as a comparecer perante ela e a depor(STF, 199:205).

Discute-se a questão da competência para que o Senado possa apurar fatos ocorridos nas diversas unidades da federação com relação a fatos ligados à administração de recursos para o atendimento da população por conta da pandemia da Covid-19.

Sobre ela disse o ministro Celso de Mello(Investigação parlamentar estadual: as comissões especiais de inquérito, in Justitia, p.155) que a competência para investigar é limitada pela competência para legislar, de tal sorte que será abusiva a utilização do inquérito parlamentar para elucidar fatos que refujam às atribuições legiferantes do órgão investigante.

Fábio Konder Comparato(Comissões parlamentares de inquérito: limites, direito público: estudos e pareceres, p.91) entende que “a atividade fiscal ou investigatória das comissões de inquérito há de desenvolver-se no âmbito de competências do órgão dentro do qual elas são criadas.”

Por sua vez Alexandre Hissa Kimura(CPI-Teoria e Prática, Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 47) assim ensinou:

“Podem ser criadas comissões de inquérito respeitando-se as competências legislativas e administrativas que a Constituição conferiu à União, aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios.”

 Bem lembrou Carlos Alberto De Alckmin Dutra(Comissões Parlamentares de Inquérito: Sua competência investigatória) que  à União, aos Estados Federados e aos Municípios é vedado invadir o campo de atuação legislativa exclusiva de cada entidade federativa, nos moldes enumerados pela Carta Política de 1988.

Ainda ensina Carlos Alberto De Alckmin Dutra(obra citada) que No caso Hammer v. Dagenhart (247 U.S. 251), a Suprema Corte norte-americana assentou que o Governo Federal fere o sistema federativo quando invade os poderes reservados aos Estados. Seguindo essa orientação, no caso United States v. Owlett (M. D. Pa. 1936), decidiu-se que as CPIs devem permanecer circunscritas ao seu campo de ação legislativa: The attempt (…) to investigate a purely federal agency is an invasion of the sovereign powers of the United States of America (…) The investigatory power of a legislative body is limited to obtain information on matters which fall within its proper field of legislative action(apud João Carlos Mayer Soares, in Poder sobre a informação: comissões parlamentares de inquérito e suas limitações, in Juris Sintese, p.2).

No entanto outra é a posição de Frederico Augusto D’ Àvila Riani(Comissão parlamentar de inquérito: requisitos para criação, objeto e poderes, Revista de direito constitucional de internacional, p.188-189) quando afirmou:

“Críticas podem ser feitas a estes critérios interpretativos (vinculação do objeto da CPI à competência do órgão Legislativo). Qual o critério para determinação da competência do órgão Legislativo que vai delimitar os possíveis objetos de uma CPI? São as competências legislativas privativas? São as competências legislativas concorrentes? São as competências privativas de cada Casa, em se tratando de Congresso Nacional? São competências materiais? São todas elas? Não nos parece seja esse (competência do órgão Legislativo) um bom critério delimitador do objeto de uma CPI. Principalmente porque grande parte de nossa legislação está dentro do que a doutrina chama de competência concorrente –art. 24, CF. E mais, os municípios podem legislar sobre tudo aquilo que se referir a legislação federal e estadual (art. 30, II, CF). Como, então, se delimitar o objeto da CPI pela competência legislativa? Se o fator determinante para a sua criação, ou não, for a competência para a criação de normas gerais, teremos, praticamente, só CPI’s federais, devido à peculiaridade de nosso federalismo, que concentra poderes na União. Outro aspecto é que o parlamento é, pelo menos em tese, o órgão estatal mais representativo da sociedade. É um órgão plural por excelência. Por isso, não se pode fazer uma interpretação restritiva no que diz respeito a suas atribuições.”

 Então propôs o professor Riani, como exposto por Carlos Alberto De Alckmin Dutra(obra citada):

“Pensamos que a resposta adequada é o interesse público local. Em primeiro lugar, é primordial, imperativo, que o fato investigado seja realmente de interesse público. Em segundo lugar, é preciso que esse fato afete a vida dos indivíduos que estejam na circunscrição do órgão Legislativo que esteja instalando a comissão. Pode-se argumentar que sempre que houver interesse de um município haverá também do estado no qual ele se insere. E que se for interesse do estado também será da União. Entretanto, o critério proposto é baseado na inteligência do art. 30, I, da CF, quando é atribuída competência aos municípios para legislarem sobre interesse local. Esse interesse deve ser compreendido como peculiar interesse, interesse preponderantemente local. Assim, o critério estabelecedor do possível objeto da CPI é que o fato certo tenha interesse público. E depois, que ocasione lesão (ou pelo menos indícios) aos indivíduos da circunscrição do órgão Legislativo criador da Comissão Parlamentar. Para melhor compreender, podemos tomar como exemplo a CPI criada para investigar a queda na qualidade da telefonia fixa no Estado de São Paulo. Pelo critério da competência legislativa, só a União poderia criar uma CPI para investigar a qualidade do serviço de telefonia, sendo qualquer outra, que não criada em nível federal, inconstitucional. Isto porque o art. 22, IV, da CF dispõe que compete privativamente à União legislar sobre telecomunicações, e, principalmente, porque o art. 21, XI, confere competência à União para explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações.”

Mas é ainda Carlos Alberto De Alckmin Dutra(obra citada) que nos ensina:

“Seria impossível e inviável a criação de CPIs federais para a elucidação de fatos ocorridos em âmbito estadual. A própria existência da Federação brasileira, com 26 Estados e um Distrito Federal já evidencia, por si só, a inviabilidade de o Congresso Nacional investigar, por meio de CPI, fatos de interesse dos Estados-membros. Se forem levados em consideração os Municípios, então a inviabilidade de investigação federal é ainda mais patente.”

“Quantas CPIs podem existir concomitantemente em cada Casa do Congresso: em média, 04 a 05 CPIs em trâmite na Câmara Federal e por volta de 03 no Senado? A existência de uma simples irregularidade por Estado-membro, hábil a gerar uma CPI, já levaria à necessidade de 27 CPIs no Congresso.”

Daí porque Carlos Alberto De Alckmin Dutra(obra citada) propõe que “o  critério a ser observado para a verificação da legitimidade ou não de determinada CPI é, portanto, ao nosso ver, a existência de peculiar interesse da unidade federativa à qual pertença o parlamento na matéria objeto da almejada investigação, devendo o requerimento de instauração desta fundamentar objetivamente a existência desse interesse peculiar e sempre de caráter público.”

