O historiador Marcílio Falcão, atualmente diretor da Faculdade de Filosofia e Ciência Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (FAFIC/UERN), tem dedicado boa parte de sua vida acadêmica para compreender a construção da memória coletiva em Mossoró onde se insere a abolição da escravidão na segunda cidade do Rio Grande do Norte cinco anos antes da Lei Área, em 1883. Nesta entrevista exclusiva ao Blog do Barreto ele destrincha como se deu o processo e despe as fantasias em torno dos fatos ocorridos há exatos 140 anos sem desmerecer a importância dos abolicionistas.
Confira.
Blog do Barreto: Na sua avaliação por que há ausência de protagonismo negro no processo de abolição da escravidão em Mossoró?
Marcílio Falcão: Bom, Bruno, é o seguinte o protagonismo negro seria muito difícil na narrativa que foi produzida sobre o 30 de setembro, você encontrar os escravizados ou ex-escravizados presentes nessa narrativa porque na verdade o 30 de setembro foi uma grande festa, foi uma grande festa pensada dentro de uma logística do Ceará e de parte do Pernambuco. Aqui no caso, a abolição foi pensada a partir da lógica da sociedade abolicionista cearense. Antes de acontecer o evento aqui os jornais de Fortaleza já divulgavam, então era algo que não foi algo que não foi imprevisível. Era previsto. Na verdade, ia ser dias antes, ia ser dia 28 de setembro. Aí foi 30 porque houve ali um arrozinho ali. Mas na verdade é uma abolição de brancos para brancos. Dentro de uma lógica da civilização e do progresso. Então a presença daqueles que eram os mais interessados na libertação nas narrativas não vão aparecer.
Qual o papel de Rafael Mossoroense da Glória?
MF: No caso do Rafael Mossoró da Glória, eu não encontro, pelo menos nos arquivos que eu fui, registros de sua existência. A minha leitura está mais voltada para a ideia de uma figura não mitológica no sentido mas de uma figura memorável, provavelmente construída, porque veja, é o único que aparece. Me aponte, os libertos que aparecem nomes? Você não encontra, você encontra nos inventários, você encontra em algumas cartas de alforria, mas nas festas, assim, só ele exatamente aparece. É numa festa de branco para branco com dia marcado, com hora marcada e, principalmente, voltada pra essa coisa de dizer que Mossoró libertou os seus escravizados que hoje cai-se na tese de dizer que a libertação dos escravos de Mossoró não é a abolição porque não tem lei, né? Não poderia fazer essa abolição, a libertação dos escravos em Mossoró ela é muito mais uma logística voltada para destravar, como eu disse na tese, um problema do Ceará sim porque o Ceará era província que estava fazendo liberdade e estava pressionado os estados abolicionistas. Estados totalmente escravocratas. Quando eu peguei os relatórios de presidente de província do Ceará foi que eu percebi? Aracati tinha muito mais escravo do que Mossoró e não estava fazendo o que estava acontecendo em Fortaleza, Redenção… quando você pega a lista de escravizados no Vale do Jaguaribe você diz nossa não está acontecendo o que está acontecendo em Fortaleza. Então aquela tese do caso que Mossoró libertou os escravizados porque tinham poucos também é válida, mas existem outras explicações.
BB: Essa tese é tão exagerada que tem gente que diz ‘ah tinha dez escravizados não era eram mais de cem.
MF: Mais de cem Mossoró nunca chegou a ter 500, 600 escravizados pelos relatórios. Pode até ter chegado. Porque nós não tivemos acesso ao livro de matrícula. Mas isso daí é o 30 de setembro. Não existe documento oficial sobre 30 de setembro. A ata foi perdida. O que existe sobre 30 de setembro são os relatos do jornal O Libertador que está lá na Biblioteca Menezes Pimentel em Fortaleza, digitalizados. E aquilo que a partir 1948 o Vingt-un com o grupo dele fez e aquilo que existe a partir de 1902 quando o João da Escócia, ele retoma o jornal O Mossoroense e começa a reproduzir ou, a comemorar, a narrativa sobre o 30 de setembro. Então, de fato, o Jornal Mossoroense, se torna um guardião da história dessa desse 30 de setembro, mas em cima, em certa medida, das narrativas do jornal O Libertador.
BB: Que mensagem fica para a sociedade essa sensação de que a abolição dos escravos foi uma mera concessão dos brancos, como se não houvesse resistência?
