A pichação é crime

Forte dos Reis Magos é patrimônio tombado (Foto: Pedro Trindade/Inter TV Cabugi)

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O FATO

Trago reportagem do portal da Tribuna do Norte, em 14.9.23:

“A Polícia Civil do Rio Grande do Norte (PCRN) iniciou a análise de imagens de segurança no inquérito que investiga a pichação feita na fachada do Forte dos Reis Magos. No início desta semana, segundo o Órgão, uma perícia foi realizada no local junto ao Instituto Técnico Científico de Perícia (Itep) e pessoas já foram ouvidas. Atualmente, a investigação segue sob sigilo na 2ª Delegacia de Polícia de Natal e resulta de um pedido realizado pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) à Delegacia Especializada em Proteção ao Meio Ambiente (Deprema) no último dia 8 de setembro.”

Um dos muros do Forte recebeu as seguintes frases: “Não ao PL/2903″ e “Aqui é terra indígena”

II – O FORTE DOS REIS MAGOS

O Forte dos Reis Magos, localizado na cidade de Natal, é um monumento classificado como bem tombado pelo patrimônio histórico, sendo um local importante para a cultura e o turismo do estado.

A pichação realizada envolve conduta criminosa.

Trago a orientação do IPHAN com relação a esse importante bem tombado:

“A fortificação – conhecida como Forte dos Reis Magos – possivelmente teve sua construção iniciada apenas em 1603. Em 1630, era mencionada como totalmente concluída, na sua forma atual. Acredita-se que seu projeto e os acréscimos posteriores, sejam de autoria do engenheiro-mor do Brasil, Francisco de Frias Mesquita. De 1634 a 1654, esteve sob o domínio holandês, chamando-se Castelo Ceulen. Ao longo dos séculos as condições do Forte se deterioraram e não houve nenhuma modernização ou ampliação de sua artilharia.

Em 1894, o Forte dos Reis Magos deixou de ser considerado um elemento defensivo para o Exército e foi desativado em 1904, mas chegou a ser usado durante a 1ª Guerra Mundial. Passou para a guarda da Marinha no início do século XX, quando ocorreu a instalação de um farol que funcionou, também, como morada do faroleiro e sua família. Após sofrer um grave processo de degradação, o Forte foi tombado pelo Iphan, em 1949, e restaurado entre 1953 e 1958.

Na década de 1960, passou a ser administrado pela Fundação José Augusto/Governo Estadual do Rio Grande do Norte.

Em 2013 a gestão da fortificação passou para o IPHAN que realizou pesquisa arqueológica e histórica e elaborou o projeto de restauro da edificação, visando a preservação de um dos bens culturais mais expressivos do Brasil, permitindo sua apropriação pela sociedade.

Em 2018, em acordo entre a União e o Governo do Estado do Rio Grande do Norte, a gestão do Forte dos Reis Magos voltou a ser de responsabilidade da Fundação José Augusto.”

III – O TOMBAMENTO

O tombamento, objeto do Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, é efetivado por ato meio de ato administrativo, cuja competência é dada ao Poder Executivo. Na esfera da União, caberá ao IPHAN.

Tombar significa arrolar, inventariar, registrar.

O tombamento é limitação administrativa, é ato de restringir um bem que geralmente é público e que possui importância histórica e cultural para toda a sociedade, ontem, hoje e amanhã, protegendo-se o patrimônio histórico e artístico nacional, um verdadeiro direito difuso. Pode incidir sobre bem público ou privado. Mas, explica-se que o dano contra coisa tombada pertencente à União, ao Estado e ao Município é punido na forma do artigo 163, parágrafo único, III.

No artigo 21 do Decreto-lei 25/35 estipula-se que os atentados cometidos contra esses bens são equiparados aos praticados contra o patrimônio nacional.

Os bens tombados devem ser inscritos nos livros do tombo, por determinação do artigo 4º do Decreto-lei nº 25/37.

IV – O CRIME DE DANO CONTRA O PATRIMÔNIO NACIONAL

Tem-se o artigo 165 do Código Penal:

Art. 165 – Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

Trago, outrossim, o artigo 166 do Código Penal:

Art. 166 – Alterar, sem licença da autoridade competente, o aspecto de local especialmente protegido por lei:

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.

No crime aqui se pune a título de dolo, dolo genérico, não havendo forma culposa. Não se distingue o dolo, neste crime, do dolo no crime de dano comum.

Protege-se o ambiente, abarcando em sua conceituação o patrimônio histórico, artístico e arqueológico, com ênfase conferida aos arquivos, registros, museus, bibliotecas, pinacotecas, instalações cientificas e outros bens especialmente tutelados por lei, ato administrativo ou decisão judicial.

O crime comporta tentativa.

Pode cometê-lo qualquer pessoa, inclusive o proprietário. Ora, ele, proprietário poderá ser sujeito ativo do crime de dano se houver um direito real de terceiro sobre a coisa.

Sujeito passivo do crime é a pessoa jurídica de direito público, pois se trata de crime de lesão contra o patrimônio intelectual, e ainda o proprietário, o possuidor, quando houver posse de coisa desmembrada do domínio.

A proteção penal se exerce em relação ao patrimônio histórico, artístico e arqueológico nacional, pelo seu significado ou pela sua expressão na vida da coletividade. como ensinou Magalhães Noronha (Crimes contra o Patrimônio, primeira parte, 481), “esse patrimônio é sobretudo de natureza ideal ou subjetiva”, posto que se tutele ainda a inviolabilidade física ou intelectual a coisa.