Vem a notícia, publicada pelo Estadão, em sua edição de 14 de abril do corrente ano, de que “em sessão realizada ontem, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) leu o requerimento de criação da CPI da Covid, cumprindo a ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso. Na guerra política, o presidente Jair Bolsonaro foi derrotado na estratégia de impedir a instalação da comissão, mas conseguiu incluir no escopo da investigação os repasses de verbas federais para Estados e municípios, ampliando o seu alcance.”

Entendo, data vênia de entendimento contrário, que a CPI deve examinar, a conduta do governo federal e, no máximo, os repasses federais, no sentido de se saber a União Federal repassou ou não recursos aos Estados, Distrito Federal e Municípios, mas não, como essas entidades federativas utilizaram tais recursos. Tal ofício caberá às Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais respectivas. Isso porque essas verbas repassadas já se encontrarão incorporadas aos Estados, Distrito Federal e Municípios.

É certo que há entendimento no sentido de que os recursos transferidos pela União, a estados e municípios, para prevenção e combate à pandemia (COVID-19) enquadram-se, até o presente momento, na categoria de transferências constitucionais e legais (“fundo a fundo”).

Caberá à Justiça Comum Estadual e não à Federal a instrução e julgamento de causas que envolvam repasse de verbas da União Federal a esses outros entes federativos e já por eles incorporadas.

Em matérias que envolvem a malversação de recursos do SUS por parte de Estados e Municípios, compete à Justiça Estadual o processo e julgamento do feito, com base nos arestos colacionados. Nesse sentido veja-se: CC 167204 Rel. Min. Gurgel de Faria, CC 168418 Rel. Min. Sérgio Kukina, CC 152715 Rel. Min. Benedito Gonçalves.

Tem-se ainda:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 131.067 -MA (2013/0369538-4) RELATOR: MINISTRO MAURO CAMPBELL MARQUES Data da Publicação 07/02/2014PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA INSTAURADO ENTRE JUÍZOS FEDERAL E ESTADUAL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA AJUIZADA PELO MUNICÍPIO CONTRA EX-PREFEITO. SUPOSTAS IRREGULARIDADES NA UTILIZAÇÃO DE VERBAS FEDERAIS JÁ INCORPORADAS À MUNICIPALIDADE. SÚMULA 209/STJ. PRECEDENTES DO STJ. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.

Por simetria, se não cabe, no âmbito jurisdicional, a competência da Justiça Federal para tais casos, com certeza, não caberá ao Senado a apuração em CPI do uso dessas verbas repassadas aos Estados, Distrito Federal e Municípios e por eles já incorporadas.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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A ADPF 701/MG e aspectos processuais

Nunes Marques aceitou ação por entidade sem legitimidade para ADPF (Fellipe Sampaio/SCO/STF)

Por Rogério Tadeu Romano *

I – O FATO

Trata o presente artigo de aspectos processuais envolvendo Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, promovida pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE contra o art. 6º do Decreto n. 31, de 20/03/2020, do Município de João Monlevade/MG, por entender que, no contexto da implementação de medidas de enfrentamento da pandemia de COVID-19, foi ferido o direito fundamental à liberdade religiosa e o princípio da laicidade estatal, ao ser determinada a suspensão irrestrita das atividades religiosas na cidade, bem como em face “dos DEMAIS DECRETOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS”, os quais teriam imposto violações equivalentes em todo o país.

Disse o relator naquela ocasião:

“Por prudência, ao menos neste momento processual, esta Suprema Corte deve prestigiar a instrumentalidade do processo, na medida em que o objeto desta ação diz com a proteção da liberdade de culto e religião, garantia constitucional. Além disso, é certo que, no Agravo Regimental no ADPF 696, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 30/11/2020, o Tribunal, ainda que implicitamente, aceitou a legitimidade da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia – ABJD. Assim, na existência de aparente divergência jurisprudencial, deve-se prestigiar a concreção do Acesso à Justiça, conforme art. 5º, XXXV, Constituição Federal: “(…) a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

II – A ADPF

Cabe lembrar que a arguição de preceito fundamental é remédio constitucional subsidiário que só deve ser ajuizado à falta de remédio inserido no direito processual comum. É instrumento próprio do processo constitucional na defesa de preceitos fundamentais.

Pode-se entender que a arguição de descumprimento de preceito fundamental brasileira, tal como posta no texto constitucional, tem raízes na Verfassungsbeschwerd, do direito alemão, que funciona como meio de queixa jurisdicional perante o Bundesverfassungericht, almejando a tutela de direitos fundamentais e de certas situações subjetivas lesadas por um ato da autoridade pública.

A discussão que trago à colação diz respeito ao que o artigo 1º da Lei 9.882/89 chama de ato do poder público.

Disse o ministro Alexandre de Moraes que deve-se ver os fundamentos e objetivos fundamentais da República de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais.

Na linha de Klaus Schlaich, Alexandre de Moraes observa que devem ser admitidas arguições de descumprimento de preceitos fundamentais contra atos abusivos do Executivo, Legislativo e Judiciário, desde que esgotadas as vias judiciais ordinárias, em face de seu caráter subsidiário.

Conforme entendimento iterativo do STF, meio eficaz de sanar a lesão é aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata, devendo o Tribunal sempre examinar eventual cabimento das demais ações de controle concentrado no contexto da ordem constitucional global.

O ministro Gilmar Ferreira Mendes (Jurisdição constitucional) anotou que: “A primeira vista, poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer outro meio eficaz para afastar a eventual lesão poder-se-ia manifestar, de forma útil, a arguição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no direito alemão e no direito espanhol para, respectivamente, o recurso constitucional e o recurso de amparo, acabaria para retirar desse instituto qualquer significado prático.

Observou o ministro Alexandre de Moraes: “Note-se que, em face do art. 4º, caput, e § 1º da Lei nº 9.882/99 que autoriza a não admissão de arguição de preceito fundamental quando não for o caso ou quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade, foi concedida certa discricionariedade ao STF, na escolha das arguições que deverão ser processadas e julgadas, podendo, em face seu caráter subsidiário, deixar de conhece-la quando concluir pela inexistência de relevante interesse público, sob pena de tornar-se uma nova instância recursal para todos os julgados dos tribunais superiores.

Anotou ainda o ministro Gilmar Mendes (obra citada) que “dessa forma, entende-se que o STF poderá exercer um juízo de admissibilidade discricionário para a utilização desse importantíssimo instrumento de efetividade dos princípios e direitos fundamentais, levando em conta o interesse público e a ausência de outros mecanismos jurisdicionais efetivos.”

Para tanto, afirmou o ministro Gilmar Mendes que a ADPF “é típico instrumento do modelo concentrado de controle de constitucionalidade (Arguição de descumprimento de preceito fundamental: comentários à Lei 9.882, de 3.12.1999. 2. ed. São Paulo: Saraiva,2011. p. 170).

