Intelectuais de direita descobriram que também podem ser mercadorizáveis

Por Paulo Ghiraldelli Jr*

O Espírito tudo abarca. Hegel assinaria embaixo dessa frase. O modo de produção tudo abarca. Marx assinaria embaixo. Não é difícil para nós sermos hegelianos ou marxistas, uma vez que somos modernos. Interpretar o mundo a partir de uma totalidade nós é bastante natural. Ela, a totalidade, se tornou até mesmo intuitiva para nós. Somos tentados a ver em uma determinada “época” uma teia comum de relações, regradas por um princípio único.

Assim, segundo essa ótica, de certo modo presente na maior parte dos pensadores modernos, a vida antiga foi a vida regrada pela polis, a vida medieval foi regrada pelo cristianismo e, então, nossa vida moderna tem a hegemonia de valores dada pelo trabalho e pela sociedade de mercado, seguida pela sociedade de consumo de massas. Se assim pensamos, ao nos fixarmos sobre a sociedade atual, vemos o mercado como legislando sobre todos os rincões, recantos e práticas da atualidade. Não à toa falamos de mercadorização de tudo, para o “bem e para o mal”.

A intelectualidade do século XX, coisa que permanece verdade para esse século até então, posiciona-se politicamente a partir de sua descrição a respeito da sociedade de mercado. Entre as tantas teorias que falam do mercado, talvez a visão sociológica de Marx seja, de fato, uma das mais devedoras da filosofia, ou mesmo da metafísica. Marx insistiu em ver o mercado capitalista associado ao que chamou de fetichismo da mercadoria, e outros marxistas falaram, então, do contraponto a isso, a reificação do homem. O mercado tudo abarca, torna tudo mercadoria, e esta não é produto, ela é horas de trabalho que podem ser substituídas por número, ou seja, dinheiro – o abstrato. Assim, em um mundo mercadorizável, a abstração adentra a vida de todos. Nada mais é experiência particular, tudo é visto como sob o nome do abstrato, do igual e, portanto, trocável. Essa equalização de tudo permite que a regra do pertencimento perca o sentido. O que vale é o valor de troca, não mais seu valor de uso. Mercadoria para ser mercadoria, para obedecer o mercado capitalista, é sempre valorizada pelo valor de troca. O próprio trabalho é mercadoria e ele também é valorizado pelo seu valor de troca. O que está à margem do mercado porque não é mercadoria, ainda assim respira esse ar, esse clima do espírito ou do modo de produção, e se comporta abstratamente como se fosse o que tem status porque é abstrato, e pode então ser trocado. Então, a poesia e o amor, tanto quanto a peça de teatro, a aula do professor e a consulta do médico, até mesmo o cheiro de uma flor, já não se colocam no âmbito da experiência humana, mas no âmbito do abstrato, do sem rosto, próprio para a troca. Algumas pessoas querem voltar a ter experiências, querem sentir rugas nos rostos de quem beija, querem voltar a sentir cheiro de suor da amada e não o do desodorante íntimo. A gourmetização é negada, para se voltar à vida. Essas pessoas negam o espírito da época ou negam o modo de produção capitalista. Elas podem ser de esquerda ou de direita.

As de direita negam a totalidade vigente no sentido das saudades de uma totalidade que não pode mais ser reconstruída. A direita é conservadora, tende a ser reacionária. A esquerda não quer essa totalidade, pretende construir outra, que não raro possui algumas aspirações postas pela direita. Há muito de romantismo na esquerda que, à primeira vista, pode até ser encontrado na direita. Há muito cientificismo na direita que, enfim, esperaríamos encontrar na esquerda. Essas negações da totalidade podem ser sinceras, mas podem elas próprias não conseguirem sair da totalidade vigente, ficando elas próprias encerradas no espírito de nossa época, o espírito da sociedade de mercado. Ou seja: também nossos sonhos passadistas ou progressistas se tornam horas de trabalho, abstrações, dinheiro e, portanto, são engolidos na lógica do mercado. O mercado tudo abarca. Pode transformar qualquer protesto a ele em mercadoria vendável. Exemplos não faltam. Tudo que é subversivo não demora para ser posto sob a batuta da mercadorização e alimentar a roda capitalista. Aliás, reparem como palestrantes que auto colocam à direita e à esquerda concordam e falam muito a mesma coisa!

A sensação de derrota de esquerdistas e direitistas, nessa roda, pode gerar o fenômeno do “vale a pena apenas ser diferente”. E eis que os intelectuais mais frustrados começam a apelar para todo tipo de discurso, não mais na busca de interpretar a vida, mas simplesmente de serem vencedores no mercado, querem apenas serem vistos e ouvidos. Se tornam tão vedetes quanto a própria mercadoria. É dentro desse fenômeno que está inserida a “nova direita”. Alguns intelectuais se integraram tão bem a esse ritmo de cinismo egocêntrico que pensam apenas numa coisa: preciso conseguir dar uma palestra amanhã, e manter meu público. Checam o número de seguidores que possuem em rede social como se fossem um artista de sertanejo universitário ou uma Anita a mais. Vivem o sufoco de perderem um seguidor e se desesperarem. Gritam: “sou de direita”. Outros exageram: “sou o único de direita!”. Gemem. Precisam despontar e, então, querem ser vendáveis, querem se mercadorizar. Descobriram que este é o sucesso, e não mais a busca do aperfeiçoamento virtuoso do intelecto. Se imaginam mais na condição do Faustão e sonham em ser o Tiago Leifert.

Isso já ocorreu com a esquerda. Mas a direita agora está experimentando essa lama. E está totalmente deslumbrada em ser do contra, em falar mal do capitalismo ou da modernidade do mercado, para obter algumas horas (vários likes) de fama nesse próprio mercado. A universidade ainda é o lugar de profissionais que não cederam a isso, embora alguns desses fazedores de shows de picaretas já estejam, agora, também na universidade. O capitalismo engoliu a esquerda e, agora, engole e glorifica a direita. Tudo é tornado entretenimento. Entertainment.

*É filósofo.

 

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Canal Bruno Barreto