O assédio judicial como forma de afrontar a liberdade de imprensa

Por Rogério Tadeu Romano*

Luís Guilherme Vieira e Cláudio Pereira de Souza Neto (Assédio judicial atenta contra liberdade de expressão e o direito à informação, in Consultor Jurídico, em 7 de fevereiro de 2024) afirmaram que “o exercício arbitrário do poder, por autoridades públicas ou por particulares, só se sustenta no longo do tempo se for capaz de silenciar a crítica pública. No Brasil contemporâneo, esse silenciamento tem sido buscado por diversos meios. Um é o ajuizamento de múltiplas ações de reparações de danos, com o mesmo objeto e contra o mesmo jornalista ou órgão de imprensa, com o propósito de lhes impor constrição econômica e de dificultar o exercício do direito de defesa.”

Há jurisprudência do STJ sobre o tema:

“(…) 4- Embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual, tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais. 5- O ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. Por esses motivos, é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à justiça. (…)” ( RE nº 1.817.845 – MS, el. p. acórdão min. Nancy Andrighi, J. 10 de outubro de 2019).

Lembrem-se de episódios como o ocorrido em 2007 contra a jornalista Elvira Lobato, que foi repórter da Folha por 27 anos. Em 2007, ela fez uma reportagem sobre o patrimônio empresarial de dirigentes da Igreja Universal do Reino de Deus, que lhe rendeu um Prêmio Esso no ano seguinte.

Em decorrência da publicação do texto, fiéis e pastores moveram mais de uma centena de ações judiciais contra a repórter e contra o jornal, em locais diferentes, com a alegação de danos morais. As ações não contestavam as informações contidas no texto.

Como recordou a Folha, em reportagem publicada, em 23.5.24, outro episódio que teve notoriedade envolveu o ingresso de 22 ações por magistrados com pedido de indenização contra repórteres do jornal Gazeta do Povo, em 2016, que publicaram reportagem sobre supersalários do Paraná.

O assédio judicial consiste na utilização do Poder Judiciário como forma de perseguição e intimidação, especialmente contra a imprensa ou contra vítimas de abusos que denunciam os crimes, vítimas de golpistas, e ainda, contra defensores dos direitos humanos, contra ambientalistas e entre outros profissionais da mídia e do direito à informação.

Trata-se de afronta ao direito fundamental de informar e a liberdade de imprensa. Trata-se de prática intimidatória, uma verdadeira censura prévia que leva o jornalista a ter que se deslocar, geralmente, a diversas cidades, onde correm esses processos para poder se defender.

Trata-se de um verdadeiro dano processual diante de uma litigância de má-fé.

Determina o artigo 80 do CPC, no inciso III, que é litigância de má-fé usar do processo para conseguir objetivo ilegal.

O artigo 79 do CPC de 2015 assim preceitua:

“Responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como autor, réu ou interveniente.”

A estratégia representa desvantagem para os réus que sendo jornalistas, costumam ser acionados como pessoas físicas, deixando de fora os veículos nos quais a reportagem foi publicada, como por exemplo, o jornal de onde são correspondentes, consoante texto publicado por Techno Jur, no Ius Brasil.

Afronta-se a liberdade de informação. Impede-se o acesso à informação por parte da imprensa, em tema necessário ao conhecimento da população.

A imprensa, como revelou José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª edição, pág. 219), à luz das lições de Afonso Arinos de Melo Franco (Pela Liberdade de imprensa, in Estudos de Direito constitucional, 1957, pág. 323), desempenha uma função social consistente, em primeiro lugar, em exprimir às autoridades constituídas o pensamento e a vontade popular, colocando-se quase como um quarto poder, ao lado do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, diante do que disse Foderato (Libertà di Stampa). A liberdade de imprensa se constitui uma defesa contra todo excesso de poder e um forte controle sobre a atividade político-administrativa e sobre manifestações de abuso de relevante importância para a coletividade, como revelaram Albino Greco (La libertà di stampa nell ordenamento giuridico italiano, 1974) e também Freitas Nobre (Comentários à lei de imprensa, 1978, páginas 6 a 8).