A legislação, no que tange à modalidade direta de ADPF, foi enfática ao prever, em seu art. 1º, que caberá ADPF em face de ato do Poder Público. Note-se, aqui, a extensão desse termo, que não se circunscreve apenas aos atos normativos do Poder Público. Portanto, e como primeira conclusão, a ADPF poderá servir para impugnar atos não normativos, como os atos administrativos e os atos concretos, desde que emanados do Poder Público. Trata-se, já aqui, de atos não impugnáveis por via da ação direta de inconstitucionalidade Como se sabe, a arguição de descumprimento de preceito fundamental somente poderá ser utilizada, se se demonstrar que, por parte do interessado, houve o prévio exaurimento de outros mecanismos processuais, previstos em nosso ordenamento positivo, capazes de fazer cessar a situação de suposta lesividade ou de alegada potencialidade danosa resultante dos atos estatais questionados. Essa a conclusão de André Ramos (Repensando a ADPF no complexo modelo brasileiro de controle da constitucionalidade. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade. Salvador: JusPodivm, 2007. p. 57-72)

Daí a prudência com que o Supremo Tribunal Federal deve interpretar a regra inscrita no art. 4º, §1º, da Lei nº 9.882/99, em ordem a permitir que a utilização de referida ação constitucional possa efetivamente prevenir ou reparar lesão a preceito fundamental causada por ato do Poder Público. Não é por outra razão que esta Suprema Corte vem entendendo que a invocação do princípio da subsidiariedade, para não conflitar com o caráter objetivo de que se reveste a arguição de descumprimento de preceito fundamental, supõe a impossibilidade de utilização, em cada caso, dos demais instrumentos de controle normativo abstrato.

Ressalte-se, contudo, que a mera possibilidade de utilização de outros meios processuais não basta, só por si, para justificar a invocação do princípio da subsidiariedade para o ajuizamento da ADPF, pois, para que esse postulado possa incidir, revela-se essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se capazes de neutralizar, de maneira eficaz, a situação de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento desse writ constitucional (STF AgR-ADPF 17). A existência de processos ordinários e recursos extraordinários também não deve excluir, “a priori”, a utilização da ADPF, em virtude da feição marcadamente objetiva desta ação (STF ADPF 33).

O ministro Roberto Barroso disse que “o fato de existir ação subjetiva ou possibilidade recursal não basta para descaracterizar a admissibilidade da ADPF – já que a questão realmente importante será a capacidade do meio disponível sanar ou evitar a lesividade ao preceito fundamental. Por isso mesmo, se as ações subjetivas forem suficientes para esse fim, não caberá a ADPF” (O controle de constitucionalidade n direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 323).

 A atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem atribuído ao princípio da subsidiariedade esse específico significado (ADPF 390-AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 8 ago. 2017; ADPF 266-AgR, Rel.Min. Edson Fachin, DJe de 23 maio 2017; ADPF 237-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 30 out. 2014, entre outros julgados), em que pese a orientação geral de que a subsidiariedade há de ser aferida em face da ordem constitucional global e tendo por consideração os meios aptos a solver a controvérsia de forma ampla geral e imediata (ADPF 33/PA, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 27out. 2006).

O Ministro Gilmar Mendes (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, São Paulo, ed. Saraiva, 2009, 1ª edição, 2ª tiragem) dá exemplos de hipóteses de objeto e de parâmetros de controle:

a) direito pré-constitucional;

b)  lei pré-constitucional e alteração de regra constitucional de competência legislativa (incompetência legislativa superveniente);

c) O controle direto da constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição Federal;

d) Pedido de declaração de constitucionalidade (ação declaratória) do direito estadual ou municipal e arguição de descumprimento;

e) A lesão a preceito decorrente de mera interpretação judicial;

f) Contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial sem base legal (ou fundada em falsa base legal);

g) Omissão legislativa e controle da constitucionalidade no processo de controle abstrato de normas e na arguição de descumprimento de preceito fundamental(ADPF – 45, relator Ministro Celso de Melo, DJ de 4 de maio de 2004).

h) Norma revogada(ADPF 33, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgada em 7 de dezembro de 2005)

i)  Medida Provisória rejeitada e relações jurídicas constituídas durante a sua vigência (ADPF 84 – AgRg, DJ de 7 de março de 2006).

j)  O controle do ato regulamentar.

III – O ARTIGO 103, IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Para ajuizá-la é mister ter legitimidade para tal.

Fala-se com relação ao direito de propositura das confederações sindicais e das entidades de classe de âmbito nacional.

O conceito de entidade de classe de âmbito nacional abarca um grupo amplo e diferenciado de associações que não podem ser distinguidos de maneira simples.

Em decisão de 5 de abril de 1989 tentou o STF precisar o conceito de entidade de classe, ao explicitar que é apenas a associação de pessoas que em essência representa o interesse comum de terminada categoria, como se lê da ADIn 79, relator min. Celso de Mello, DJ de 10 de setembro de 1989. Ali se disse: “não se pode considerar entidade de classe a sociedade formada meramente por pessoas físicas ou jurídicas que firmem sua assinatura em lista de adesão ou qualquer outro documento idôneo(….), ausente particularidade ou condição, objetiva ou subjetiva, que distingam sócios de não-associados”, como se lê ainda da ADIn 52, relator ministro Célio Borja, Dj de 19 de setembro de 1990, pág. 9.721.

Sendo assim conforme aquela já mencionada ADIn 79, relator ministro Celso de Mello, DJ de 10 de setembro de 1989, a ideia de um interesse essencial de diferentes categorias fornece base para a distinção entre a organização de classe, nos termos do artigo 103, IX, da Constituição, e outras Associações ou Organizações Sociais. Dessa forma, deixou claro o Supremo Tribunal Federal que a Constituição decidiu por uma legitimação limitada, não permitindo que se convertesse o direito de propositura dessas, organizações de classe em autêntica ação popular.

Por sua vez, em orientação firmada na ADIn 108, relator ministro Celso de Mello, DJ de 5 de junho de 1992, pág. 8.426, entendeu-se que não configura entidade de classe de âmbito nacional, para os efeitos do artigo 103, IX, organização formada por associados pertencentes a categorias diversas. Assim “não se configuram como entidades de classe aquelas instituições que são integradas por membros vinculados a extratos sociais, profissionais ou econômicos diversificados, cujos objetivos, individualmente considerados, revelam-se contrastantes.

Afirmou-se, na ADIn 61, relator ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 28 de setembro de 1990, pág. 10.222, que “não constitui entidade de classe, para legitimar-se à ação direta de inconstitucionalidade(CF, artigo 103, IX), associação civil, voltada à finalidade altruísta de promoção a defesa de aspirações cívicas de toda a cidadania”.

