Uma má decisão no direito eleitoral

Kássio Nunes tomou decisão considerada estranha (Foto: reprodução)

Por Rogério Tadeu Romano*

Segundo o site de notícias da  CNN Brasil, em 2 de junho do corrente ano, em decisão monocrática, o ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu nesta quinta-feira (2) derrubar uma decisão do plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de outubro do ano passado que havia cassado o deputado estadual bolsonarista Fernando Francischini, do Paraná, que foi eleito para o cargo pelo PSL (atual União Brasil).

Ainda se lê daquele site de notícias:

“O tribunal cassou o mandato de Francischini depois de o então parlamentar ter sido acusado de disseminação de vídeo com notícias falsas sobre fraudes nas urnas eletrônicas durante as eleições de 2018. Ele também foi punido com a inelegibilidade por oito anos contados a partir de 2018 –até 2026, portanto.

Em sua manifestação, Nunes Marques afirmou que “é evidente o ineditismo da interpretação adotada pelo TSE por ocasião do julgamento, em 28 de outubro de 2021, das referidas ações de investigação eleitoral”.

Como bem lembrou o G1 Política, há alguns caminhos para a derrubada sendo discutidos: que o Ministério Público Federal, por meio do PRG, Augusto Aras, ou o vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gustavo Gonet, entrem com um recurso para nova análise, que ficaria a cargo da 2ª turma do STF – composta por Edson Fachin, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, André Mendonça e Nunes Marques. Caberia ao próprio Kássio decidir quando levar o tema a debate.

O Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu, no dia 3 de junho, ainda segundo o G1 Política,  dois recursos contra as decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques que devolveram o mandato aos deputados federais Valdevan Noventa (PL-SE) e Fernando Francischini (União-PR) nesta semana.

Segundo o TSE, Francischini infringiu a LC 64/90, por uso indevido dos meios de comunicação e abuso de poder político, ao afirmar em uma live que urnas fraudadas não estavam aceitando votos em Bolsonaro. Como agravante, a mentira, claramente voltada a tumultuar o processo eleitoral e manipular o eleitorado, foi dita no dia do 1.º turno das eleições de 2018.

O boato propagado pelo parlamentar surgiu depois que começaram a circular na internet dois vídeos que tentam mostrar suposta dificuldade em votar em Bolsonaro, quando o eleitor chega à urna e tenta, de imediato, apertar as teclas do número 17. Ocorre que os vídeos evidenciaram erro do eleitor e foram prontamente esclarecidos pela Justiça Eleitoral, sendo desmentido também o rumor sobre a suposta apreensão de urnas, que nunca ocorreu. Quando a urna eletrônica apresentou a tela para votar no cargo de governador, o eleitor apertou as teclas 1 e 7 para votar para presidente. É visível nos vídeos a palavra GOVERNADOR, na parte superior da tela da urna eletrônica. O Tribunal Regional Eleitoral paranaense (TRE-PR) julgou improcedente a ação movida pelo Ministério Público Eleitoral (MPE), que recorreu ao TSE e reverteu o resultado.

Destaco daquela decisão do Tribunal Superior Eleitoral:

“No caso, constata-se sem nenhuma dificuldade que todas as declarações do recorrido durante sua live, envolvendo o sistema eletrônico de votação, são absolutamente inverídicas. 15. Quanto às urnas eletrônicas de seções eleitorais do Paraná, o recorrido atribuiu-lhes a pecha de “fraudadas”, “adulteradas” e “apreendidas” e apontou que “eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”. Todavia, (a) inexistiu apreensão, mas mera substituição por problemas pontuais; (b) além da já enfatizada segurança das urnas eletrônicas, a Corte de origem realizou auditoria antes do segundo turno – na presença de técnicos da legenda do candidato – e nada constatou; (c) é falsa a narrativa de que a suposta fraude estaria comprovada na “documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”, não havendo nenhuma menção a esse respeito nas atas das respectivas seções.”

“21. Gravidade configurada pela somatória de aspectos qualitativos e quantitativos (art. 22, XVI, da LC 64/90). O ataque ao sistema eletrônico de votação, noticiando-se fraudes que nunca ocorreram, tem repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas, utilizadas há 25 anos sem nenhuma prova de adulterações. Além disso, reitere-se a audiência de mais de 70 mil pessoas e, até 12/11/2018, mais de 400 mil compartilhamentos, 105 mil comentários e seis milhões de visualizações. 22. Na linha do parecer ministerial, “a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação”, sendo grave a afronta à “legitimidade e normalidade do prélio eleitoral”.

Já Valdevan teve seu mandato cassado pelo Tribunal Eleitoral Regional (TRE) de Sergipe por ter prestado contas de apenas R$ 353 mil dos R$ 551 mil gastos em campanha. O TSE confirmou a decisão, e a perda do mandato foi declarada pela Câmara.

