A PEC do calote

Arthur Lira capitaneou aprovação da PEC do calote (Foto: reprodução)

Por Rogério Tadeu Romano*

A ideia do governo de financiar o novo programa social Renda Cidadã com recursos hoje reservados ao pagamento de precatórios – valores devidos após decisão definitiva na Justiça está sendo vista como pedalada fiscal por apenas adiar dívidas consideradas certas e driblar o teto de gastos, que limita o avanço das despesas à inflação. É a PEC dos precatórios, conhecida como “PEC do calote”.

Aliás, Merval Pereira(Fora de Controle, in O Globo, em 4 de novembro de 2021) disse bem que “além dos dados econômicos, há aspectos político-jurídicos que mostram o absurdo representado por essa emenda constitucional que pretende autorizar o governo a dar um calote em parte dos precatórios já autorizados pela Justiça.”

Ainda para compreender o problema concluiu ainda Merval Pereira:

“As “emendas do relator” e os fundos eleitorais milionários são despesas de que os políticos, especialmente os do Centrão, também não abrem mão, criando uma falsa situação de calamidade financeira para fazer com que a sociedade engula decisões desnecessárias.”

O não cumprimento de precatórios é uma afronta à Constituição.

Na matéria reza o artigo 100 da CF:

Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

A legislação processual civil prevê um procedimento especial para as execuções por quantia certa contra a Fazenda Pública o qual não tem a natureza própria da execução forçada, visto que se faz sem penhora e arrematação.

Não havendo oposição de embargos, ou sendo estes rejeitados, o juiz, através do Presidente do Tribunal Superior, expedirá a requisição de pagamento, que tem o nome de precatório. O juiz de primeiro grau não requisita diretamente o pagamento, mas dirige-se, a requerimento do credor, ao Tribunal que detém a competência recursal na matéria. Em sendo assim é obrigatória a inclusão, no orçamento de verba necessária ao pagamento dos débitos constantes dos precatórios apresentados até 1º de julho do ano anterior, como já era previsto na Constituição de 1967, Emenda Constitucional nº 1, no artigo 117.

O artigo 100, parágrafo quinto, da Constituição de 1988 assim dita:

  • 5º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.

Precatório é uma espécie de requisição de pagamento de determinada quantia a que a Fazenda Pública foi condenada em processo judicial, para valores totais acima de 60 salários mínimos por beneficiário.

Os precatórios podem ter natureza alimentar, quando decorrerem de ações judiciais relacionadas a salários, pensões, aposentadorias ou indenizações, ou não alimentar, quando tratam de outros temas, tais como desapropriações e tributos.

Ao receberem os depósitos das entidades devedoras, os Tribunais responsáveis pelos pagamentos organizam listas, observando as preferências previstas na Constituição da República (débitos de natureza alimentar cujos titulares tenham 60 anos de idade, sejam portadores de natureza grave ou pessoas com deficiência) e a ordem cronológica de apresentação dos precatórios.

Ex-secretário do Tesouro Nacional, Carlos Kawall, diretor do Asa Investments, avaliou que o adiamento dos precatórios é uma “pedalada fiscal”, uma vez que a dívida não paga continua existindo. “Tem gente dizendo que é pedalada ( o adiamento de pagamento dos precatórios). É pedalada. Mas é pior do que isso, é calote. Se há dinheiro, mas não pago a dívida na data combinada para abrir mais espaço para gastar, lá na frente, pode fazer isso de novo e não pagar nunca”, disse.

Algumas questões importantes ficaram ausentes da LRF, como, por exemplo, o rigor no pagamento de precatórios – uma das maiores vergonhas fiscais do País.

São dívidas que o setor público tem por decisões do Poder Judiciário, que eram sistematicamente desrespeitadas. Trata-se de valores estimados para Estados e municípios em R$ 100 bilhões, que foram presenteados pelo Congresso Nacional pela Emenda Constitucional n.º 62, de 9 de dezembro de 2009, que instituiu, na prática, o calote oficial nos precatórios, reduzindo sobremaneira esse débito ao obrigar parte dos credores a disputar seus direitos na bacia das almas dos leilões de deságio e alongando ainda mais os pagamentos ao estabelecer porcentuais irrisórios sobre a receita dos entes federados.

A partir da Constituição de 1988 tivemos algumas moratórias.

O poder constituinte originário, por meio do art. 33 do ADCT, decretou, pela primeira vez, a moratória para pagamento de precatórios em 8 (oito) parcelas anuais nos seguintes termos:

“Art. 33. Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição.

Parágrafo único. Poderão as entidades devedoras, para o cumprimento do disposto neste artigo, emitir, em cada ano, no exato montante do dispêndio, títulos da dívida pública não computáveis para o efeito do limite global de endividamento”.

