Diplomacia e soberania ecológica frente ao PL da Devastação

Foto: Charlie Hamilton Jones

Por Andressa Morais*

O Projeto de Lei 2.159/2021 engenhosamente chamado de PL da Devastação propõe a revisão da legislação ambiental que apresenta desdobramentos sobre a diversidade de modos de existência em face de suas implicações que precipitam o avanço de interesses corporativos e privados frente o respeito às multiespécies constitutivas de nosso ecossistema.

No contexto contemporâneo a relação entre mudanças climáticas, preservação ambiental e desenvolvimento sustentável estruturam os principais eixos a serem debatidos na esfera pública em decorrência de inúmeros empreendimentos – as instalações de hidrelétricas, ferrovias e parques de energia eólica. E é dentro desse epicentro de decisões e interesses que o PL 2.159/ 2021 ganha propulsão midiática e política. Ele evoca a extinção de um conteúdo normativo que até aqui tentou garantir o respeito aos direitos fundamentais de povos originários, comunidades quilombolas, comunidades pesqueiras e demais populações vulneráveis: o licenciamento ambiental. Este dispositivo normativo infrajurídico tem permitido uma avaliação consistente e acurada para aferir os riscos ambientais, históricos e culturais que podem acometer uma comunidade e o ecossistema em contextos de obras de grande impacto.

Sabemos que há dimensões políticas, culturais, ambientais e vitais envolvidas nesse cenário e que exigem de nós uma justa preocupação. É preciso disputar as condições normativas de demandar o direito à vida e ao reconhecimento da diversidade de modos de existência afetados radicalmente por políticas predatórias e devastadoras que estão em curso. Lembramos aqui os perigos que enfrentamos ao descaracterizar e depredar um rio, uma praia ou uma comunidade indígena. A sequência mais imediata de uma construção sem parâmetros de riscos promove não só o desaparecimento de comunidades inteiras, mas põe em marcha o desaparecimento das condições de habitabilidade e convivialidade da qual somos codependentes.

Inspirados pela resistência de povos tradicionais à exploração dos territórios habitados, a literatura das “novas antropologias” nos convida a refletir sobre as relações constitutivas entre múltiplos existentes para garantir as condições de uma diplomacia operante, aquela que considera a vida para além do humano, mas que ainda assim afeta a humanidade. Discute-se de forma muito acalorada o quão podemos inovar e modernizar o mundo habitado pelo desenvolvimento tecnológico, mas tratar territórios como meros instrumentos e recursos inviabiliza a compreensão adequada acerca da relação interdependente que nos reúne. O mar, as florestas e as águas doces não existem apenas como meros sistemas de exploração. Para além de uma perspectiva meramente instrumental e utilitária, esses territórios organizam redes socioecológicas e contribuem para o equilíbrio entre seres diversais que participam e coexistem em um mesmo ambiente. Nesse sentido, quando as normas de licenciamento ambiental entram em funcionamento, previne-se contra a depredação, o desaparecimento, o desrespeito e os modos práticos de desorganizar o habitat desses ecossistemas.

O território não pode ser reduzido à fonte inerte de recursos para sustentar o liberalismo tardio e o capitalismo neoliberal através de sua pilhagem e exploração, mas precisa ser reconhecido em sua composição interdependente das nossas relações com esses modos de existência que são alvo de ataques. A proposição do PL 2.159/2021 recai sobre mudanças nos processos de licenciamento ambiental no Brasil, reduzindo as exigências para liberar obras que podem causar impactos substantivos ao meio ambiente e às populações residentes.

Não esqueçamos que as transformações socioambientais em amplo desenvolvimento já refletem para nós os infortúnios na forma das catástrofes ambientais. Inúmeras comunidades tradicionais não estabelecem essa fronteira rígida entre vida e não-vida, pois habitam o mundo em confluência com os entes não-humanos que ali coexistem (animais, plantas, florestas, mar, rios, montanhas, dunas). Ao invés de vivermos uma vida em completo isolamento de outros modos de existência, devemos nos lembrar que os crimes ambientais representam riscos iminentes à segurança e à soberania do que ainda chamamos de “terra”, esta grande aldeia povoada por múltiplos “mundos”.

*É Antropóloga e professora do Instituto Humanitas da UFRN.

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