A democracia militante e o caso brasileiro

Golpe em Brasília expôs insubordinação de militares (Foto: Ton Molina / AFP)

Por Rogério Tadeu Romano*

A democracia precisa reagir aos recentes ataques perpetrados por golpistas de extrema-direita.

Denis Lerrer Rosenfield, em artigo divulgado no Estadão, em 16.1.23, disse bem:

“Situações de exceção exigem medidas excepcionais. Não se combate a violência, especialmente de cunho autoritário ou totalitário, com instrumentos paliativos, como se se tratasse de um mero acidente de percurso de pessoas inocentes ou supostamente bem-intencionadas. A defesa da democracia requer atitudes firmes, que não compactuem com o crime, a desordem e, enfim, com a sublevação ou insurreição. Houve sim uma tentativa de golpe conduzida pela extrema direita, pelo bolsonarismo e seus apoiadores, que se insurgiram contra o resultado das eleições, o que vale dizer contra a própria Constituição.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tomou as medidas acertadas dada a gravidade da crise institucional que se armou. Não compactuou com a violência e chamou à responsabilidade os agentes políticos e policiais, assim como apoiadores financeiros, que sustentaram a tentativa de subversão das instituições. Alguns o fizeram por convicção, outros por omissão, outros ainda por mero oportunismo. Não importa. Puseram assim a democracia em risco, sob o manto de uma suposta tolerância com as “manifestações”.

……

“Cabiam sim medidas excepcionais, como as tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes e pelo presidente Lula da Silva. Manifestantes/golpistas devem ser sim presos e julgados, não podendo haver aqui nenhuma tergiversação. Se isso não for feito, dá-se ainda mais força para que tais atos se repitam. Ou se para agora, ou o futuro se tornará ainda mais incerto. Que mais de mil pessoas sejam presas, é da natureza da defesa democrática, fundada na responsabilização desses supostos “revolucionários”, boa parte deles já solta uma vez identificados, sobretudo crianças e idosos. A analogia com campos de concentração é literalmente grotesca. Alguém foi morto? Alguém foi torturado? Quem são esses pais e mães que levam seus filhos a manifestações golpistas? Não deveriam ser eles também responsabilizados? Quando a polícia cumpre o seu dever, procura-se denunciá-la.”

Surge na figura de Alexandre de Moraes, uma espécie de juiz universal com relação à defesa da democracia contra esses atos golpistas.

O princípio da democracia destina-se, pois, a amarrar um procedimento de normatização legítima do direito. Ele significa, portanto, que somente podem pretender ter validade legítima leis juridicamente capazes de ter o assentimento de todos os parceiros de direito em um processo de normatização discursiva. O princípio da democracia contém, desta forma, o sentido performativo intersubjetivo necessário da prática da autodeterminação legítima dos membros do direito que se reconhecem como membros iguais e livres de uma associação intersubjetiva estabelecida livremente.

Na lição de Habermas, o princípio da democracia pressupõe preliminarmente e necessariamente a possibilidade da decisão racional de questões práticas a serem realizadas no discurso, da qual depende a legitimidade das leis.

Para Habermas, é equitativa a ação quando a sua máxima permite uma convivência entre a liberdade do arbítrio de cada um e a liberdade de todos conforme uma lei geral.

Na democracia há a permanente realidade dialógica. No totalitarismo rompe-se o diálogo, aniquilam-se as liberdades. Desconhecem-se direitos.

Disse ainda Rosenfield naquele artigo citado sobre a democracia militante:

“A democracia marcha para a sua extinção quando se curva a formalidades carentes de substância, que assumem, então, a função de desintegração das instituições republicanas. Projetos autoritários e totalitários frequentemente se utilizam de instrumentos democráticos para minar a própria democracia.”

Pensemos em barreiras legais à ação daqueles que advogam contra os princípios e as instituições democráticas. Nesse sentido, Karl Loewenstein propôs, em 1937, a controvertida doutrina da “democracia militante”, incorporada pela Lei Fundamental em 1949 e aplicada pela Corte Constitucional alemã nas décadas seguintes. Foi o caso do combate a organizações terroristas de esquerdas que atuaram na década de 1970 na Alemanha e no combate à extrema-direita, que tem por objetivo acabar, solapar, a democracia.

Por essa doutrina, é possível investigar e mesmo restringir direitos de grupos que ameaçam a democracia, como agora ocorre com os radicais no Brasil.

O grande exponente da teoria da democracia de militância foi o constitucionalista alemão Loewenstein (1937), o qual defendia que não deveriam sequer participar da competição política os partidos políticos que não se coadunassem com o regime democrático.