Na lição de Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, Parte Especial, artigos 121 a 212, 7ª edição, pág. 350), a coisa de valor histórico, artístico ou arqueológico, objeto da ação de crime previsto no artigo 165 do Código Penal, pode, por sua vez, pertencer ao patrimônio da União, do Estado ou do Município. Nesse caso, aplica-se apenas o artigo 165 do CP, que é regra especial em relação ao dano comum, embora, por equívoco, seja menor a pena cominada. O concurso formal que o ministro Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, VII, 112) pretendia, na hipótese, destina-se a resolver a incongruência que resulta da desproporção das penas.

Ensinou, outrossim, Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 351) que o dolo, no caso do artigo 165 do CP, envolve a consciência do tombamento da coisa danificada. Mas a ignorância exclui o dolo.

No crime previsto no artigo 166 do Código Penal, o objeto material é o aspecto de local especialmente protegido por lei. Aspecto é a aparência, a fisionomia exterior. Local é o lugar. Deve haver lei protegendo especialmente o local. O verbo alterar tem o significado de mudar. A figura penal ainda contém o elemento normativo sem licença da autoridade competente, que torna atípica a conduta quando existir autorização. O elemento subjetivo é o dolo, admitindo-se a tentativa.

V – O CRIME AMBIENTAL

A propósito, cabe aplicação do artigo 65 da Lei 9.605/98:

Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: (Redação dada pela Lei nº 12.408, de 2011).

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Redação dada pela Lei nº 12.408, de 2011)

  • 1o Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 12.408, de 2011)
  • 2o Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. (Incluído pela Lei nº 12.408, de 2011)

Protege-se o patrimônio público ou privado do ponto de vista estético.

O crime é comum e o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. Por sua vez, o sujeito passivo poderá ser pessoa jurídica de direito público ou o particular proprietário do bem jurídico pichado.

Observe-se o núcleo verbal do tipo penal, alternativamente objeto de incriminação: a) pichar (fazer marcas, sinais, escrever, desenhar, mediante o emprego de tinta ou spray); b) grafitar (realizar pinturas, desenhos, com conotação artística); c) conspurcar (sujar, macular) por outro meio (lançamentos de substâncias, colagens de cartazes, inclusive publicitários).

Bem disse Luiz Régis Prado( Crimes contra o ambiente, São Paulo, RT, 1998, pág. 197) que objetos materiais são as edificações (construções, prédios), monumentos urbanos (estátuas, bustos, memoriais), públicos ou privados, bem como monumentos ou coisas tombadas, em virtude de seu valor artístico, arqueológico ou histórico, integrantes do patrimônio cultural nacional (parágrafo único).

Cuida-se de proteger aspectos estéticos da própria geografia humana, a beleza da paisagem urbana, representada por suas construções e monumentos.

O crime, que é material, exige dolo e consuma-se com a efetiva prática do ato de pichar, grafitar ou, de qualquer outra forma, conspurcar edificação ou monumento urbano. A tentativa é possível.

É diverso o crime que consiste, no artigo 63 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), em: ¨Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida¨, com previsão de pena de reclusão de um a três anos e multa.

Resguarda-se o ambiente, em especial, a integridade do aspecto do local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial.

Ivete Senise Ferreira (Tutela penal do patrimônio cultural, pág. 113) salienta que esses locais especialmente protegidos, cuja alteração de aspecto é incriminada, podem ser os bens imóveis tombados, mencionados no Decreto-lei nº 25/37, mas ainda os sítios arqueológicos ou pré-históricos considerados ¨monumentos¨ pela Lei nº 3,924/61, como também os recursos florestais tutelados pelo Código Florestal. Incluem no presente dispositivo os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importem conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana (artigo 1º, § 2º, do Decreto-lei nº 25/37); os monumentos arqueológicos e pré-históricos representados: a) pelas jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem testemunhos da cultura dos paleo ameríndios do Brasil; b) pelos sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos paleoameríndeos; c) pelos sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado ou de aldeamento, ¨estações¨e ¨cerâmios”, nos quais se encontrem vestígios humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico; d) pelas inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de utensílios e outros vestígios de atividades paleoameríndias (artigo 2º e alíneas da Lei 3.924/61).

A Lei nª 9.605/98, ao tratar dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, revogou de forma tácita o artigo 165 do Código Penal.

O artigo 63 da Lei de Crimes Ambientais revogou tacitamente o artigo 166 do Código Penal. Essa a lição de Celso Delmanto e outros(Código Penal Comentado, 6ª edição, pág. 378).

O crime previsto no artigo 63 da Lei de Crimes Ambientais, que se consuma com a efetiva alteração do aspecto ou estrutura de edificação ou local, permite tentativa, e se alberga como crime comum, comissivo, material.

Nas ações infrações penais previstas na Lei nº 9.605/98, artigo 28, a ação penal é pública incondicionada, lembrando-se que, nos crimes de menor potencial, a proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, prevista no artigo 76 da Lei 9.099/95, transação penal, somente será formulada desde que tenha havido a prévia composição do dano ambiental, de que trata o artigo 74 da mesma Lei, salvo em caso de comprovada impossibilidade. Por sua vez, a declaração de extinção de punibilidade, de que trata o parágrafo quinto do artigo 76, já referenciado, dependerá de laudo de constatação de reparação do dano ambiental, ressalvada a impossibilidade comprovada.

Considera-se atípico o fato, se houve prática de grafite com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. (Incluído pela Lei nº 12.408, de 2011).

É crime de menor potencial ofensivo, para o qual cabe o benefício da transação penal, e, se houver ação penal incondicionada, pode ser aplicado o benefício do sursis processual, a teor do artigo 89 a Lei 9.099/95.

Em sendo o ato realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, como é o caso comentado, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 12.408, de 2011).

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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