O espetáculo Chuva de Bala no País de Mossoró é uma das manifestações culturais mais emblemáticas da cidade de Mossoró (RN). Encenado todos os anos durante o Mossoró Cidade Junina, ele conta, com música, dança, efeitos e teatro ao ar livre a história real da resistência mossoroense à tentativa de invasão do bando de Lampião, em 13 de junho de 1927. Na ocasião, diferentemente de outras cidades do sertão, Mossoró se organizou, armou sua população e, sob a liderança do então prefeito Rodolfo Fernandes, expulsou os cangaceiros. O episódio ficou marcado como símbolo de bravura e união, e desde então, reforça um orgulho histórico da cidade.
Mais do que uma celebração artística, o Chuva de Bala tornou-se, com o passar dos anos, um espaço simbólico potente, onde a memória coletiva se encontra com discursos políticos contemporâneos. A forma como os personagens são representados na peça, especialmente o papel do prefeito não é neutra. Ao contrário, carrega significados que podem ser cuidadosamente moldados conforme os interesses de quem detém o poder.
É por isso que é difícil não pensar que a recente encenação tenha sido estrategicamente planejada. A escolha do ator que interpreta Rodolfo Fernandes, com feições e gestual surpreendentemente parecidos com o atual prefeito Alysson Bezerra, parece ir além de uma simples coincidência, alias, quase uma inteligência artificial utilizada se assim fosse possivel. A atuação quase mimética reforça a construção simbólica de Alysson como uma espécie de sucessor do herói histórico, agora posicionado como o novo salvador da cidade.
Esse tipo de construção remete ao conceito do “líder herói”, elaborado por Ralph White e Ronald Lippitt por volta de 1939. Segundo eles, esse tipo de líder surge ou é fabricado em contextos de crise, desigualdade ou instabilidade, sendo retratado como alguém com coragem, propósito e devoção à causa popular. No caso de Alysson, a narrativa que o levou ao poder foi justamente essa: a de um jovem destemido que enfrentou e venceu as oligarquias que dominaram Mossoró por décadas.
No entanto, a figura do líder herói, por mais inspiradora que pareça, exige cautela. Muitas vezes, ela é idealizada para ocultar falhas que, em um gestor público, são cruciais. Liderar não é apenas representar; é administrar com eficiência, ser transparente, técnico, ético e comprometido com o bem-estar coletivo. Quando a imagem do herói toma o lugar da gestão de verdade, há o risco de transformar política em teatro e governar se torna uma encenação.
Quem se dispõe a olhar com mais profundidade pode perceber que, por trás da armadura simbólica do herói, podem estar escondidas ausências importantes: vaidade política, promessas não cumpridas, perseguição a opositores, centralização do poder e um governo que sustenta sua popularidade mais em estratégias midiáticas do que em ações concretas.
A história, a verdadeira, precisa ser preservada com respeito e crítica. E a gestão pública deve ser guiada por responsabilidade e entrega real, não por performances.