Quanto ao caráter nacional da entidade, enfatiza-se que não basta simples declaração formal ou manifestação de intenção constante de seus atos constitutivos. Faz-se mister que, além de uma atuação transregional, tenha a entidade membros em pelo menos nove Estados da Federação, número que resulta de aplicação analógica da Lei Orgânica dos Partidos Políticos, como se ê da ADIn 386, relator ministro Sydney Sanches, DJ de 28 de junho de 1991, pág. 8.904 e ainda ADIn 108, relator ministro Celso de Mello, DJ de 5 de junho de 1992, pág. 8.427.

Em sendo assim, o Supremo Tribunal Federal recusou legitimidade para instauração de ações de controle concentrado a entidades constituídas a partir de elementos associativos pertinentes a determinados valores, práticas ou atividades de interesse social, tais como cidadania, moralidade, desporto e prática religiosa”, escreveu Moraes ao rejeitar o recurso da Anajure.

Menciona-se ainda que segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, há de se exigir que o objeto da ação de inconstitucionalidade guarde relação de pertinência com a atividade de representação da confederação ou da entidade de classe de âmbito nacional.

Pois bem em uma manifestação sobre a temática da abertura dos tempos em razão do princípio da liberdade religiosa, pontuou na manifestação, que há o entendimento no STF de que uma entidade de classe, para fins de legitimidade para a instauração de ação de inconstitucionalidade, deve ser composta por categoria homogênea. Além disso, a associação não comprovou atuação no âmbito nacional, sendo que é necessário que uma associação comprove ter membros ou associações em ao menos nove estados para ter caráter nacional. A AGU ainda traz que recentemente o próprio Supremo Tribunal Federal, na figura do ministro Alexandre de Moraes, entendeu que a associação não possuía legitimidade em uma outra ADPF, em fevereiro deste ano, no julgamento do Agravo Regimental na ADPF 703/BA, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 17/02/2021.

Ali foi dito:

“1. A jurisprudência do STF exige, para a caracterização da legitimidade ativa das entidades de classe e confederações sindicais nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, a representatividade de categoria empresarial ou profissional.2. Sob esse enfoque, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos –ANAJURE carece de legitimidade para a propositura da presente arguição, na medida em que congrega associados vinculados por convicções e práticas intelectuais e religiosas. Precedentes.3. O cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental será viável desde que haja a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais, ou a verificação, ab initio, de sua inutilidade para a preservação do preceito. Precedentes desta CORTE.4. A possibilidade de impugnação de ato normativo municipal perante o Tribunal de Justiça local, em sede concentrada, tendo-se por parâmetro de controle dispositivo da Constituição estadual, ou mesmo da Constituição Federal, desde que se trate de norma de reprodução obrigatória, caracteriza meio eficaz para sanar a lesividade apontada pela parte, de mesmo alcance e celeridade que a arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, em razão do que se mostra desatendido o requisito da subsidiariedade (art.4º, § 1º, da Lei 9.882/1999). 5. Agravo Regimental a que se nega provimento.”

Observo que o Supremo Tribunal Federal já recusou legitimidade para instauração de ações de controle concentrado a entidades constituídas a partir de elementos associativos pertinentes a determinados valores, práticas ou atividades de interesse social, tais como cidadania, moralidade, desporto e prática religiosa. Nesse sentido, diversos precedentes: ADPF 406 AgR, Pleno, relatora ministra Rosa Weber, DJe de 7/2/2017; ADI 4.770 AgR, Pleno, Relator ministro Teori Zavascki, DJe de 25/2/2015; e decisões monocráticas na ADI 5666, ministro Celso de Mello, DJe de6/4/2017; ADPF 278, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 9/2/2015; e ADI 4.892, Rel. Min. Gilmar Mendes,, DJe de 21/8/2013.

Tem-se ainda:

“O Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil – CIMEB –, a despeito de demonstrar formalmente em seu estatuto o caráter nacional da entidade, não se afigura como categoria profissional ou econômica, razão pela qual não possui legitimidade ativa para a propositura da ação direta deinconstitucionalidade.3. Nego provimento ao agravo regimental. ́(ADI 4294-AgR, Rel. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 01/07/2016, DJe de 5/9/2016)”.

Dessa maneira, constata-se que a requerente não detém legitimidade para o ajuizamento da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, a qual não deve ser conhecida”, ressalta, dizendo ainda que uma ADPF não é a via mais adequada para análise da suposta inconstitucionalidade dos decretos estaduais e municipais, visto que não há na Constituição Federal uma referência a medidas restritivas para proteção da saúde pública.

Não teria, pois, a entidade referenciada legitimidade para ajuizamento do remédio constitucional suscitado e ainda faltaria a ela interesse de agir, pois exige-se a comprovação da observância ao princípio da subsidiariedade.

IV – A INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA

Ademais, o cabimento da ADPF será viável desde que haja a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais ou a verificação, ab initio, de sua inutilidade para a preservação do preceito (ADPF186/DF, relator ministro Ricardo Lewandowski,  DJe de20/10/2014).

Trago entendimento do ministro Celso de Mello:

da “A possibilidade de instauração, no âmbito do Estado-membro, de processo objetivo de fiscalização normativa abstrata de leis municipais contestadas em face da Constituição Estadual (CF, art. 125, § 2º) torna inadmissível, por efeito da incidência do princípio da subsidiariedade (Lei 9.882/99, art. 4º,§ 1º), o acesso imediato à arguição de descumprimento de preceito fundamental. É que, nesse processo de controle abstrato de normas locais, permite-se ao Tribunal de Justiça estadual a concessão, até mesmo in limine, de provimento cautelar neutralizador da suposta lesividade do diploma legislativo impugnado, a evidenciar a existência, no plano local, de instrumento processual de caráter objetivo apto a sanar, de modo pronto e eficaz, a situação de lesividade, atual ou potencial, alegadamente provocada por leis ou atos normativos editados pelo Município.”(ADPF-MC 100/TO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, decisão monocrática, DJe de 17/12/2008).

Na matéria disse a ministra Rosa Weber:

“Ante o desenvolvido, e considerada a existência de outros meios processuais adequados para, na dimensão em tese, impugnar os atos normativos identificados na inicial, deforma exemplificativa, e solucionar de forma imediata, eficaz e local a controvérsia constitucional apontada, o conhecimento da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental não passa no parâmetro normativo-decisório construído por esse Supremo Tribunal Federal, por meio de seus precedentes judiciais, quanto ao sentido atribuído ao requisito da subsidiariedade”.(ADPF 666/DF, Rel. Min. ROSA WEBER, decisão monocrática, DJe de 16/04/2020).