Para assegurar a fonte de receitas para a realização de despesas com os pagamentos de parcelas anuais o parágrafo único, do art. 33, acertadamente, possibilitou a emissão de títulos da dívida pública pelo ente político devedor, títulos esses não computáveis para efeito de limite global de endividamento de que cuida o inciso VII, do art. 57 da CF.

Como consequência dos desvios de recursos propiciados pela primeira moratória, legitimada pelo poder constituinte original, houve necessidade de decretar a segunda moratória para pagamento dos precatórios em 10 (dez) parcelas anuais, por meio da EC nº 30/2000 que inseriu o art. 78 no ADCT2, nos seguintes termos:

“Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos

………………………………………………………

  • 2º. As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas ate o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora”.

A grande falha dessa moratória é que não se previu fonte de custeio para pagamento das parcelas anuais, contrariando regra elementar de Direito Financeiro. A cada moratória os defeitos são agravados, tanto no que diz respeito aos vícios jurídicos, como no que tange a dilação do prazo de pagamento, de oito anos para dez anos.

A terceira moratória foi decretada pela EC n° 62/2009 que acrescentou o art. 97 ao ADCT contendo 18 parágrafos. É a moratória mais violenta em termos de desrespeito aos princípios constitucionais protegidos por cláusulas pétreas e a mais confusa de todas elas.

Precatório é despesa obrigatória, fruto de decisão judicial. Fixar limites para o seu pagamento significa escolher pagar a alguns dos credores da União.

Em 2013, o STF declarou inconstitucional esse dispositivo, que está no artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Na época, a maior parte dos ministros da Corte acompanhou o relator, ministro Ayres Britto (que já havia se aposentado), e considerou o artigo inconstitucional por afrontar cláusulas pétreas, como a de garantia de acesso à Justiça, a independência entre os Poderes e a proteção à coisa julgada.

O ministro Luiz Fux, atual presidente do STF e que na época foi redator do acórdão, considerou que o dispositivo resultava em desrespeito à duração razoável do processo, uma vez que o credor quer um resultado palpável para a realização do seu direito de receber a quitação da dívida, já devidamente reconhecida pela decisão judicial.

Em 2015, o STF modulou os efeitos da decisão para dar “sobrevida” a regimes especiais de pagamento que já haviam sido adotados por Estados e municípios enquanto o julgamento estava em curso. Naquela decisão, a Corte deu prazo de mais cinco anos para os parcelamentos, a contar a partir de 1º de janeiro de 2016 – ou seja, o prazo se encerraria no fim de 2020.

“Modulam-se os efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade proferidas nas ADIs nº 4.357 e 4.425 para manter a vigência do regime especial de pagamento de precatórios instituído pela Emenda Constitucional nº 62/2009 por 5 (cinco) exercícios financeiros a contar de primeiro de janeiro de 2016”, diz a decisão de 2015.

“Como em toda e qualquer decisão que fixa prazo para o Estado atuar, estão em jogo a efetividade da Constituição Federal e a credibilidade do STF”, afirmou Fux. “Daí a importância de o pronunciamento de hoje fixar mecanismos que criem incentivos sérios para retirar a Fazenda Pública da situação confortável com que vinha lidando com a administração de sua dívida originada por condenação judicial. Deixar de pagar precatórios não deve jamais voltar a ser uma opção para governantes”.

Vencido o prazo fixado (fim de 2018), o ministro afirmou que deve ser imediatamente aplicável o artigo 100 da Constituição Federal, que prevê a possibilidade de sequestro de verbas públicas para satisfação do débito quando não ocorrer dotação orçamentária. Ele chamou a atenção para a necessidade de o STF rever sua jurisprudência sobre a intervenção federal em caso de inadimplência de governos locais com precatórios. Para o ministro, a intervenção, ainda que não resolva a questão da falta de recursos, serviria como incentivo ao administrador público para manter suas obrigações em dia. Segundo a jurisprudência da Corte, a intervenção federal está sujeita à comprovação do dolo e da atuação deliberada do gestor público.

“No caso dos precatórios, essa jurisprudência, ainda que inconscientemente, acabou alimentando a inadimplência do poder público”, observou. “O não pagamento do precatório, desde que despido de dolo, tornou-se prática que não envolve qualquer custo. O custo do não pagamento – a intervenção federal -, que existia em estado potencial na legislação brasileira, foi reduzido a absolutamente zero”, afirmou.

Diante disso é necessário que as autoridades brasileiras tenham o necessário cuidado diante do histórico dessas moratórias no sentido de não se envolverem em conduta.

Concluo por dizer que essa “PEC do Calote”, caso passe no Congresso Nacional, encontrará um caminho certo: o STF no seu poder-dever de controle da constitucionalidade.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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