Primeiro a tragédia, segundo a farsa: o que a expulsão das(os) quiosqueiras(os)

Quiosqueiras da Redinha lutam para preservar história (Foto: cedida)

Da Praia da Redinha nos revela sobre o modus operandi colonial

Por Andersonn Henrique Araújo*

Conta-nos Câmara Cascudo que durante a conquista das terras dos potiguares pelos portugueses, as terras ao norte do Rio Potengi, entre os bairros da Redinha e Igapó, eram ocupadas por aldeamentos indígenas.

Para repelir os franceses que já estavam por essas bandas e eram aliados dos nativos, os portugueses saíram do Forte de Cabedelo, na Paraíba, na intenção de conquistar as margens do Rio Potengi. O intento só foi possível após firmada uma aliança com o grande líder indígena Felipe Camarão (Potiguaçu ou Grande Camarão), que recebeu inúmeras honrarias e cargos no governo português. Essa aliança permitiu tanto a construção do Forte dos Reis Magos (1598) quanto a operacionalização do decreto de fundação da cidade do Natal (1599) na margem oposta do Rio Potengi, onde era localizado o aldeamento comandado por Potiguaçu.

Depois das diversas batalhas ao lado dos portugueses, ocorridas durante os séculos XVI e XVII, dentre elas as ligadas a expulsão dos holandeses da costa do Nordeste, o povo “selvagem” potiguar recebeu do rei de Portugal a “graça” ou o “convite compulsório” de se mudar do seu território para receber “instrução” nos aldeamentos jesuítas. Um desses aldeamentos, o Guajiru, localizava-se na região onde hoje está situada a cidade de Extremoz.

Após batalhas travadas pelos povos indígenas em favor da coroa portuguesa, na sanha de também ocupar as terras ao norte das margens do Rio Potengi, os colonos portugueses, autoconsiderados culturalmente “superiores”, começaram a expulsar os nativos potiguares da Redinha para os Aldeamentos Jesuítas, onde receberiam “instrução”. Esse talvez tenha sido o primeiro caso de expropriação de terras no Rio Grande do Norte, mas com certeza foi o primeiro caso de “presente de grego” baseado na ingratidão dada pelos governantes ao povo potiguar. A história do bairro da Redinha nos conta que após essa expropriação, o local foi ocupado pelas famílias da elite natalense que durante todo o século XIX construíram as suas casas de veraneio.

Os remanescentes indígenas e descendentes de escravizados exerciam diversas ocupações, como a de pescadores, e conviviam com os veranistas. Sobre essa época, há, inclusive, belas narrativas nas crônicas de Newton Navarro, publicadas nos jornais da capital norte-rio-grandense sobre uma Redinha idílica, boêmia, “selvagem”, quase “intocada”. Os verões regados a uísque, violões, foliões e clubes carnavalescos conviviam com os festejos de caboclinhos, pastoril e de reisado. A Redinha dos veranistas do século XIX, festiva e insular, que se chegava apenas através de barcos e de balsas, pouco parecia se lembrar do seu passado indígena, ligado a história de Felipe Camarão de lutas e de resistências. A Redinha “se embranqueceu”, ou pelo menos era esse um dos intentos coloniais. Bons tempos? E os verdadeiros donos das terras da Redinha que foram expulsos para o Aldeamento do Guajiru?

Os caminhos foram muitos, alguns continuaram ocupando as cidades do entorno de Natal, outros juntaram-se aos escravizados no trabalho nos engenhos de cana-de-açúcar. Durante os séculos XX e XXI, a população que vivia próxima dos antigos aldeamentos Jesuítas e das zonas de plantação de cana-de-açúcar (Extremoz, Touros, São José do Mipibu, Nísia Floresta, Ceará-Mirim, e etc.) migrou de volta para Redinha, concentrando-se na Comunidade da Redinha de Dentro, pois a orla já estava quase toda ocupada pelas casas de verão. Além dos conjuntos habitacionais do final do século XX, também foram construídas casas em situações precárias pelos próprios moradores. Essa é uma das histórias da (re)ocupação da Redinha de Dentro e da Comunidade da África, localizadas no bairro. As ligações entre a Redinha e as demais zonas da cidade, seja através da antiga “Estrada da Redinha” ou da mais “recente” Ponte Newton Navarro, fizeram com que a população começasse a vislumbrar a atividade comercial do turismo como um mecanismo de sobrevivência. As quiosqueiras, os pescadores, os permissionários do Mercado da Redinha, os nativos – moradores antigos e recém migrados, e os ambulantes que vendem alimentos e bebidas no bairro, são herdeiros não apenas de uma tradição mercantil ligada ao turismo, como também são pessoas injustiçadas pelo processo histórico que incidiu sobre seus antepassados.

