Por Rogério Tadeu Romano*
Assim narrou Dora Kramer, em sua coluna para a Folha, em 24.9.24:
“Três deputados federais do PL estão denunciados ao Supremo Tribunal Federal pela Procuradoria-Geral da República por desvio de recursos das emendas parlamentares. Josimar Maranhãozinho, Pastor Gil, ambos do Maranhão, e Bosco Costa, de Sergipe, são acusados de peculato e extorsão em São José de Ribamar (MA).
Segundo o relato da PGR, mandavam recursos para a prefeitura em troca da devolução de uma parte do dinheiro em forma de comissão paga por empresas ou pelo cofre municipal.
Em grau mais grave, pois atinge a população de uma cidade, a prática é semelhante à “rachadinha”, na qual parlamentares levam funcionários dos respectivos gabinetes a dividir com eles o salário pago pelo Legislativo.
A diferença entre os deputados denunciados e boa parte de seus pares é, ao que tudo indica, que foram pegos. Dada a distorção de procedimentos na farra das emendas, outras investigações do mesmo teor estão em andamento.”
Rachadinha é peculato, um crime contra a Administração Pública.
Data vênia a chamada “rachadinha” é crime.
Acentuou o ministro Roberto Barroso que “rachadinha é um eufemismo para desvio de dinheiro público para peculato”.
É meio de desvio público em benefício próprio.
O caso envolve o que chamam de “rachadinha”, algo espúrio, que se amolda ao crime de peculato, previsto no artigo 312 do CP. Os vencimentos dos servidores envolvidos, à disposição de um parlamentar, são altíssimos, e são objeto de remanejamento pelos políticos que os nomeiam.
Pratica o peculato o servidor que se apropria de dinheiro embora pretenda devolvê-lo por ocasião da prestação de contas.
Pressuposto do crime é o fato de que o agente tenha a posse legítima de coisa móvel (dinheiro, valor ou qualquer outro bem). Não é a posse civil bastando a detenção.
Se o sujeito ativo não tiver a posse estamos diante de peculato-furto, previsto no artigo 312, § 1º, do Código Penal.
A posse da coisa, poder de disposição, deve resultar do cargo, sendo indispensável uma relação de causa e efeito entre o cargo e a posse.
A conduta deve recair sobre os objetos móveis enumerados pela lei penal. Se não for assim estar-se-ia perante uma conduta atípica.
São condutas típicas para efeito do crime de peculato: apropriação ou desvio, podendo o tipo configurar-se mediante o dolo específico, principalmente com relação ao peculato-desvio.
Apropriar-se significa assenhorear-se da coisa móvel, passando dela a dispor como se fosse sua.
Desviar é dar à coisa destinação diversa daquela em razão de que foi-lhe entregue ou confiada ao agente.
Fala-se ainda no crime de extorsão.
Art. 158 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:
Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
- 1º – Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma, aumenta-se a pena de um terço até metade.
- 2º – Aplica-se à extorsão praticada mediante violência o disposto no § 3º do artigo anterior. Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
- 3o Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o, respectivamente. (Incluído pela Lei nº 11.923, de 2009)
Dita a Súmula 96 do STJ:
O crime de extorsão consuma-se independentemente da obtenção davantagem indevida.
Referência:
CP, art. 158, caput.
Precedentes:
REsp 3.591-RJ (6ª T, 06.11.1990 — DJ 26.11.1990)
REsp 30.485-RJ (5ª T, 1º.03.1993 — DJ 22.03.1993)
REsp 32.057-SP (5ª T, 03.05.1993 — DJ 24.05.1993)
REsp 32.809-SP (5ªT, 12.05.1993 — DJ 07.06.1993)
RHC 3.201-ES (5ª T, 17.11.1993 — DJ 29.11.1993)
Terceira Seção, em 03.03.1994
DJ 10.03.1994, p. 4.021
O Código Penal de 1830 não previa a extorsão. O Código Penal de 1890, inspirado no Código de 1889, equiparava, para igual tratamento penal, a extorsão mediante sequestro, a extorsão propriamente dita e a pseudo-extorsão, que definia: “obrigar alguém, com violência
ou ameaça de grave dano à sua pessoa ou bens, a assinar, escrever ou aniquilar, em prejuízo seu ou de outrem, um ato que importe efeito jurídico (artigo 362, § 2º).
Para Guilherme de Souza Nucci (Código penal comentado,8ª edição, pág. 737), a extorsão é uma variante patrimonial muito semelhante ao roubo, pois também implica numa subtração violenta ou com grave ameaça de bens alheios. Explica que a diferença se concentra no fato de a extorsão exigir a participação ativa da vítima fazendo alguma coisa, tolerando que se faça ou deixando de fazer algo em virtude da ameaça ou da violência sofrida. Assim enquanto no roubo o agente atua sem a participação da vítima, na extorsão o ofendido colabora ativamente com o autor da infração penal.
O objeto da tutela jurídica neste crime é o patrimônio, bem como a liberdade e a incolumidade pessoal.
É vítima aquele que é sujeito à violência ou ameaça, o que deixa de fazer ou tolerar que se faça alguma coisa, e, ainda, o que sofre o prejuízo jurídico.
Para Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, parte especial, 7ª edição, pág. 306) a ação incriminada é, fundamentalmente, um constrangimento ilegal, que se pratica com o fim de se obter indevida vantagem econômica. Consiste em constranger alguém a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. Diz ele que o processo executivo da extorsão deverá ser a violência ou grav316 do Código Penal. Se o agente constrange alguém com o emprego de violência ou mediante grave ameaça, para obter proveito indevido, não pratica unicamente o crime de concussão, indo mais além, praticando um crime de extorsão (RT 329/100, 435/296, 475/276, 714/375).e ameaça. Ora, são precisamente os meios de execução que distinguem este crime do estelionato, pois, neste último, a vantagem indevida se obtém mediante fraude, pois o agente induz o lesado em erro, levando-o, assim, a praticar a ação que pretende.
