A renda mínima e as normas reforçadas

Por Rogério Tadeu Romano*

Informa-nos o Estadão, em seu site de notícias, em 8 de novembro de 2022, que “o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva foi aconselhado a usar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a regulamentação da lei que institui a renda básica para pagar o Auxílio Brasil (que deve voltar a chamar Bolsa Família) de R$ 600 a partir de 2023 sem precisar de a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) ter sido aprovada.

Essa alternativa, discutida entre ministros do STF e o presidente eleito, é a quarta proposta na mesa apresentada à equipe de transição.

Ainda se aduz que, em decisão proferida em 2021, o STF obrigou o governo a pagar uma renda básica da cidadania com base na lei 10.835 de 2004 de autoria do ex-senador Eduardo Suplicy que nunca tinha sido regulamentada. Pela decisão na época, o benefício deveria começar a ser pago a partir de 2022. A ação foi ajuizada pela Defensoria Pública da União no Rio Grande do Sul em nome de um morador de rua. Nenhum dos 11 ministros do Supremo votou contra a regulamentação. O relator do processo foi o ministro do STF Gilmar Mendes.

Refiro-me ao Mandado de Injunção (MI) 7.300, proposto pela Defensoria Pública da União em favor de um cidadão – desempregado, sem moradia e com deficiência intelectual moderada – que alegou carecer dos recursos necessários para a manutenção de uma existência digna. Na ação, a Defensoria pediu que, na falta de regulamentação pelo Executivo federal de programa assistencial previsto na Lei 10.835/2004, o Supremo determinasse o valor da renda básica em um salário-mínimo mensal.

Reconhecendo a omissão na regulamentação da lei, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos, que o Executivo federal deve adotar as medidas legais cabíveis para a implementação do benefício da renda básica de cidadania a partir de 2022, inclusive com a alteração do Plano Plurianual (PPA) e previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2022.

A respeito dessa decisão, vale destacar que quatro ministros do STF defenderam a fixação pelo próprio Supremo do valor do benefício, o que certamente extrapolaria as competências do Judiciário. Além disso, mesmo que o Executivo tome todas as medidas para que o benefício seja pago a partir do ano que vem, a palavra final caberá ao Congresso. O Executivo faz a proposta orçamentária, mas é o Legislativo que aprova a LDO e a LOA.

Agiu certo o Supremo Tribunal Federal em não fixar valor para tal verba. Isso cabe aos Poderes Executivo e Legislativo. Não é tarefa do Poder Judiciário, por evidente afronta ao sistema de freios e contrapesos.

O mandado de injunção é uma garantia constitucional instituída pelo artigo 5º, LXXI, da Constituição Federal, onde se lê: “LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.”

Anotou José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5º edição, pág. 386) que o mandado de injunção é um instituto que se originou na Inglaterra, no século XVI, como essencial remédio da equity, nascendo do chamado juízo de equidade.

Sendo assim é considerado um remédio outorgado mediante um juízo de discricionariedade quando falta uma norma legal (statutes), regulando a espécie quando a Common Law não oferece proteção suficiente.

Assentar-se-ia na valoração judicial dos elementos do caso e dos princípios de justiça material segundo uma pauta de valores sociais

Temos que ver a garantia constitucional em foco dentro dos limites de nosso sistema romano-germânico onde a legalidade, a par do princípio da legalidade, é a tônica. Ninguém é obrigado a uma conduta senão em virtude de lei.

Disse o ministro Alexandre de Moraes (Direito constitucional, 2003,p.179): “ O mandado de injunção consiste em uma ação constitucional de caráter civil e de procedimento especial, que visa suprir uma omissão do Poder Público, no intuito de viabilizar o exercício de um direito, uma liberdade ou uma prerrogativa prevista na Constituição Federal”.

O objeto do writ é assegurar o exercício: de qualquer direito constitucional não regulamentado; de liberdade constitucional não regulamentada, sendo de notar que as liberdades são previstas em normas constitucionais normalmente de aplicabilidade imediata, como explica a doutrina; das prerrogativas que são próprias e inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, quando não regulamentadas.

O que é norma regulamentadora?

É ainda José Afonso da Silva que aponta que norma regulamentadora é toda medida para tornar efetiva uma norma constitucional.

Realiza o mandado de injunção, de forma concreta, em favor do impetrante, um direito, liberdade ou prerrogativa, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o seu exercício.

Outorga-se, com o mandado de injunção, diretamente, o direito reclamado independente de uma regulamentação da matéria enfocada na norma constitucional.