Ao que parece, a história se repete. Se nos séculos XVI e XVII a intenção era civilizar os nativos, os expulsando de suas terras, e nos séculos XIX e XX o objetivo era a ocupação da Redinha através da construção das casas de veraneio, hoje, em pleno século XXI, a intenção do Município de Natal é “reurbanizar” a região da orla do bairro expulsando justamente os verdadeiros “donos” da terra. A situação vivenciada pelos trabalhadores é terrível. Querem passar por cima das histórias de vida que as pessoas construíram ao longo de anos: trabalhar no quiosque é fazer amizades, é a forma como os pais de alguns permissionários foram criados, os quais, por

sua vez, hoje sustentam seus filhos e criam seus netos. Em uma região escassa de equipamentos públicos comunitários, as crianças filhas e netas das quiosqueiras e de pescadores brincam de “tica-tica” por entre os bancos já deteriorados da orla. Retirar os trabalhadores é passar o trator por cima de histórias e modos de viver inseridos em redes de sociabilidades com a intenção de “civilizar” a orla, repetindo os mesmos argumentos coloniais dos séculos XVI e XVII, desapropriando os verdadeiros donos da Redinha.

Segundo as trabalhadoras dos quiosques, foi prometida uma indenização no valor de oito mil reais por cada quiosque derrubado. Em apenas um dos quiosques trabalham três famílias, e em uma dessas famílias três gerações. As trabalhadoras dos quiosques são em grande maioria mulheres, chefes de família, negras e pardas, que em conjunto com outras famílias fazem funcionar toda a dinâmica de compra de insumos, preparo, manutenção e serviços de atendimento aos clientes. Depois de dividido o valor da indenização entre todas as famílias que trabalham em um mesmo quiosque, o montante indenizatório não conseguiria viabilizar uma estrutura mínima de comércio em outro local. Isso sem falar da relação de confiança/amizade edificada entre os frequentadores da praia, os banhistas, os moradores e as quiosqueiras ao longo de décadas. São pessoas que vão lá há anos para se encontrarem, bater um papo a beira do Potengi, tomar um

banho de mar, praticar esportes, pescarem mariscos, comer o peixe com macaxeira frita de dona Cida*, o caldinho de dona Nina*, a batatinha com carne de sol de dona Francisca*, e a famosa ginga com tapioca de dona Inês*. Se a alternativa financeira oferecida pela prefeitura já é precária em si, ela desconsidera todas as questões que envolvem o lado afetivo, humano e histórico por trás do trabalho das quiosqueiras.

A Redinha precisa ser um lugar democrático: lugar de veranista, de turista, como também do morador das Comunidades; lugar de respeito as tradições e lugar de progresso; lugar de diversão-descanso e lugar de trabalho. Gerenciar dinâmicas que parecem ser opostas, mas não são, deveria ser parte do agir político que orienta as ações da política pública, isso ajudaria a fazer que a máquina governamental não fosse utilizada como instrumento opressor de pessoas que já foram marcadas por processos históricos de exclusão.

Mulheres, negras, pardas, descendentes de indígenas e de escravizados sendo expulsas do lugar onde ganham seu sustento com o argumento do “progresso”, me parece ser, ao menos, uma repetição tosca de um passado de expropriações de terras e de apagamentos de histórias de vidas do povo potiguar. Se há problemas de regularização e de melhorias da infraestrutura, não é destruindo vidas e memórias que se constrói um futuro possível em uma cidade humana e que (re)conhece seu passado. Um filósofo escreveu que a história se repete, em uma primeira vez como tragédia e na segunda vez como farsa. No caso da Redinha, a tragédia não pode ser esquecida para que a farsa não seja repetida.

PS: Os nomes das cozinheiras foram alterados para não orientar a escolha das experiências

gastronômicas do leitor.

*É Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e Doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Email: andersonnaraujo@uern.br.

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