Categorias
Artigo

Lei de abuso de autoridade é ato de abuso de poder parlamentar

Dr. Roberto Livianu*

É importante a elaboração de uma nova lei 54 anos depois do Decreto-Lei 5898. Sempre defendi punições rigorosas para Promotores de Justiça que abusem do poder. Assim como para Juízes e Policiais. Mas isto deve valer igualmente para Senadores e Deputados, entre outros, não atingidos concretamente por esta nova lei de abuso de autoridade. A lei malfeita aprovada não visa, infelizmente, atender ao bem comum.

Vale lembrar que na década de noventa, Juízes e membros do Ministério Público travaram na Itália intensa e profunda luta anticorrupção, que levou à prisão ineditamente poderosos nos campos político e econômico, desafiando-se a impunidade.

Na sequência, o corpo político atacado reagiu fortemente e aprovou diversas leis que enfraqueceram e amesquinharam as Instituições do sistema de justiça, contando com a aliada letargia do povo, que não se mobilizou e não reagiu ao letal contra-ataque. Hoje, a Itália ostenta um dos piores níveis de combate à corrupção do continente europeu, tendo ido lamentavelmente ladeira abaixo todas as conquistas bravamente alcançadas pela Mãos Limpas.

Passadas quase três décadas do roteiro italiano, após sete anos do caso mensalão e cinco e meio do início da Lava Jato, forças retrógradas da república brasileira vem cuidando de repetir o filme, aprovando o projeto de lei 7596/17 (originalmente PLS 280/16 – autoria Renan Calheiros), a chamada nova lei de abuso de autoridade é verdadeiro ato de abuso de poder parlamentar.

Visa retaliar, tentando ameaçar e amedrontar membros do MP, Judiciário e da Polícia, o que se evidencia pelas circunstâncias que envolvem a tramitação meteórica e aprovação, nas sombras deprimentes e constrangedoras de uma votação simbólica na Câmara, sem a identificação dos votos dos Deputados, apesar de várias mãos erguidas pedindo a votação nominal, imperando a opacidade, com indisfarçável pretensão de construção de instrumento legal de auto-blindagem.

A mesma opacidade que tinha prevalecido na ALERJ em 2017, quando o Deputado que presidia a sessão impediu que cidadãos ingressassem nas galerias para acompanhar os trabalhos, mesmo munidos de ordem judicial garantidora deste direito elementar, como se o prédio não fosse público – condutas não prevista como crime de abuso de autoridade na abusiva lei aprovada.

Ao mesmo tempo, fala-se em reavivar projeto de Lei que pretende proibir delações de presos, ao arrepio do princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, assim como se fala em amordaçar auditores da Receita Federal (PL 6064/16), cerceando sua autonomia funcional, instituindo a desigualdade de todos perante a lei.

De minha parte, continuo exercendo minhas atribuições exatamente da mesma maneira que o fazia antes da aprovação deste famigerado diploma legal. Lamentavelmente, já se noticia amplamente, no entanto, que muitos magistrados estão determinando a soltura de réus, com menções à nova lei de abuso de autoridade, que não vigora — somente entrará em vigor em janeiro de 2020, 120 dias depois de sua publicação.

O Presidente da República vetou 36 pontos, visando imunizar principalmente a Polícia, mas o Congresso derrubou 18 deles, e, segundo noticiado pelo Estadão, com o aval do próprio Presidente da República ao Presidente do Senado.

Mesmo vetando diversos pontos, a Presidência sancionou diversos dispositivos descabidos, como o artigo 27, que criminaliza a instauração de procedimentos investigatórios, o artigo 28, sobre divulgação de segredos (conduta já punida pelo artigo 325 do Código Penal), o artigo 31, que criminaliza “excessiva duração de investigações” – quem definirá isto?, o artigo 36, que constrange o juiz que determina bloqueio de bens em excesso – o que é excesso? Assim como o 37, que pune pela demora no exame de processos – e se o caso é complexo? Qual o tempo aceitável?

Dentre os vetos derrubados pelo Congresso estão os artigos 9, 30, 38 e 43. Estes e muitos dos mencionados acima são tipos penais abertos e subjetivos, dando margem a abusos no manejo das próprias normas. O artigo 9 prevê penas de 1 a 4 anos para juízes que determinem privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais. Isto nada mais é que criminalização da atividade interpretativa da lei, eliminada dos ordenamentos jurídicos ocidentais democráticos após a Revolução Francesa, no século XVIII.