Como já decidiu o STF aplica-se o mandado de injunção somente à omissão de regulamentação de norma constitucional, pois não há possibilidade de “ação injuncional, com a finalidade de compelir o Congresso Nacional a colmatar omissões normativas alegadamente existentes na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em ordem a viabilizar a instituição de um sistema articulado de recursos judiciais, destinado a dar concreção ao que prescreve o Artigo 25 do Pacto de S. José da Costa Rica”

O valor a ser implementado pelo governo federal para tal implementação do programa assistencial previsto na Lei 10.835/2004 é questão que tem óbice na reserva do possível.

Falo sobre o fenômeno das chamadas leis reforçadas consoante exposição do ministro Gilmar Mendes.

“Nesse aspecto, as relações estabelecidas entre o texto constitucional e as legislações financeiras amoldam-se com precisão ao chamado fenômeno da Leis Reforçadas, desvendado na doutrina constitucional portuguesa por Carlos Blanco de Morais que, ao se referir à existência de uma relação de ordenação legal pressuposta, implícita ou explicitamente na Constituição, aduz que: “As leis reforçadas pontificam num momento em que os ordenamentos unitários complexos são confrontados com uma irrupção poliédrica de actos legislativos, diferenciados entre si, na forma, na hierarquia, na força e na função, e cujas colisões recíprocas não são isentas de problematicidade quanto à correspondente solução jurídica, à luz dos princípios dogmáticos clássicos da estruturação normativa” (MORAIS, Carlos Blanco de.As leis reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos. Coimbra Editora, 1998, p. 21). Ainda em âmbito doutrinário, a propósito, a tese das Leis Reforçadas logrou franco desenvolvimento na obra de J. J. Gomes Canotilho ao explorar justamente a função parametrizadora que as leis de Direito Financeiro exerciam sobre a legislação ordinária do orçamento. Como destacado pelo autor, a contrariedade da atuação do legislador ordinário na edição da lei orçamentaria em relação às leis-quadro que extraem a sua validade da Constituição Federal suscita a inconstitucionalidade indireta da norma. Nesse aspecto, destacam-se as considerações do autor: Se considerarmos a possibilidade de a lei do orçamento poder conter inovações materiais, parece que o problema não será já só o de uma simples aplicação do princípio da legalidade, mas o da relação entre dois actos legislativos e quiordenamentos sob o ponto de vista formal e orgânico. A contrariedade ou desconformidade da lei do orçamento em relação às leis reforçadas, como é a lei de enquadramento do direito financeiro, colocar-nos-ia perante um fenômeno de leis ilegais ou, numa diversa perspectiva, de inconstitucionalidade indireta. (CANOTINHO, J. J. Gomes. A lei do orçamento na teoria da lei. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor. J. J. Teixeira Ribeiro. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial, 1979, v. II, p. 554).”

E conclui o ministro Gilmar Mendes:

“A partir de uma leitura sistemática dessas normas, tem-se que a efetivação de despesas relacionadas a esses benefícios requer (a) demonstração da origem dos recursos para o seu custeio total; (b) instituição da despasse com a estimativa trienal do seu impacto; (c) demonstração de que o ato normativo não afetará as metas de resultados fiscais e (d) demonstração de que seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes serão compensados pelo auto permanente de receita ou pela redução permanente de despesa (LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 8ª Ed. São Paulo, Editora JusPODIVUM, 2019, p. 531). A jurisprudência do STF é uníssona em reconhecer a constitucionalidade dos requisitos de majoração de benefícios de assistência social contemplados nos arts. 17 e 24 da LRF. No julgamento da Medida Cautelar na ADI 2.238, de relatoria do eminente Min. Ilmar Galvão, em que se discutia se as limitações legislativas à majoração de benefícios continuados seriam aplicados ao benefícios de assistência social, o Plenário da Corte concluiu que “as exigências do art. 17, da LRF, são constitucionais, daí não sofrer nenhuma mácula o dispositivo que determina sejam atendidas essas exigências para a criação, majoração ou extensão de benefício ou serviço relativo à seguridade social”. ( ADI 2.238 MC, Rel. Min. Ilmar Galvão, Tribunal Pleno, Dje12.09.2008).”

Não cabe ao Judiciário invadir área própria já escolhida, orçamentariamente, em juízo discricionário, pela Administração, via Legislativo, na formulação do orçamento público.

A partir desse entendimento tem-se que o caminho ainda é a edição de uma proposta de Emenda Constitucional (PEC) objetivando a devida alocação de recursos, mesmo diante dessa decisão do STF. Há a reserva do possível e o caminho é a criação de uma norma reforçada, que viabilize financeiramente e monetariamente o gasto.

Não devemos esquecer que há um limite de teto de gastos constitucional que somente pode ser ultrapassado mediante uma emenda constitucional.

Ela definirá esse quantitativo de valores necessários a adoção de compromissos na área social.

*É procurador da República aposentado com atuação no RN.

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