Entendo que há outros instrumentos processuais hábeis para a discussão da matéria, à luz da exigência do que se traduz o princípio da subsidiariedade.

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A AGU considerou que A Associação de Juristas Evangélicos não tem legitimidade para recorrer a ADPF. A AGU Apontou, vou transcrever: “a) a ilegitimidade ativa da ANAJURE; b) inobservância do princípio da subsidiariedade; c) ausência de indicação dos atos. Tal atuação se dá como curador da norma, papel esse a ser desempenhado pela Advocacia Geral da União nessas ações de controle concentrado. Não poderia, pois, mudar seu posicionamento, talvez em razão de interesses ideológicos. O seu papel se dá no âmbito estritamente jurídico. A AGU serve ao Estado brasileiro e não a governos e a ideologias.

Em sendo assim entendo que o Plenário do STF deve revogar a liminar concedida pelo ministro Kássio Nunes Marques, extinguindo o feito por carência de ação, por ilegitimidade da entidade que a propôs e ainda por inadequação da via eleita, falta de interesse de agir.

Discute-se, por fim, se há prevenção do ministro Nunes Marques, em face da relatoria na ADPF 701/MG, em face de outra ação de descumprimento de preceito fundamental, cujo relator é o ministro Gilmar Mendes. Ora, a prevenção não pode ser exercida a partir de ação extinta sem resolução do mérito, sob pena de causar “efeito devastador e deletério” na tramitação de ações perante o STF. Sendo assim há reunião de todas as ADPF que vierem a ser julgadas sobre o tema(liberdade religiosa x medidas restritivas em prol da saúde), devendo todas elas serem distribuídas para o ministro Gilmar Mendes, prevento para tai julgamentos.

Não há prevenção ou dependência com a ADPF701/MG, de relatoria do ministro Nunes Marques.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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O inquérito da censura

Liberdade de expressão em risco: 20 casos de censura no Brasil

Por General Girão*

Muito se tem falado sobre o Inquérito 4.781 Distrito Federal, instaurado pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, também inapropriadamente chamado de “Inquérito das Fake News”, quando deveria ser alcunhado de “Inquérito da Censura”. Sem dúvida, trata-se de mais um claro episódio de ativismo político-ideológico, por parte de alguns dos integrantes do Pretório Excelso, que coloca em risco a harmonia e a independência entre os poderes.

Embora, pessoalmente, eu não esteja envolvido nesse inquérito, no último 22 de setembro protocolei o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) no 406/2020, tendo por finalidade sustar a Portaria GP no 69, de 14 de março de 2019, que deu origem ao citado inquérito. A Constituição da República Federativa do Brasil outorga ao Congresso Nacional a prerrogativa (e o dever) de sustar atos que exorbitem o poder regulamentar, especialmente em seu artigo 49:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

[…]

V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;

[…]

XI – zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes;

A despeito da referência a ato do Poder Executivo, na realidade a intenção do legislador constitucional revela o dever de sustação de atos que exorbitem o poder regulamentar ou os limites da delegação legislativa. Não é desconhecida a teoria dos atos próprios e dos atos especiais ou anômalos no exercício dos Poderes.

No caso, o Poder Judiciário tem como ato próprio a prestação de jurisdição. Todavia, possui, ainda que excepcionalmente, a possibilidade de administrar sua gestão interna (função executiva lato sensu) e regulamentar procedimentos (função normativa lato sensu).

A interpretação aqui versada não passa imune a comentários da doutrina[1]:

No ordenamento constitucional brasileiro não há espaço para uma Administração que tenha como reitora de seu proceder qualquer outro paradigma para além da lei aprovada pelo Poder Legislativo. A atividade administrativa é sempre e imediatamente sub-legal, subalterna à lei, escrava mesma da lei.

[…]

Atualmente, em função do desenvolvimento do nosso constitucionalismo, a redação dos incisos V e XI do artigo 49 da Constituição mostra-se bastante insuficiente, pois limita a atividade de controle do Congresso Nacional sobre o exercício do poder regulamentar do Executivo. Tal circunstância representa um apequenamento tanto do Legislativo quanto do Executivo, numa grave situação de desbalanceamento entre os poderes que deveriam ser harmônicos entre si.

É preciso, pois, esclarecer que essa lacuna, no caso do Poder Judiciário, deve ser reinterpretada pelo Congresso Nacional, à luz da Carta Magna, uma vez que esta visa ao controle contra a infração no ato de exorbitância ao poder regulamentar, e não tem como elemento principal — ou exclusivo — o Poder Executivo, devendo-se, assim, estender-se ao Poder Judiciário.

Note-se que, no caso da Portaria GP no 69, de 14 de março de 2019 — a qual deu origem ao Inquérito 4.781 Distrito Federal — trata-se de uma clara exorbitância, uma vez que é baseado no art. 43 do Regimento Interno do STF (RISTF), que preconiza que:

Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.

1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.

2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal.

Não há nenhuma infração, nesse caso, que tenha ocorrido na sede ou dependência do Tribunal. Além disso, se o regimento tivesse de fato tamanha extensão, como entende o STF, estaria infringindo qualquer limite do singelo poder de regulamentação, pois não há tal regra primária no Direito Brasileiro.

*É Deputado Federal pelo Rio Grande do Norte.

[1] LUCIANO, Pablo Bezerra; ROCHA, Vanessa Affonso. Congresso pode derrubar “atos normativos” do Judiciário. Revista Consultor Jurídico, 25 de agosto de 2015. https://www.conjur.com.br/2015-ago-25/congresso-poder-derrubar-atos-normativos-judiciario

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Conheçam os tipos de Acessibilidades e Barreiras existentes para as Pessoas com Deficiência

Por Thiago Fernando de Queiroz*

A maior parte das pessoas com deficiência vivem o seu dia-a-dia lutando para vencer as barreiras existentes em nossa sociedade, e, um grupo de pessoas com deficiência além de ter que vencer essas barreiras cotidianamente, lutam pela garantia de acessibilidade.

Mas então, o que são barreiras e acessibilidade? Antes de adentrar a temática, é importante trazer a lume ao que seria uma pessoa com algum tipo de deficiência, e, para expor com clareza essa temática, de acordo com o Artigo 2 da Lei nº 13.146/15:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Assim, as barreiras são ações habituais impeditivas no cotidiano de um ou mais sujeitos, que não pensadas em um contexto igualitário, promove a exclusão das atuações em sociedade. Para prévio entendimento, quando se tem uma ou mais barreiras, significa que não existe acessibilidade, pois, barreira é o oposto de acessibilidade no que abrange a temática da pessoa com deficiência.