MF: Bom entender também não é aquela coisa de dizer que o 30 de setembro em Mossoró é uma coisa isolada, não, é como conectado. A década de 1870 e setenta, de 1880 são décadas muito agitadas. No Rio de Janeiro, São Paulo, os abolicionistas faziam festas nos teatros, se cotizavam para libertar, aqui também aconteceu numa menor proporção. Na verdade, elite mossoroense estava ligada em determinados momentos a esses grupos, a esses pensamentos. E o que que ocorre? Ocorre que há um trânsito de ideias, esses homens acreditavam que estavam fazendo um processo importante e na verdade estavam. Eu não tiro o brilho da loja Maçônica, não tira o brilho do Romualdo, do Alcebíades, Graco… não se pode tirar o brilho desses homens porque eles estavam imbuídos de um espírito pautado na civilização e no progresso, mas o que estava em jogo aí era a ideia do trabalho livre. O que estava em jogo era a transição entre um modelo de trabalho compulsório e o trabalho livre, muito mais associado e assentado ao que viria a ser a república. Então, eu acho que esses homens independente do que eles estavam, o lugar que eles ocupavam, eles fizeram um exercício por cima, uma vez que nós sabemos que os grandes interessados eram os que estavam embaixo e essas pessoas tem agência. O grande problema do 30 de setembro e das comemorações do 30 de setembro é manter a reprodução de uma memória dos abolicionistas e na maioria das vezes esquecer que os mais interessados eram aqueles que estavam lá. Um exemplo em 1948, Vingt e Ving-un Rosado e Laura da Escócia, procuraram os descendentes desses escravizados, aqueles que estavam no livro de tom de batismo da Paróquia de Santa Luzia, as condições em que essas pessoas estavam eram miseráveis. Então não venha com essa história de dizer que a Mossoró não foi a primeira a libertar, mas ajudou os escravizados. Foi o mesmo processo. Terminado o processo de liberdade, terminado o processo de abolição os escravizados não foram inseridos dentro de uma sociedade que se dizia democrática e libertária, não foram. Eles ficaram a margem, né? E as condições, é só você ver as fotos que existem no museu, para perceber as condições sociais em que essas pessoas se encontravam, mas antes de uma agência, né? Sim. O importante, Bruno, é a agência dessas pessoas. Quando você encontra, estão caçando, o termo terrível, estão escravos fugitivos, a fuga é uma forma de resistência, né? E isso nós da história temos muito interesse, mais importante do que certa medida o exercício do Romualdo e do grupo dele de dizer ‘nós vamos te libertar comprando’ porque não foi uma libertação daquela dizer uma libertação de rompimento ‘oh acabou!’ não porque para o dono do escravo ele era fortuna, que tinha sido comprado e era vendido. Houve uma negociação, houve um uma certa negociação da realidade ou por cota ou por munimição, não foi aquela ruptura total que a narrativa diz.
BB: Não houve uma lei.
MF: Não. não tem lei. E existe ainda uma outra dúvida. Um exemplo, que não está claro nem nos jornais, né? E nem naquela ata: como foi que eles juntaram determinados recursos praquele momento. Como foi juntado? Porque veja: os documentos não deixam claro se eles disseram “olha todos aqui estão livres” e o proprietário abre aspas que tinha sido coisificado: “você perdeu”. Porque o que estava por trás da abolição da escravidão no Brasil era que a fortuna de muitas pessoas estava nos escravos. O próprio governo imperial criou um fundo que era o fundo de munimição, que também chegavam em Mossoró, para dizer “olha vamos ressarcir ali o proprietário daquela mão de obra porque se ele perder, vai perder a fortuna dele”. Então isso também estava em jogo. E aqui a documentação não deixa claro. Se foi aquela coisa totalmente abrupta. O que aparece e raramente na documentação dos caras se juntavam, se cotizavam e faziam a liberdade. Então cai em certa medida aquela coisa da tensão. Houve tensão, claro. Mas em certa medida cai.
BB: Qual era o perfil dos escravos e escravas de Mossoró? Era mais urbano ou rural?