O Partido dos Trabalhadores tem legitimidade para ajuizamento de recurso de agravo regimental uma vez que a decisão envolve, por ser uma eleição proporcional, o chamado quociente eleitoral.

A ação de investigação judicial eleitoral tem seus efeitos previstos no artigo 22, inciso XIV, da Lei Complementar 64/90 e são eles: decretar a inelegibilidade, para essa eleição, do representado e tantos quantos tenham contribuído para a prática do ato; cominação de sanção de inelegibilidade; cassação de registro de candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico e de desvio ou abuso de poder de autoridade.

Abuso de poder político é o uso indevido de cargo ou função pública, com a finalidade de obter votos para determinado candidato.

Por outro lado, abuso de poder político pode ser visto como atuação ímproba do administrador, com a finalidade de influenciar no pleito eleitoral de modo ilícito, desequilibrando a disputa. Adriano Soares da Costa(Instituições de direito eleitoral, 5ª edição, pág. 530) já entendeu que “ a AIJE apenas pode ser proposta após o pedido de registro de candidatura e antes da diplomação dos eleitos”.

A ação(AIJE) pode ser exercitada depois do dia da eleição.

Lembro que os arts. 1º, II e parágrafo único, e 14, § 9º, da CF/88, além dos arts. 19 e 22 da LC 64/90 revelam como bens jurídicos tutelados a paridade de armas e a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições. Não há margem para dúvida de que constitui ato abusivo, a atrair as sanções cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo-se nos eleitores a falsa ideia de fraude em contexto no qual candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática.

Tenha-se que um parlamentar não pode propagar irresponsavelmente fatos deturpados, notícias falsas, e teorias conspiratórias sobre fraudes agentes infiltrados e golpe, com inquestionável potencial de desacreditar instituições e promover a desordem social.

A imunidade parlamentar material não é absoluta e “não confere aos parlamentares o direito de empregar expediente fraudulento, artificioso ou ardiloso, voltado a alterar a verdade da informação, com o fim de desqualificar ou imputar fato desonroso à reputação de terceiros”.

Trata-se de uma conduta que não pode ser tolerada, independentemente de quem a pratique, pois atenta contra o Poder Judiciário Eleitoral, colocando em risco a independência e a harmonia dos Poderes da República Federativa do Brasil e o próprio Estado Democrático de Direito. Aí cabe a intervenção do Judiciário na tutela da Constituição e do regime democrático de direito.

Entendeu bem o TSE naquela decisão envolvendo o caso Fernando Francischini que o  abuso de poder político configura-se quando a normalidade e a legitimidade do pleito são comprometidas por atos de agentes públicos que, valendo-se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas em manifesto desvio de finalidade. Precedentes.

Assim é inviável afastar o abuso invocando-se a imunidade parlamentar como escudo. No caso de manifestações exteriores à Casa Legislativa a que pertence o parlamentar, “há necessidade de verificar se as declarações foram dadas no exercício, ou em razão do exercício, do mandato parlamentar; ou seja, se o denunciado expressou suas opiniões, sobre questões relacionadas a políticas governamentais; e se essas opiniões se ativeram aos parâmetros constitucionalmente aceitos, ou se teriam extrapolado eventuais parâmetros das imunidades materiais” (voto do Min. Alexandre de Moraes no Inquérito 4.694/DF, DJE de 1º/8/2019).

Não se pode encarar com naturalidade manifestações sensacionalistas, inverídicas, irresponsáveis, que colocam em dúvida a legitimidade das eleições no Brasil.

A internet e as redes sociais enquadram-se no conceito de “veículos ou meios de comunicação social” a que alude o art. 22 da LC 64/90. Além de o dispositivo conter tipo aberto, a Justiça Eleitoral não pode ignorar a realidade: é notório que as Eleições 2018 representaram novo marco na forma de realizar campanhas, com claras vantagens no uso da internet pelos atores do processo eleitoral, que podem se comunicar e angariar votos de forma mais econômica, com amplo alcance e de modo personalizado mediante interação direta com os eleitores, sendo essa a posição exarada pelo Tribunal Superior Eleitoral naquele leading case.

Ininteligível, pois, a decisão do ministro Kássio Marques, com mil vênias, pois o abuso do poder econômico foi lapidar com divulgação de fake news que, de forma tentacular, atingiu, agrediu, a regularidade daquele pleito eleitoral, enfocando noticia sem nenhum conteúdo de veracidade.

Seria caso de recurso de agravo regimental da parte do Ministério Público Eleitoral. Mas, indaga-se: Ele recorrerá?

Ademais, diante de recurso ajuizado, seria de bom alvitre que a matéria fosse enviada pelo Plenário do STF tal a gravidade do tema. Isso é matéria a ser cuidada pelo ministro presidente.

*Procurador da República aposentado com atuação no RN.

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