Mas enfim, de acordo com o que emana o Artigo 3, inciso I da Lei nº 13.146/15, explana que acessibilidade é a “possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida”.

Resumindo em miúdos, a acessibilidade é quando se oportuniza a igualdade de oportunidades ao que tange o direito de ir e vir, de exprimir suas vontades, bem como nos aspectos urbanísticos, arquitetônicos, em transportes, em comunicação e informação, em sistemas tecnológicos, e o principal, na atitude das pessoas.

Ao compreender o que é acessibilidade, vamos entender as principais barreiras existentes que impedem que as pessoas com deficiência venham ter uma vida autônoma. Novamente citando a Lei nº 13.146/15, seu Artigo 3, Inciso IV vai expor na forma da Lei o que é barreira, e, as alíneas “a” à “f” vai expor os tipos delas:

IV – barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas em:

a) Barreiras Urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo;

b) Barreiras Arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;

c) Barreiras nos Transportes: as existentes nos sistemas e meios de transportes;

d) Barreiras nas Comunicações e na Informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação;

e) Barreiras Atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas;

f) Barreiras Tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias;

Como dito, barreiras são o oposto de acessibilidade, desta forma, quando se elimina as barreiras citadas acima, tema a acessibilidade urbanística, a acessibilidade arquitetônica, a acessibilidade de transporte, a acessibilidade de comunicação, a acessibilidade na informação, a acessibilidade atitudinal e a acessibilidade tecnológica.

Até então não foi citado, mas, existem também a barreira e a acessibilidade metodológica, que é os meios de metodologia utilizados na educação e ao que urge a empregabilidade. Quando há acessibilidade metodológica, é que são trabalhado metodologias inclusivas para garantir a autonomia e o direito a igualdade da pessoa com deficiência, quando não é trabalhado essas metodologias, existe uma barreira metodológica.

Espero que essas informações tenham sido úteis para vocês, que possa ter trazido informações que fomente um ciclo de inclusão e esperança para nossa humanidade. Acredito que devemos tornar nosso mundo um pouquinho melhor, e, podemos fazer isso tornando a vida das pessoas mais acessíveis.

Assim, vamos que vamos na luta pela inclusão, pois, juntos somos mais fortes!

*É pesquisador em Direito e Inclusão de Pessoas com Deficiência

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Liberdade de expressão ou crime de difamação?

Resultado de imagem para difamação

João Francisco Raposo Soares*

Com muita tristeza no coração, eu gostaria de tornar público como forma de aplacar um pouco da dor que vou carregar para o resto da minha vida que a minha ex-esposa, que é sócia da área tributária do escritório X, manteve um caso com o também sócio, casado e com filhos, por 14 anos enquanto esteve comigo. Estou postando aqui como forma de recuperar todos os danos psicológicos causados a mim por conta desse relacionamento tão sujo que afeta a imagem desse escritório tão renomado. (..) Minha ex esposa se vendeu e vendeu e destruiu minha família com um único objetivo de se tornar sócia desse escritório, já que sabia que se não agisse dessa forma não conseguiria tal objetivo. Pena saber que um escritório como esse seja permisso com tais atitudes”.

Essa é uma reprodução livre de um trecho de um post colocado nas redes sociais, que viralizou na última semana de outubro de 2019. O texto foi postado no Facebook por um advogado que supostamente foi traído por sua esposa, também advogada, abalando o meio jurídico e não só a reputação dela, como também a reputação do renomado escritório, por insinuar que supostamente seus sócios são escolhidos pelos motivos errados, e que o escritório é permissivo com tais atitudes. Tal fato retrata bem as situações nas quais empresas sofrem danos à imagem, decorrentes da atuação de seus colaboradores, consumidores e até mesmo empresas concorrentes.

Isso é crime? Que tipo de crime? Uma pessoa jurídica pode ser vítima de crime contra honra? Ela possui honra? Onde começa a liberdade de expressão que todos temos garantida pela Constituição e onde começa o direito de preservação da privacidade e da honra das empresas?

Temos várias notícias hoje de condenações criminais por conta de ofensas na internet. Essas decisões servem de alerta para um delito que se encontra em ascensão na atualidade.

A matéria é de alta complexidade. Com efeito, a legislação prevê o crime calúnia, o crime de injúria e o crime de difamação, os quais são denominados “crimes contra a honra”, previstos nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal. Dos crimes de calúnia e injúria, só pessoa física pode ser vítima. A Calúnia ocorre quando uma pessoa “A” imputa falsamente um fato criminoso a uma pessoa “B”, sabendo que é mentira. A injúria, por sua vez, ocorre quando uma pessoa “A” ofende a honra subjetiva de uma pessoa “B”, por exemplo, chama a pessoa “B” de “imbecil”. Honra subjetiva é o conceito que a própria pessoa tem sobre si.

A pessoa jurídica não tem honra subjetiva, então, por isso ela não pode ser vítima de injúria. De calúnia, teoricamente ela até pode ser vítima, mas somente se a imputação falsa for específica de crime ambiental, já que é o único tipo de crime que a lei prevê que as Pessoas Jurídicas podem praticar.

Já o crime de difamação é diferente, porque ocorre quando uma pessoa “A” imputa a prática de fato que é ofensivo à reputação de uma pessoa “B”, ou seja, que é ofensivo à honra objetiva da pessoa “B”, não importando se aquele fato é verdadeiro ou não.

Assim, a difamação pode ser cometida também contra empresas, já que apesar de não possuírem honra subjetiva, elas têm honra objetiva, ou seja, elas têm um nome a zelar. Além do fato citado no início desse texto, são exemplos corriqueiros de difamação de empresas: dizer que uma determinada empresa trata mal os funcionários; ou que vende produtos não regulamentados; ou que força a justa causa dos funcionários; ou que é permissiva com ilicitudes, assédios ou depravações; e muitas outras situações, que podem manchar gravemente a reputação da empresa, fazendo inclusive com que sua marca possa perder valor de mercado.

Para uma manifestação pública se caracterizar como crime de difamação contra uma empresa, o autor deve ter a intenção de manchar a reputação daquela empresa, e imputar um fato ofensivo à sua reputação, seja verdadeiro ou não.

Atualmente muitas empresas são constantemente ofendidas na internet, por exemplo, quando seus consumidores escrevem comentários em sites como “Facebook” e “Reclame Aqui”, difamando o bom nome dessas empresas. Nesses casos é interessante analisar mais profundamente, porque, por vezes, quando o consumidor recorre à internet para reclamar, a intenção dele não é apenas demonstrar a insatisfação com o produto ou serviço prestado, mas sim manchar a reputação da empresa, ofendendo a honra objetiva do negócio. Nestas hipóteses pode haver de fato o crime de difamação.