No artigo 30, novamente se criminaliza a hermenêutica, quando se fala em punir quando faltar justa causa, cujo conceito é totalmente técnico e 100% sujeito a interpretação. Ou seja, o Promotor oferece denúncia criminal entendendo haver lastro probatório, o juiz a recebe, considerando a acusação razoável e, se o Tribunal de Justiça conceder liminar em habeas corpus, interpretando diferentemente a lei, trancando a ação penal, o Promotor e o Juiz viram criminosos, sujeitos à mesma pena de um ladrão que furta.

No rumoroso caso em que o Procurador de Justiça Fernando Capez foi denunciado criminalmente pelo Procurador-Geral de Justiça, sendo a denúncia recebida pela maioria dos Desembargadores do Órgão Especial do TJSP, com confirmação de justa causa por Ministros do STJ e após trancada no STF por falta de justa causa, em virtude de diferente interpretação da lei, se esta teratológica lei vigorasse à época, o Procurador-Geral de Justiça denunciante, os Desembargadores do TJSP que receberam a denúncia e os Ministros do STJ que mantiveram a ação penal poderiam ser, em tese, de maneira absurda e descabida, processados criminalmente por violação ao artigo 30, até porque a aferição do dolo é matéria de mérito para a sentença.

artigo 38, de forma anacrônica, institui a mordaça, mesmo diante do princípio constitucional da publicidade e da vigência da lei de acesso à informação pública. Se um Promotor e um Delegado, durante um inquérito policial não sigiloso em andamento, derem entrevista coletiva para, por exemplo, prestar contas à sociedade a respeito de indiciamento realizado, poderão ser punidos com prisão de 6 meses a 2 anos.

No artigo 43, criminalizam-se os atos de violação a prerrogativas de advogados, que merecem respeito e admiração pela importância social de seu trabalho. Mas, por que somente em relação a advogados? E os médicos e jornalistas, por exemplo? Em que país do mundo, violar estas prerrogativas constitui crime?

Fácil perceber que muitas destas normas ferem frontalmente o disposto no artigo 93, IX da Constituição (livre convencimento do Juiz), consagrado pelo STF, bem como a independência funcional destes (art. 95 e 127 da CF) assim como os Princípios de Conduta Judicial de Bangalore (2008), onde se enunciou: “A independência judicial é um pré-requisito do estado de Direito e uma garantia fundamental de um julgamento justo. Um juiz, consequentemente, deverá apoiar e ser o exemplo da independência judicial tanto no seu aspecto individual quanto no aspecto institucional.”

O caminho seria a elaboração de um novo texto – tecnicamente cuidadoso, equilibrado e isonômico, incluindo todos debatido de forma democrática e cuidadosa com a sociedade. O caminho que nos resta é a proclamação da inconstitucionalidade de todos os dispositivos afrontosos à Carta Magna. Não nos amedrontemos diante deste monstrengo jurídico, que cairá! Cumpramos a Constituição e nossos deveres, com ética, retidão e lealdade!

*É promotor de Justiça São Paulo, doutor em direito pela USP, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC) e diretor do Ministério Público Democrático (MPD).

 

 

Categorias
Artigo

Projeto de lei: abuso de autoridade

 

Por João Paulo Costa*

O polêmico e discutido Projeto de Lei de Abuso de Autoridade, apresentado ainda no ano de 2016, onde tramitou pelas diversas Comissões do Senado (PLS 85/2017) e na Câmara dos Deputados (PL 7.596/2017), posteriormente aprovado em ambas as casas, e agora aguarda a sanção Presidencial, ficando conhecido popularmente como a referência acima citada, pretende atualizar a Lei original de abuso de autoridade, que data o ano de 1965.

O Presidente da República declara avaliar possíveis vetos ao projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional que endurece a punição a agente públicos por abuso de autoridade. E para fechar a informação: a Lei só entra em vigor caso sancionada pelo chefe do executivo, seja em sua integralidade ou com vetos parciais, pontuais.

As medidas previstas na Lei de Abuso de Autoridade se aplicam aos servidores civis e militares e integrantes do Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público e tribunais de contas. A depender do caso, estão previstas as seguintes punições: prestação de serviço, multas, prisão (entre 3 meses a 4 anos de cadeia), afastamento temporário ou perda do cargo.

Entre os pontos polêmicos e que causam discussão entra diversas classes representativas, está o item que pune autoridades que iniciem investigação sem justa causa fundamentada ou que usem algemas de forma inadequada, ou seja, em pessoas que não representem alguma ameaça. Outro trecho polêmico é o que prevê detenção de 6 meses a 2 anos para quem fotografar ou filmar preso, investigado ou vítima sem seu consentimento com o intuito de constranger a pessoa. Para os críticos dessa medida, o texto abre brecha para criminalizar o agente público que permitir que um preso seja fotografado antes mesmo da culpa formada, ainda como apenas suspeito.