MF: Olha, pela própria estrutura da economia mossoroense, você tira pelo Casario. É uma sociedade de comércio, então es esses escravizados, de fato eram mais urbanos. E havia um trânsito muito grande. Mossoró, como ponto de comércio, ou não havia interesse de um proprietário ficar com o com aquela mão de obra ali. Aquela mão de obra estava sendo rentável porque ela entrou dentro do circuito do comércio interprovincial, então chegar aqui e repassar era mais importante. Agora tem uma coisa, nós fizemos um levantamento sobre as famílias que existiam aqui com o número de escravos, então de famílias conhecidas que, é complicado você dizer o nome delas, mas pelos relatórios você percebe que eram famílias que tinham um número de escravos, um exemplo, no máximo cheguei a encontrar aqui 20, 25, 30 escravos dentro de um núcleo familiar. Isso quer dizer que não tinha muitos escravos, mas também não quer dizer que foi por isso que a abolição foi feita.
BB: Na sua tese é registrada uma tensão entre abolicionistas e autoridades jurídicas. Isso chegou a atrapalhar o processo?
MF: Bom, é o seguinte, eu achei muito interessante quando eu pesquisei no jornal O Libertador que existiam pessoas de Fortaleza aqui, pelo menos o jornal deixa claro, observando a ação desses homens que estavam organizando esse processo. E tem uma matéria chamada “O Último dos Gracos”. E nessa matéria ele diz que o juiz de Mossoró não era de fato um homem imbuído de espírito libertário ,que era o Alcebíades Dracon, só que o jornal volta pra lá e diz também que o presidente de renda de lá, que eu esqueço o nome dele, que ele também não era. Uma semana depois o jornal publica em Fortaleza e diz que não, que errou, que o juiz Alcebíades Dracon é, de fato, um homem imbuído, mas que o presidente das rendas não era. Então veja você tem essa tensão, quando o grupo de Vingt-um Rosado reorganiza a memória, ele, Nonato e outros mais, eles começam a colocar abolicionistas que não estavam nem vivos ou que haviam passado por um processo de tensão dentro do próprio processo. Exemplo, Jeremias da Rocha Nogueira, quando você pega a visão de liberdade de Jeremias da Roça de Louveira, é uma coisa tão ilustrada, mas tão ilustrada que quando você vai olhar você vê, o republicanismo dele rompe com Rosas, com Uruguai e rompe com a Argentina, é muito mais um republicanismo ilustrado francês. Obviamente que era, dentro daquelas palavras, um homem que defendia uma determinada liberdade, mas não participou do processo. Não participou. A década de 1870, principalmente no período que ele viveu, esse processo de discussão sobre abolição ainda estava muito ligado ao eixo Rio São Paulo e ao Ceará. Mas aí eles vão construindo o próprio castelo, os próprios memoriais. O livro “História Social da Abolição de Mossoró” é um livro de memória. Ele juntou documentos e inseriu os novos, que eram eles. Então pra mim a abolição de Mossoró, ela é extremamente importante pra história da libertação dos escravizados no Rio Grande do Norte, é só você olhar quando o Natal fez. É muito importante! Mossoró era uma das regiões aqui do Oeste da Província que tinha o menor número de escravos, mas era a principal cidade. Então isso chama atenção de Fortaleza, isso chama a atenção de Pernambuco e é um ponto estratégico para destravar uma área extremamente importante, que é a Ribeira do Jaguaribe porque os abolicionistas estavam tendo uma certa dificuldade lá.
BB: Por causa de comércio?
MF: Por causa de comércio e por causa da própria pressão dos senhores de escravos, dos aristocratas em não libertar. Um processo grande em Fortaleza, ali naquela região, e um processo muito fraco, muito pequeno aqui. Isso não quer dizer que Mossoró não tem o seu brilho, tem! Qual foi o grande sonho da família, do grupo de memorialistas e historiógrafos Rosados? Era colocar a história do 30 de setembro da abolição dos escravos de Mossoró no cenário nacional e em certa medida eles não conseguiram. Vingt-un escreve, já nos seus últimos escritos, dizendo que por que que não chegou a tanto grandes historiadores não olharam? Para ter certeza o 30 de setembro no Rio de Janeiro só teve uma notinha. Uma notinha. Para cá é importante, óbvio. Mas dentro daquela dimensão que estava ocorrendo no Brasil, também é importante, mas é apenas uma parte. Essa ideia do pioneirismo é muito mais uma construção… É como o próprio professor Emanuel comentou o pioneirismo ele existe, mas ele não chega em outras esferas, ele é muito mais voltado pra cá pra essa província e pra relação com o Ceará, o Ceará não, o Ceará, eles conseguiram, de fato, pelo número de escravizados, pelas estratégias, mas que também é um processo que não sai dentro da linha dos brancos para os brancos e voltado para a transição do trabalho escravo ao trabalho livre.