Outro tipo de ofensa que muitas empresas têm sofrido na internet ocorre quando seus concorrentes publicam ou divulgam, por qualquer meio, afirmações falsas sobre essas empresas, com o fim de obter vantagem sobre elas. Nesses casos, o crime passa a ser o de concorrência desleal, previsto no artigo 195, I e II, da Lei 9.279/1996.

Qualquer que seja a situação, se o empresário vislumbra que sua empresa pode ter sido vítima de difamação ou de concorrência desleal, é aconselhável que, antes de tomar qualquer atitude, como, por exemplo, registrar ocorrência policial, ou efetivamente decidir propor a ação penal, ele procure um advogado, que poderá avaliar se a conduta é realmente um ilícito penal, um ilícito civil, ou mera fruição da liberdade de expressão, que é um direito de todo cidadão, garantido pela Constituição Federal.

*João Francisco Raposo Soares é advogado, pós graduado em direito penal pela Universidade Mackenzie, com especialização em crimes financeiros pela FGV e curso intensivo de negociação pela Harvard Law School 

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Pessoa em situação de rua na perspectiva do Legislador

Políticas públicas destinadas às pessoas em situação de rua são frágeis (Foto: Gibran Mendes)

Por Audren Azolin*

Basta andar pelas vias das grandes cidades brasileiras para constatar o significativo aumento de pessoas em situação de rua, popularmente chamados de moradores de rua. Especialistas alegam que crises econômicas profundas que se prolongam no tempo é um fator que explica o aumento dessa população. E a tendência no Brasil é de aumentar ainda mais, uma vez que temos 12 milhões de desempregados e 54,8 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza — isto é, um quarto da população brasileira.

As políticas públicas destinadas às pessoas em situação de rua são frágeis. O Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) não conta com pesquisas periódicas que classifiquem e contabilizem essa população. Os dados referentes, além de não serem levantados constantemente, carecem de padronização metodológica. Na verdade, há enormes problemas quanto ao diagnóstico. Assim, qualquer política pública nesse quesito opera às cegas.

Mesmos com falhas graves de diagnóstico relativos às pessoas em situação de rua, na Câmara dos Deputados foram apresentadas na 55ª Legislatura (2015-2018) 23 proposições legislativas que se referem à temática. É a partir dessa produção legislativa que identificamos os problemas que afligem a pessoa em situação de rua, na perspectiva do legislador. Em outras palavras, o que o Legislativo entende como grandes problemas para essa população.

A metodologia que utilizamos consistiu em analisar qualitativamente cada proposição legislativa referente a essa população, buscando identificar os problemas que a proposição visava resolver. Na ótica do legislador, considerando toda a 55ª Legislatura, o maior problema referente à pessoa em situação de rua foi o relacionado à assistência social (39,13%). O segundo maior problema foi saúde pública (21,74%). E em terceiro lugar ficou a segurança pública (17,39%).

Os problemas relacionados a gestão (4,35%), cultura (4,35%), educação (4,35%) e habitação (4,35%) ficaram na última colocação. O que chama atenção é que a expressão pessoa em situação de rua refere-se às pessoas que não têm moradia e mesmo assim ‘habitação’ não foi entendida enquanto um dos maiores problemas. Contudo, temos que considerar a possibilidade de que não ter onde morar seja efeito (e não causa) de outros fatores, como emprego e falta de empregabilidade, que não figuraram enquanto problemas nas proposições legislativas analisadas.

Outra análise que realizamos considerou as proposições legislativas por problema por ano da 55ª Legislatura. As proposições legislativas que figuraram enquanto discussão de assistência social concentraram-se nos anos de 2016 e 2017, cada ano com 33,33%, totalizando 66,66%. Enquanto problema de saúde pública, o ano de 2015 concentrou 80% das proposições. Por sua vez, o desafio enquanto segurança pública concentrou-se no ano de 2016, na ordem de 50%. Já habitação enquanto problema para pessoa em situação de rua figurou apenas em uma proposição legislativa no ano de 2015.

Todas as proposições legislativas protocoladas na 55ª Legislatura que trataram de questões afetam à pessoa em situação de rua foram arquivadas por decurso de prazo, conforme reza o artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Todas as proposições legislativas em tramitação são arquivadas quando finda a legislatura.

Daquelas proposições referentes à pessoa em situação de rua protocoladas na Legislatura anterior, 82,61% foram desarquivadas neste ano (2019) e estão ainda em tramitação (verificadas no dia 16 de novembro de 2019). Assim, das 23 proposições legislativas protocoladas na Legislatura anterior, 19 foram desarquivadas. Destas, 7 ainda estão aguardando parecer dos relatores, isto é, 36,84%.

Em suma, nenhuma das proposições legislativas protocoladas na 55ª Legislatura que se relacionam à pessoa em situação de rua foi transformada em norma jurídica (lei).

A política pública relativa ao tema não encontra dificuldades apenas quanto ao diagnóstico, mas também quanto à formulação. Vejamos o exemplo do Projeto de Lei 2663/2015 que propôs a permissão para que concessionárias de energia elétrica, água, telefone e TV por assinatura, criem um campo nas faturas de cobranças para que os usuários preenchessem o valor de doações voluntárias.

Os beneficiários das doações seriam asilos, creches, orfanatos, bem como entidades beneficentes de assistência social e de filantropia. É difícil aceitar que o relator desse Projeto de Lei na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público tenha dado parecer contrário. No entanto, o parecer apresentou um argumento bastante eloquente: a impossibilidade de fiscalizar se realmente as doações chegariam ao seu destino.

Analisando a tramitação do Projeto de Lei 2663/2015 podemos perceber duas questões importantes. A primeira é que nem sempre uma lei bem-intencionada será eficaz. Neste sentido, o argumento no parecer para rejeitar o Projeto de Lei é bastante convincente. A segunda questão foi a falta de emendas ao Projeto de Lei para melhorar a redação inicial, visando sanar a deficiência apresentada no parecer. O Projeto de Lei 2663/2015 não recebeu nenhuma emenda e se encontra, até o momento, arquivado por decurso de prazo.

Abaixo a tabela sumarizando o ranking de problemas na perspectiva do Legislador.

Assim, para o legislador, tendo como exemplo o Projeto de Lei 2663/2015, proposições legislativas são inviabilizadas enquanto políticas públicas por motivos de implementação, fiscalização e avaliação. E para ele essas inviabilidades alcançam também a pessoa em situação de rua, agravada pela falta de diagnósticos precisos e metodologias padronizadas.