Ensinou Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, volume VII, pág. 69 e 70) que “uma das mais frequentes formas de extorsão é a praticada mediante ameaça de revelação de fatos escandalosos ou difamatórios, para coagir o ameaçado a comprar o silêncio do ameaçador.
É a chantagem, dos franceses, ou blackmail dos ingleses”.
Certamente o constrangimento deve ser praticado com o propósito de obter, para si ou para outrem, indevida vantagem econômica. A questão do momento consumativo deste crime, perante a lei brasileira, levou a Magalhães Noronha (Crimes contra o patrimônio, I, 224) entender ser necessário a consumação, assim como algumas decisões (RF 181/343), para que o agente obtenha efetiva vantagem patrimonial. Nelson Hungria (obra citada, volume VII, pág. 71) e Oscar Stevenson (Direito penal, 1948, 36) entenderam que ser o crime formal, consumando-se com o resultado do constrangimento, sendo, para isso, irrelevante que o agente venha ou não a conseguir a vantagem pretendida.
Para Heleno Cláudio, conseguido o proveito que pretendia. O crime se consuma com o resultado do constrangimento, com a ação ou omissão que a vítima é constrangida a fazer, omitir ou tolerar que se faça, sendo um crime de perigo. Sendo assim o Código Penal Brasileiro ficou longe do modelo adotado nos Códigos Penais da Suíça e da Itália e inspirou-se no antigo § 253 do CP alemão, que foi modificado por lei de 29 de maio de 1943. Para essa corrente, o momento consumativo independia da obtenção da vantagem pretendida.
Porém, a nova redação dada ao § 253 passou a exigir que surja a vantagem patrimonial, para que o crime se consuma, orientação que é a mesma na Itália. A tendência seria considerar a extorsão um crime material cuja consumação dependeria do efetivo dano ao patrimônio.
No Brasil, há jurisprudência no sentido de que é irrelevante que o agente obtenha a vantagem indevida, bastando para a configuração do crime a simples atividade ou omissão da vítima (RT 447/394, 462/393, 513/412, dentre outros). O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 96, como visto, onde se diz que: “crime de extorsão consuma-se independentemente de obtenção da vantagem indevida”.
Mesmo formal é possível se pensar na hipótese de tentativa, uma vez que o crime não se perfaz em ato único. Ocorre a tentativa quando a ameaça não chega ao conhecimento da vítima (RT 338/103), quando esta não se intimida (RT 525/432) ou quando o agente não consegue que ela faça, tolere que se faça ou deixe de fazer alguma coisa (RT 481/363, 498/357, dentre outros).
O ato juridicamente nulo, que nenhum benefício de ordem econômica pode produzir, não configura o crime de extorsão. Haverá um crime impossível, sendo o agente punido por constrangimento ilegal. Bem alerta Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, volume II, 25ª edição, pág. 235) que pode-se figurar a hipótese de que o agente obtenha uma vantagem econômica pela prática de ato nulo (o pai resgata um documento em que há confissão da dívida de filho menor, que foi coagido a assiná-la, para honrar o nome da família).
A vantagem obtida no crime de extorsão há de ser indevida, pois se o agente tivesse direito haveria configuração de um crime de exercício arbitrário das próprias razões (RT 422/300, 467/391, 586/380). De toda sorte, deve a conduta visar a uma vantagem econômica injusta.
Distingue-se a extorsão do roubo. Para a extorsão deve haver para a vítima alguma possibilidade de opção, o que não ocorre quando dominada por agentes, é obrigada a entregar as coisas exigidas. No roubo, o mal é a violência física iminente e o propósito contemporâneo, enquanto na extorsão o mal é de ordem moral, futuro e incerto, como futura é a vantagem a que se visa (RT 454/430). Por sua vez, na extorsão, há a entrega da coisa, conquanto não a queira entregar. No estelionato, a vítima, de boa vontade, faz a entrega da coisa por estar iludida, sendo o seu consentimento viciado (RT 505/357). Já se entendeu que responde por extorsão, o agente que se intitula policial para, mediante ameaça, obter vantagem ilícita dos particulares (RT 586/309). É irrelevante se com a ameaça ou a violência concorrer ainda a fraude. Responde por extorsão que, fazendo-se fazer por fiscal, sob pretexto de irregularidades em estabelecimento mercantil, ameaça o comerciante de fechar-lhe a casa, obtendo, desse modo, ilícita vantagem patrimonial (Julgados TACSP, 25/1-71).
No crime de extorsão é admitida a continuidade quando se trata de crime contra diversas pessoas (RT 554/377). Já se entendeu que se a vantagem econômica é obtida de forma parcelada, ocorre uma única ação desdobrada em atos sucessivos, o que impede o reconhecimento da continuidade delitiva, sendo caso de crime único (RJTDACRiM 21/93-94).
O tipo subjetivo é o dolo, na vontade de constranger, mediante ameaça ou violência, ou seja, a vontade de coagir a vítima fazer, deixar de fazer, tolerar que se faça alguma coisa, dolo específico, a vontade de obter uma vantagem econômica ilícita, constituindo esta corolário da ameaça ou violência (RT 381/150).
Tudo isso é um escândalo.
Bem lembrou a Folha, em editorial, que “é salutar que PGR investigue emendas parlamentares.”
Tal entendimento é conclusivo sobre o tema, pois o Parquet precisa investigar, passo a passo, o uso dessas emendas.
*É procurador da República aposentado com atuação no RN.
Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.