Há o direito à informação que dado a todos e que se revela um direito individual, mas já considerado no sentido coletivo.

Lembra-se que o artigo 5º, XIV e ainda o ainda o artigo 5º, XXXIII, da Constituição, dá a dimensão desse direito à informação. O primeiro declara assegurado a todos o acesso à informação.

O outro dispositivo trata do direito à informação mais específico, quando estatui que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Daí porque deve ser objeto de repulsas esse impedimento à liberdade de informação.

A conduta processual assim exposta procura trazer o medo e a desmoralização do profissional de imprensa, forçando-o a responder a vários processos.

É mister, pelo menos, que seja fixado um juízo que seja prevento para o julgamento das ações. Seria o do local de domicílio do jornalista quando houver a mesma causa petendi diante de vários pedidos diante da ação que for primeiro dada como ajuizada.

O assédio judicial foi objeto de uma ação proposta pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), que teve todos os pedidos acolhidos pelo Supremo Tribunal Federal.

O tribunal analisou conjuntamente uma ação da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) que alegou o uso abusivo de ações judiciais de reparação por danos materiais e morais.

Nesse caso, os ministros foram unânimes em acatar parcialmente os pedidos —incluindo a ministra Rosa Weber, hoje aposentada. O trecho rejeitado pedia que vítimas de assédio judicial fossem ressarcidas por danos morais e que houvesse uma multa para as pessoas que cometam esse tipo de conduta. Segundo o entendimento firmado, já existem instrumentos previstos para a proteção do réu e para a reparação de danos, cabendo ao juiz de cada caso concreto decidir a respeito.

Constitui, pois, o assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa.

O entendimento é do Supremo Tribunal Federal, que decidiu, no dia 22.5.24, que profissionais e empresas jornalísticas podem requerer a reunião de todas as ações sobre um mesmo fato em seu foro de domicílio quando identificado assédio judicial. Isso é forma de prevenção.

A prevenção é a razão da reunião desses processos e critério de fixação da competência.

Ensinou-nos Celso Agrícola Barbi (Comentários ao código de processo civil, volume I, tomo II, 1977, páginas 468 e 469) que “quando duas ou mais ações, da competência de juízes diferentes, tiverem de ser processadas e julgadas apenas por um deles, surge o problema de saber qual tem a preferência para ficar com todas elas. “

Ainda nos ensinou Celso Agrícola Barbi, obra citada, que nos casos em que não há essa determinação específica, o natural é obedecer ao critério cronológico entre as várias ações, isto é, quanto ao seu ingresso em juízo.

Vários momentos podem ser para tal escolhidos: o da assinatura da inicial, o do pagamento da taxa judiciária, o da distribuição da causa, o do despacho que a recebe ou que manda citar o réu, ou da efetiva citação deste.

O CPC de 1939 preferiu este último, ou seja, aquele em que for feita a citação inicial válida.

Esse critério do Código de 1939 foi mantido como princípio geral no CPC de 1973, no qual se diz, no artigo 219, que a citação válida torna prevento o juízo.

O CPC de 2015 assim prescreve sobre a prevenção:

Art. 59. O registro ou a distribuição da petição inicial torna prevento o juízo.

A prevenção ocorre com o registro ou a distribuição da petição inicial, pouco importando as atividades subsequentes.

Assim, devendo duas ações serem reunidas, será competente o foro da ação que foi proposta primeiro, pois este será o juiz prevento.

O ministro Barroso propôs a seguinte tese:

1) Constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa; 2) Caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio; 3) A responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos).

A matéria foi discutida nos autos das ADI 6.792 e ADI 7.055.

Trata-se de uma vitória para a liberdade de imprensa, que é um dos fundamentos da democracia.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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