Por Marcelo Alves Dias de Souza*
Grosso modo, juridicamente, réu é “aquele que é chamado a juízo para responder a uma ação cível ou criminal”. E, de uma maneira bastante informal, no imaginário popular, é o “autor de crime”. No palco do direito, é personagem de tristíssima figura. Mas sempre antipatizada? Protagonizando inúmeras estórias, a resposta é depende.
De início, lembremos o padrão criminoso lombrosiano – que advém de Cesare Lombroso (1835-1909), o médico, psiquiatra, antropólogo e criminologista italiano, autor de “O homem delinquente” (1876), o iniciador da antropologia criminal e fundador da Escola Positiva do Direito Penal. No nosso imaginário, Lombroso é sobretudo lembrado pela sua descrição do “criminoso nato”, como parte de uma classificação, toda sua, dos delinquentes. Aquele sujeito disforme, assustador até, que nos acostumamos a chamar de lombrosiano. A classificação do professor italiano não resistiu por muito tempo às críticas dos estudiosos, é vero. Mas Lombroso deu muito material para a imaginação dos literatos, como é o caso do naturalista Émile Zola (1840-1902), com “A besta humana” (1890). Entre nós, temos Pedro Américo (1843-1905), gênio da pintura, mas também escritor, que vivia na Itália quando as ideias de Lombroso perambulavam pelos arredores “civilizados”. No seu “O Foragido” (1899), a curandeira Cericê é apresentada como um tipo degenerado, à moda das feiticeiras, deveras lombrosianas, da Itália mística de outrora.
Entretanto, na literatura, também temos autores de crimes bárbaros que não se parecem com o criminoso nato lombrosiano. Já na mitologia grega, temos Medéia, filha de Eetes, rei da Cólquida, que, apaixonada, ajudou Jasão, o líder dos argonautas, a conseguir o velocino de ouro. Como narra Lemos Britto (1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira” (Livraria José Olympio, 1946), “Eetes possuía o velocino de ouro, que Jasão e os argonautas buscavam, e o mantinha guardado por um dragão. A feiticeira Medéia apaixonou-se pelo herói e, depois de ajudá-lo a realizar seu intento, seguiu com o grupo para a pátria de Jasão, Jolcos, na Tessália. Mais tarde, Jasão apaixonou-se por Glauce e abandonou Medéia. Inconformada, ela estrangulou os filhos que tivera com Jasão e presenteou a rival com um manto mágico que se incendiou ao ser vestido, matando-a”. O mito restou conhecido em obras de Eurípides, Ésquilo, Ovídio, Sêneca e, mais modernamente, de Corneille e até mesmo de Pier Paolo Pasolini e do nosso Chico Buarque. A mais célebre versão é a tragédia “Medéia” (431 a.C.), do primeiramente citado Eurípides (480-406 a.C.). De toda sorte, repetindo Lemos Britto, “no imaginário coletivo, Medéia persiste sempre como o arquétipo da mulher desesperada de amor a quem o ciúme conduz às mais alucinadas e terríveis ações criminosas, sem contudo apresentar a frieza emocional caraterística do criminoso nato, pois representa, sim, a criminosa passional por excelência”.
Aliás, temos réus da literatura que merecem toda a nossa simpatia, sendo esse o caso do bancário Jofeph K., de “O processo” (1925), para nós do direito o mais badalado dos romances de Franz Kafka (1883-1924). Jofeph K., por um “crime” ou por razões nunca reveladas, nem a ele nem ao leitor, é preso, processado e condenado por um misterioso e inacessível tribunal. Algo “kafkiano”, digo, sendo hiperbolicamente tautológico. Desse romance, para tentar ilustrar a problemática da denegação da justiça a muitos daqueles que são de algum delito acusados, lembro a parábola “Diante da Lei”, que consta do capítulo 9 de “O processo” (e também publicada, separadamente, no livro de contos “Um médico rural”, de 1919). Texto central na obra de Kafka, um dos preferidos do próprio autor, ele narra a impotência de um homem do campo, mas que poderia facilmente ser um cidadão da cidade (sobretudo se preto e pobre), diante do poderoso porteiro que vigia a entrada para a “lei”.
Dito isso, sugiro a releitura de Kafka e do seu “O processo”. Que aprendamos sobre as burocracias do direito, em especial, os seus aparelhos policial e judicial, e sobre a impotência do cidadão-réu em relação a elas. Que aprendamos algo sobre o fim ético ou moral da atualíssima parábola “Diante da Lei”.
*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.
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