Inviabilidades de outras naturezas assolam as políticas públicas relativas à pessoa em situação de rua, em particular, e às demais políticas públicas: inviabilidade jurídica, política, técnica, orçamentária e de gestão.

*É professora do curso de Bacharelado em Ciência Política do Centro Universitário Internacional Uninter.

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Atuação ilegal do Coaf no caso Flávio Bolsonaro e o vazamento de dados sigilosos

Por Marcelo Aith*

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão de deliberação coletiva com jurisdição no território nacional, criado pela Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, integrante da estrutura do Ministério da Justiça e Segurança Pública, tem por finalidade disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas na Lei de Lavagem de Capitais.

O Decreto nº 9.663, de 1º de janeiro de 2019, é a norma regulamentadora do referido órgão, tem por escopo estabelecer a organização e competência do Coaf, inclusive as vedações aos seus integrantes. Dentre as vedações, cumpre aqui destacar, por oportuno, a prevista no inciso IV do artigo 7º do referido estatuto, que impede, peremptoriamente, os agentes público de fornecerem ou divulgarem as informações de caráter sigiloso, conhecidas ou obtidas em decorrência do exercício de suas funções, inclusive para os seus órgãos de origem.

Infelizmente, mais uma norma foi descumprida pelos agentes públicos que deveriam preservá-la. Conforme se depreende das informações trazidas pelos principais meio de comunicação do país, algum servidor público vinculado ao Coaf forneceu informações sigilosas a respeito do senador eleito Flávio Bolsonaro e de seu ex-assessor Fabrício Queiroz.

Diante deste vazamento de informação sigilosa, a presidência do Coaf e o Ministro da Justiça e Segurança Pública têm o dever de determinar a instauração de sindicância no órgão para apurar a irregularidade praticada e impor severa punição ao infrator, sob pena de incorrerem em crime de prevaricação.

Mas será que Sergio Moro tem condições para determinar a punição pelo vazamento? Como é de conhecimento notório o ex-juiz, no exercício da judicatura na 13ª Vara Criminal Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, deixou vazar gravação ilegal feita de conversa estabelecida entre a então Presidente da República Dilma Rousseff e o ex-Presidente Lula.

Em que pese Flávio Bolsonaro ocupe um cargo eletivo, tal fato não retira a sigilosidade de suas operações financeiras. Dessa forma, jamais poderiam ser objeto de vazamento para a imprensa. Por obvio que os jornalistas políticos, de todas as esferas da comunicação, tem por ofício apurar os fatos e divulgá-los a seu público, não podendo ser responsabilizados pelas ilegalidades praticadas pelos “fornecedores” das informações sigilosas.

A ilegalidade da divulgação, na espécie, afigura-se ainda mais grave pelo fato de sequer Flávio Bolsonaro ser investigado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, segundo informações divulgadas pelo Procurador Geral de Justiça.

A divulgação relativa ao ex-assessor de Flávio Bolsonaro também é absolutamente ilegal, mesmo sendo alvo de investigação pelo órgão ministerial, na medida em que o Estatuto do Coaf, categoricamente, veda a divulgação de informações sigilosas.

Por outro lado, ingressando em relação a legalidade das informações fornecidas diretamente pelo Coaf ao Ministério Público do Rio de Janeiro, embora o Supremo Tribunal Federal, em sua 1ª Turma, tenha se posicionado pela possibilidade, entendo ser flagrantemente ilegal. Explico.

O Superior Tribunal de Justiça, em recentíssima decisão proferida pela Terceira Seção, na esteira também de orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento o Habeas Corpus n. 125.218/RS, consignou que “não se admitem que os dados sigilosos obtidos diretamente pela Secretaria da Receita Federal do Brasil sejam por ela repassados ao Ministério Público ou à autoridade policial, para uso em ação penal, pois não precedida de autorização judicial a sua obtenção, o que viola o princípio constitucional da reserva de jurisdição” (Recurso em Habeas Corpus nº 61.367 – RJ,

Relatoria do Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA).

Extrai-se do mesmo julgado o seguinte excerto que é, mutatis mutantis, fundamental para concluir quanto a nulidade do fornecimento direto das informações obtidas pelo Coaf ao órgão de investigação, que é o Ministério Público do RJ:

“Dessa forma, verificando-se que a materialidade do crime tributário tem por base a utilização, para fins penais, de dados sigilosos obtidos diretamente pela Receita Federal, sem a imprescindível autorização judicial prévia, tem-se a nulidade da prova que embasa a acusação. Assim, a nulidade da prova inicial, obtida por meio da quebra do sigilo bancário sem autorização judicial, a qual deu ensejo à denúncia, acaba por contaminar a toda ação penal”.

A decisão da 3ª Seção do STJ guarda perfeita consonância com a hipótese envolvendo Flávio Bolsonaro e Fabricio Queiroz, uma vez que, tal como a Receita Federal é o órgão verificador das irregularidades fiscais para constatação de eventual ilícito criminal contra ordem tributária, o Coaf é órgão colegiado afeito as apurações de supostas operações financeiras atípicas que possam ensejar a imputação de crime de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98).

Dessa forma, caso o Coaf tenha fornecido diretamente ao Ministério Público as informações sigilosas, sem que o Poder Judiciário tenha autorizado, a nulidade das “provas” (elementos informativos) é uma medida que se impõe. Os dados bancários e fiscais, para efeitos criminais, são protegidos pela regra constitucional da “reserva de jurisdição”, o que condiciona a quebra do sigilo a decisão de um magistrado. Por ser uma regra constitucional não comporta ponderações, ou seja, deve ser aplicada, independentemente, de quem seja o destinatário desta medida invasiva. Cabe aqui trazer a lição do Professor e Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Guilherme de Souza Nucci que estabelece, com tintas fortes, que os “cadastros sigilosos, estejam onde estiverem, com qualquer conteúdo, somente podem ser acessados por ordem judicial”.

Vivemos em um Estado de Direito em que o respeito as regras e princípios constitucionais se impõe a todos, indistintamente os órgãos persecutórios (Polícia e Ministério Público) não podem ir além das constantes da Constituição e das leis que regem a matéria, pois do contrário caminharemos para um Estado Policialesco, para o qual não importam os meios, mas apenas os fins.

Por fim, o cidadão brasileiro não pode condescender com vazamentos indevidos, nem com quebras de sigilos sem autorização judicial, sob pena de um dia serem alvo dessa sanha desmesurada de punir que assola esse país, fruto do excesso de protagonismo do Ministério Público, que se arvora no direito de atropelar a Constituição e as leis, sem sopesar as consequências nefastas e irreversíveis que podem causar as pessoas.

*Marcelo Aith é especialista em Direito Criminal e Direito Público