A pergunta sempre surge: quem é que não conhece um caso de abuso de autoridade, de carteirada, de exorbitância de poder e funções, de excesso autoritário? A verdade é que somos, por excelência, o país dos abusos de autoridade. Neste país de bacharéis, em que qualquer engravatado preza ser chamado de doutor, o abuso vem de berço, herança colonial, senhorial, escravocrata e se cristaliza com as disparidades sociais e de renda, já que somos um dos países mais desiguais e injustos do planeta. E isso reflete sim no cotidiano da vida do brasileiro, na ação da Justiça, na atividade policial e etc.

E a análise que podemos fazer de uma dura realidade , e que vê nesse projeto de lei a esperança de mudanças, pois a população comum, pobre, será a principal beneficiária de uma eventual aprovação, lembrando casos recentes como o da menina presa em cela com homens no Pará e que sofreu estupro coletivo e de uma policial processada por prender um magistrado embriagado durante blitz no Rio de Janeiro, dentre outros casos espalhados pelo País.

Para Elias Mattar Assad, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim): “É barbárie o que se pratica hoje no Brasil. Investigar, acusar, defender e julgar pessoas são atos de ciência, construção e respeito ao próximo, jamais de ódio, destruição e linchamento. Essa lei confere tutela no manejo da norma processual”.

Entidades representativas de juízes, procuradores e delegados criticaram enfaticamente e alertaram para um possível ‘enfraquecimento’ do combate ao crime organizado e à corrupção com a aprovação. Procuradores argumentam, ainda, que a medida representará “um ato de vingança” dos políticos contra a Lava Jato, que, desde 2014, já atingiu políticos de 28 dos 32 partidos do Brasil.

É fato que o Presidente da República está sofrendo pressão de diversos núcleos da política para vetar alguns trechos do texto que é visto como uma possível forma de dá margem para criminalizar condutas que têm sido praticadas em investigações no País.

Por outro lado, os defensores da medida argumentam que a discussão é necessária, já que, hoje, a definição do que se enquadra em abuso de autoridade é genérica e não há penas delimitadas para as condutas.

Os principais e mais polêmicos pontos apresentados no projeto de Lei são:

PRISÃO INDEVIDA: Se um juiz decretar prisão “em manifesta desconformidade” com as regras previstas em lei, poderá ser preso por até quatro anos.

PROVA ILÍCITA: A medida prevê pena de até quatro anos de cadeia para a autoridade que durante investigação ou fiscalização obtiver uma prova “por meio manifestamente ilícito”.

USO DE ALGEMAS: O texto veda algemar ou amarrar de alguma forma uma pessoa quando não há clara resistência à prisão, risco de fuga ou ameaça à integridade física. A pena para esse abuso vai até dois anos de prisão. Um caso recente que repercutiu nacionalmente foi o de Sergio Cabral, ex-governador do Rio de Janeiro condenado e preso na Lava Jato do Rio. Em janeiro de 2018 Cabral foi transferido de presídio e apareceu algemado nas mãos e nos pés, por decisão da Polícia Federal, o que gerou uma controvérsia jurídica se havia necessidade em algemá-lo.

DEPOIMENTO FORÇADO: O projeto aprovado determina que uma autoridade pode ser presa por até quatro anos se forçar o depoimento de quem deve resguardar sigilo profissional (como médicos sobre seus pacientes ou jornalistas sobre suas fontes), quem tenha optado por não falar ou quem esteja sem a presença do advogado, tendo solicitado um defensor.

ENCONTRO COM ADVOGADO: A autoridade que impedir, “sem justa causa”, uma pessoa, presa ou não, de se encontrar reservadamente com seu advogado pode receber pena de até dois anos de cadeia.

ENTRADA EM DOMICÍLIO: A autoridade que adentrar a casa de alguém, contra a vontade do morador, sem determinação judicial ou sem atender exceções determinadas na lei, pode, segundo o texto, ser presa por até quatro anos. O mesmo abuso vale para quem cumpre mandado legal em residência entre 21h e 5h da manhã.

CELA COM MULHERES E HOMENS: Manter homens e mulheres detidos na mesma cela passa a ser considerado um abuso passível de até quatro anos de cadeia. Um caso famoso ocorreu em 2007, quando uma adolescente ficou detida por decisão judicial durante quase um mês numa cela com 30 homens em Abaetetuba, no Pará. Ela relatou ter sofrido uma série de abusos e estupros.

* Advogado Criminalista e membro da Comissão de Direito Criminal da OAB/RN. Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM.