Por Lenio Luiz Streck
Abstract: Para Cristovam Buarque, vai um trecho de Rei Lear, de Shakespeare: “Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”.
Há um conceito novo na praça. Muniz Sodré, em belo artigo na Folha de S.Paulo, conta-nos: “A distopia televisiva Years and Years (HBO), onde o mundo parece posto de cabeça para baixo, é amostra curiosa de um fenômeno ainda em busca de interpretação, que escolhemos designar como sociedade incivil”. Tempos de raiva, de anti-intelectualismo e quejandos.
Um bom exemplo dessa incivilidade foi o Twitter do ex-senador Cristovam Buarque sobre cláusulas pétreas, que bem demonstra o buraco em que estamos metidos:
“Perguntas brasileiras: e se nossa primeira Constituição tivesse colocado a propriedade de escravos como cláusula pétrea, por sua importância fundamental na economia da época?”
Sim, ele postou isso. Mas não é o primeiro e nem o único. Grupos de WhatsApp — as novas células terroristas das neocavernas — disseminam esse tipo de asneira ofensiva. Não me surpreende que Cristovam não tenha sido reeleito. Manchou sua história como professor. Que feio. A resposta ao ex-senador veio fulminante, pela voz do advogado Silvio Almeida: “Senador, sinto-me, como negro que sou, profundamente ofendido com sua comparação ridícula, sem sentido e desrespeitosa. O senhor tornou-se um homem triste e vulgar. Que a história trate de colocá-lo em seu devido lugar”. Amém, Silvio. And I rest my case.
Eis uma boa amostra destes tempos de incivilidade, em que um professor, ex-senador, ex-governador, diz uma barbaridade destas. Ele não deve ter amigos ou alguém em casa que o aconselhe. Será que não tem nenhum parente que tenha estudado Direito ou que tenha lido algum livro de Direito Constitucional? Mesmo um livro de Direito Constitucional facilitado ensinaria ao ex-senador (e aos outros disseminadores dessa nesciedade).
Sigo. O Brasil deve ser o único país do mundo em que as garantias constitucionais e processuais são vistas como inimigas. Pior: quem dissemina mais essa lenda é gente da comunidade jurídica.
Veja-se a reação raivosa dessa gente ao julgamento do Supremo no caso das ADCs. Uma advogada do RS disse que os filhos e filhas dos ordinários ministros deveriam ser estuprados. Outros posts em Twitter e Facebook incentivam o ódio. Gente do direito — e alguns do parlamento — pedindo que o STF seja fechado. Gente do MP pró-sociedade fazendo uma ode ao uso desmesurado do meio ambiente para fazer a felicidade de cada pessoa, afora outras coisas desse quilate (ver meu MP Pró-sociedade chama Lei do Abuso de Lei do Bandido Feliz). Eis o paradigma da incivilidade.
Ao lado disso tudo, o exercício da advocacia tem se transformado em uma corrida de obstáculos. Tem de matar dois leões por dia, desviar das antas, cruzar por um fosso de jacarés, beijar um leão e, ainda por cima, cuidar para não ser esnobado pelo meirinho.
Bom, esse é o trivial do cotidiano pelo qual passam centenas de milhares de causídicos. Mas, nos últimos anos, há um fenômeno novo, o da criminalização da advocacia. Advogados que fazem pareceres como procuradores de município ou autarquias são enquadrados como criminosos e, quiçá, membros de orcrim.
Escritórios são violados. Constantemente a OAB tem de recorrer ao STF — e tenho sido protagonista em alguns casos por indicação do Conselho Federal da OAB —, buscando medidas, especialmente reclamações, para proteger o exercício da profissão. Chegamos a esse ponto.
Eis a tempestade perfeita: juíza mede o tamanho das saias das advogadas, o que demonstra, simbolicamente, o grau de autoritarismo que se encalacrou nas instituições. Advogados são pressionados para que seus clientes façam delação. Advogados são vetados em delações. Querem alterar até o conceito de coisa julgada, afogando Liebman no rio de história.
Sobre tudo isso temos de refletir. Agora mesmo há um movimento nacional — até com passeatas em ruas e praças — pela aprovação de Emenda(s) Constitucional para alterar o julgado do STF nas ADC 43, 44 e 54. Vi um ex-senador do RS falando, efusivamente, que o parlamento deve salvar o país (leia-se: para ele, só com a alteração da Constituição é que poderemos livrar o país da impunidade proporcionada pelo STF). Nem vou falar de deputados boquirrotos que dizem barbaridades e depois pedem desculpas, prática, aliás, muito comum nesta terra patrimonialista. Faz o mal… e pede desculpas. Já propus até que se ampliasse o artigo do Código Penal que trata das exclusões de ilicitude: “o pedido de desculpas”.
Um ponto em comum na maioria (falei maioria) das manifestações bizarras e reacionárias: elas vêm de gente (de)formada em… Direito. Sim, o Direito é locus privilegiado do reacionarismo. As faculdades estão formando reacionários e aprendizes de fascistas. As ofensas maiores que recebo por defender as garantias constitucionais vem de gente da área do… Direito. Claro. Não me admira que 57% da população que não toma vacina age desse modo porque se informa em células terroristas de WhatsApp. E, é claro, 25% das pessoas acreditam que Adão e Eva existiram.
O terraplanismo jurídico venceu. Bom, para um país em que os alunos já não levam livros para aula e ficam conferindo o que o professor diz revirando a Wikipédia, o que mais pode nos surpreender? Ninguém se operaria com um médico que estudou por livros do tipo “cirurgia cardíaca mastigada”, pois não? Mas no Direito tudo pode. Resumos, resuminhos, mastigados. Viva o macete. Depois dá nisso que estamos vivendo. O sonho de parte da comunidade jurídica é fechar o STF e prender o réu já em primeiro grau. E suspender a garantia de habeas corpus. E permitir uso de prova ilícita de boa-fé (como, aliás, constou no pacote de Dallagnol). O que houve com a comunidade jurídica?
Do jeito que vai a coisa, o símbolo da justiça — a balança — será substituída por um ovo, que é o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, que dá às palavras o sentido que quer.
Por isso, coisa julgada é… aquilo que quero; cláusula pétrea é cláusula dúctil, fofinha… com a qual se pode dizer qualquer bobagem e fazer qualquer tipo de comparação hedionda. E assim por diante.
*É é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.