Karl Loewenstein é o teórico da democracia militante (Foto: autor não identificado)

Judeu alemão, teve ele de fugir de sua terra natal, refugiando-se nos EUA, onde se tornou professor universitário e consultor do Departamento de Estado.

Sobre essa doutrina da democracia de militância, nos ensina Tarsila Ribeiro Marques Fernandes (Democracia Defensiva, in RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 133-147 abr./jun. 2021):

“As premissas da democracia militante, portanto, eram a de que o regime democrático deveria contar com mecanismos (ainda que antidemocráticos) para evitar que agentes políticos com ideais totalitários de poder, tais como Hitler, utilizassem instrumentos democráticos para chegar ao poder. Assim, deveriam ser criados meios para que a democracia se defendesse dos partidos que buscassem alçar-se ao poder para destruí-la. Isso porque o fascismo, classificado por Loewenstein (1937) como uma técnica política, só conseguiria ser vitorioso em razão das condições favoráveis oferecidas pelas instituições democráticas, em especial em virtude da tolerância democrática.

De acordo com Loewenstein (1937, p. 424):

A democracia foi incapaz de proibir aos inimigos de sua própria existência o uso de instrumentalidades democráticas. Até muito recentemente, o fundamentalismo democrático e a cegueira legalista não estavam dispostos a perceber que o mecanismo da democracia é o cavalo de Tróia pelo qual o inimigo entra na cidade. Ao fascismo, disfarçado de um partido político legalmente reconhecido, foram concedidas todas as oportunidades das instituições democráticas.

Com base na teoria da democracia militante, partidos políticos com objetivos antidemocráticos deveriam ter o seu registro negado ou cassado, em nome da defesa do próprio regime democrático. A necessidade de uma democracia militante, portanto, surge do imperativo de autoproteção e autopreservação da democracia (LOEWENSTEIN, 1937, p. 429).”

Isso pode-se chamar de democracia militante.

Dir-se-ia que as democracias constitucionais já estabeleceram mecanismos voltados a conter ataques aos seus pilares fundamentais. Mas, a democracia, como forma de convivência, tem sempre a sua volta o espectro de pensamentos contra ela voltados. Para tanto, há, como no Brasil, com sua Constituição-cidadã de 1988, a fixação de cláusulas pétreas que defendem a sua integridade contra qualquer possibilidade de alteração. Isso é um indicativo a Corte Constitucional, suprema guardiã da Carta Democrática, para a sua atuação. Um desses pontos que não podem ser objeto de alteração é o respeito a independência dos poderes.

Tal serve de alerta para o Brasil onde temos um Executivo em flerte com a ditadura e o autogolpe.

Disse ainda Tarsila Ribeiro Marques Fernandes (obra citada):

“Por essas razões, para que a democracia possa sobreviver, é imprescindível que mecanismos sejam criados no ambiente democrático a fim de restringir a liberdade de grupos ou atores políticos que, por meio de ideias totalitárias ou intolerantes, ameacem a própria democracia. Nesse ponto, percebe-se que as ideias de Loewenstein e de Popper se aproximam no sentido de defender a necessidade de exclusão de certos grupos políticos como forma de sobrevivência da democracia. De uma maneira objetiva, pode-se concluir que a lógica tanto da democracia militante quanto do paradoxo da tolerância é no sentido de que a democracia não pode transformar-se num pacto suicida, razão pela qual devem ser garantidos mecanismos para a legítima defesa da ordem democrática.”

Não há convivência entre a extrema-direita fascista e a democracia, homenageada pela Constituição de 1988 que elegeu o Estado Democrático de Direito como meio de convivência de nossa sociedade.

No Brasil, o chamado inquérito em que o Supremo Tribunal Federal apura a existência e materialização de atos antidemocráticos é um exemplo claro da aplicação dessas teses da democracia defensiva.

Aliás, os julgamentos preferidos pelo STF nas ADIs nos 6.347, 6.351 e 6.353 e na ADPF no 572 demonstram que a teoria da democracia defensiva, ainda que sem referência ao seu nome, já tem sido objeto de aplicação prática. Ademais, esses julgamentos evidenciam que a Suprema Corte brasileira está consciente do momento de crise aguda que o País enfrenta e do seu papel como um dos garantidores da democracia.

Em caso de erosão da democracia e de hipertrofia de algum dos Poderes, as demais instituições devem agir de forma firme e proporcional ao ataque sofrido.

Temos para tanto, como defesa, nossa Constituição-cidadã, que é o único caminho viável e democrático para a superação da crise.

Na democracia brasileira, sob o bojo da Constituição-cidadã de 1988, não há lugar para Jair Messias Bolsonaro, líder da extrema-direta.

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