Por Fernando Rocha*
A tragédia socioeconômica causada pelo fenômeno das apostas esportivas online, conhecidas como “bets”, está se tornando uma realidade alarmante para a sociedade brasileira. Uma das maiores evidências dessa tragédia é a estimativa de que cerca de R$ 10,5 bilhões do programa Bolsa Família estão sendo desviados para essas plataformas de apostas, revelando uma situação em que as pessoas estão literalmente deixando de comer para apostar. Esse cenário não apenas ameaça a segurança alimentar e financeira das famílias mais vulneráveis, mas também acarreta uma série de impactos em diversos setores econômicos e sociais do Brasil.
Além dos efeitos sociais diretos, como a perda de recursos fundamentais para a sobrevivência das famílias mais pobres, as “bets” abrem brechas para problemas ainda mais graves, como lavagem de dinheiro, manipulação de resultados esportivos e favorecimento de atividades ilícitas ligadas ao crime organizado. O ambiente das apostas online, altamente lucrativo e de difícil controle, tornou-se um terreno fértil para a lavagem de dinheiro, oferecendo uma plataforma rápida e quase sem rastreabilidade para que recursos de origem criminosa sejam “limpos” e reinseridos na economia formal. Essa prática mina a integridade financeira do país, facilitando o crescimento de organizações criminosas que encontram nas apostas esportivas uma nova e lucrativa fonte de renda.
A manipulação de jogos de futebol é outro grande risco associado ao crescimento descontrolado das apostas online. Com a proliferação das plataformas de “bets”, há um incentivo econômico crescente para a corrupção de jogadores, técnicos e árbitros, comprometendo a integridade esportiva e a confiabilidade dos resultados. A vulnerabilidade do futebol brasileiro, que movimenta milhões de reais em apostas diariamente, torna-se alvo de esquemas de manipulação, nos quais resultados são comprados para garantir ganhos certos para grupos de apostadores. Esse tipo de fraude não apenas prejudica o esporte e sua credibilidade, mas também estimula atividades criminosas ao redor das apostas.
O setor varejista também é profundamente afetado por essa transferência de recursos. Os consumidores, especialmente das classes C e D, que antes destinavam seus recursos para bens de primeira necessidade, como alimentos, roupas e medicamentos, agora direcionam suas despesas para as plataformas de apostas online. Essa mudança no comportamento do consumidor reflete uma distorção da economia doméstica, em que o dinheiro destinado ao consumo básico é redirecionado para uma atividade de alto risco e baixo retorno financeiro para o apostador. Essa situação tem causado uma queda significativa no faturamento de comércios locais, supermercados e pequenas lojas, desencadeando uma reação em cadeia que afeta a geração de empregos e a saúde financeira de pequenas e médias empresas.
Além do varejo, o sistema bancário começa a sentir os efeitos negativos do crescimento descontrolado das apostas esportivas. Cada vez mais, instituições financeiras têm registrado aumento na inadimplência de clientes que, atolados em dívidas de apostas, deixam de pagar empréstimos, cartões de crédito e outras obrigações financeiras. Essa onda de inadimplência compromete a estabilidade financeira dos bancos e a capacidade de oferta de crédito no país, criando um ciclo vicioso de endividamento e exclusão financeira.
O fenômeno das “bets” não se restringe apenas ao varejo e ao sistema bancário; até mesmo o mercado financeiro é afetado. Corretoras e investidores, que tradicionalmente operavam em day trade e outras atividades de investimento, começam a migrar para as plataformas de apostas online em busca de retornos rápidos e fáceis. Essa movimentação revela não apenas a volatilidade e risco envolvidos nas apostas esportivas, mas também uma tendência perigosa de desvalorização da cultura de investimento e poupança no Brasil. Enquanto investidores trocam o estudo de mercado e análise de riscos por apostas rápidas, o país perde a capacidade de criar uma cultura financeira saudável e sustentável, prejudicando o crescimento econômico de longo prazo.
A legislação que deu origem a esse cenário foi a Lei 14.852 de 2024, que, sob o pretexto de criar um marco legal para os jogos de azar, acabou por abrir uma brecha que contribuiu para a explosão do vício em apostas online no Brasil. A falta de regulamentação adequada e de mecanismos de proteção ao consumidor permitiu que essas plataformas se tornassem amplamente acessíveis e atrativas, sem qualquer tipo de controle ou limite para o gasto dos apostadores. Isso tem contribuído para o aumento do endividamento da população, que muitas vezes aposta mais do que pode perder, agravando uma já existente crise social e financeira.
Parlamentares que apoiaram a aprovação da lei começam a sofrer pressão pública e política por terem aberto caminho para essa tragédia. Os efeitos sociais e familiares relativos, por exemplo, ao vício de jogo, perda de qualidade de vida e crescimento da dívida das famílias, têm gerado questionamentos sobre a real finalidade da lei e sobre a necessidade de revisão e regulamentação mais rigorosa do setor de apostas online. Em vez de promover uma atividade econômica saudável, a legislação criou um ambiente propício para a exploração financeira de uma população já vulnerável, exacerbando desigualdades sociais e fragilizando a economia brasileira.
Outro impacto grave das “bets” é a perda de produtividade no trabalho. Muitos indivíduos, já viciados em apostas, perdem tempo e energia focados nas atividades de jogo, prejudicando seu desempenho profissional e até mesmo colocando em risco seu emprego e estabilidade financeira. Essa perda de produtividade, quando somada em escala nacional, gera prejuízos econômicos significativos, pois menos trabalho produtivo é realizado e, em consequência, menos riqueza é gerada para o país.
Portanto, a tragédia socioeconômica causada pelo boom das apostas online no Brasil é multifacetada, afetando desde o consumo básico das famílias até a estabilidade do sistema financeiro. A transferência de recursos de programas sociais como o Bolsa Família para as plataformas de apostas evidencia a distorção de prioridades econômicas e sociais, enquanto o impacto sobre o varejo, sistema bancário e mercado financeiro reforça a amplitude dos danos causados. A fragilidade da legislação atual permitiu um ambiente favorável à lavagem de dinheiro, manipulação esportiva e favorecimento do crime organizado, agravando a crise social e econômica no país. A Lei 14.852 de 2024, que visava criar um marco legal para os jogos de azar, precisa ser revista e revisada com urgência, a fim de evitar que a população brasileira continue a ser prejudicada por um sistema que favorece o vício e a exploração financeira. Somente por meio de uma legislação responsável e de mecanismos efetivos de proteção ao consumidor será possível reverter essa crise e promover um ambiente econômico mais saudável e justo para todos os brasileiros.
*É procurador da República com atuação no RN.
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