BB: Qual o papel da imprensa local neste processo?
MF: Ah foi fundamental. A imprensa libertadora, a imprensa abolicionista, ela tem uma peculiaridade muito grande porque ela possuía um tipo de escrita muito específica. Ela era antenada com outros lugares. Um abolicionista como o Joaquim Nabuco, achava que a abolição não deveria sair da senzala. É até um absurdo você dizer isso, mas pra ele a abolição tinha que ser no parlamento, porque independente de qualquer coisa a agência do escravizado atemorizava a elite.
BB: Medo do que aconteceu no Haiti.
MF: Sim, medo do Haiti. O Haiti é uma revolução fantástica, interessantíssima, que foi extremamente destruída por forças inglesas e tudo mais. Mas, e tem um livro muito bonito sobre isso, que é “Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue”. Então a imprensa abolicionista ela tem um papel de fazer circular. De fazer circular, de fazer com que essas elites, que liam esses jornais, que investiam nesses jornais, abraçassem cada vez mais a causa do abolicionismo. Ao mesmo tempo a imprensa abolicionista ela travava lutas diárias. Por quê? Porque não era fácil ser jornalista, homens de imprensa, dentro de um contexto onde a fortuna de muita gente estava nos escravos. Então se você pega as narrativas de Jornal Libertador você vai ver a delicadeza, assim que eu quero dizer, a forma de escrita daqueles homens, era para um mundo diferente. Mas que mundo é esse? É o mundo do trabalho livre. É o mundo onde as pessoas tivessem agência ao mesmo tempo as grandes propostas dos abolicionistas no pós-abolição, que sai de muita gente de dentro da imprensa, não se efetivou porque a imprensa tinha força em fazer circular, mas quem decidia os mecanismos de efetivação da cidadania, e de introdução do negro nessa sociedade de classes não era imprensa.
BB: Sua tese também mostra uma grande influência cearense no processo abolicionista em Mossoró. O que pesou para isso?
MF: A logística, O papel de Almino Afonso lá. Almio Afonso foi um cara que foi perseguido. Ele perdeu o a função dele, foi pro Ceará e lá ele consegue montar toda a estrutura. Uma prova disso, é que quando o Romualdo vem pra cá, ele está vindo do Ceará. E outra coisa interessante na abolição, na libertação aqui é que só aparece uma mulher, a Amélia, que é a esposa do cara, que é o intendente. Então, a o Ceará, ele tem um papel fundamental de logística, de organização da narrativa jornalística, de mostrar para a população cearense e pra outros lugares que o jornal circulava, que Mossoró estava abraçando-as dentro do Rio Grande do Norte, Mossoró estava abraçando essa causa e que o Ceará fez simplesmente uma coisa: “ó, vamos lá, vamos jogar o fogo ali no palheiro”. E se você olhar todo o processo é isso: Mossoró, Caicó, Assu, até chegar em Natal, onde estava a maior quantidade,e e áreas circunvizinhas, onde estava a maior quantidade de escravizados. Pra mim a libertação dos escravos em Mossoró é fundamental para se constituir um calendário cívico nessa cidade. Se você parar pra pensar, Bruno, se comemora a emancipação, se comemora isso, mas o grupo de Vingt-un Rosado criou um calendário cívico como uma festa cívica e pública só se comemora 30 de setembro, 13 de junho, aí vem o voto feminino, vem as listas, né? É como se o passado da cidade só fosse isso, então veja: no momento em que esses homens estão tentando colocar o 30 de setembro no cenário nacional eles também estão construindo uma cultura cívica local e isso é muito interessante. Quando você escuta que a prefeitura, a Câmara Municipal, a própria família Rosado, a família de Escócia, fazendo um esforço gigantesco pra manter essa ideia de pioneirismo é de fato uma tentativa de manter uma memória que foi construída a partir de 1902 pelo jornal, depois abraçada como projeto pelos Rosados quando assumem 1948 e essa tentativa se configura como um uma comemoração cívica, cristalizada no museu, cristalizada no memorial cristalizada no cemitério, cristalizada em praças, em ruas e tudo mais. Eis o trabalho da memória.