A vacinação obrigatória no Brasil

Por Rogério Tadeu Romano*

I – OS FATOS

O presidente da República disse que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”.

“O governo do Brasil preza pela liberdade dos brasileiros”, afirmou, nas redes sociais.

No entanto, o ordenamento jurídico do Brasil é no sentido da obrigatoriedade da vacinação.

II – OS DIPLOMAS LEGAIS QUE IMPUSERAM A VACINAÇÃO NO BRASIL

Entre os dias 10 e 18 de novembro de 1904, a cidade do Rio de Janeiro viveu o que a imprensa chamou de a mais terrível das revoltas populares da República.

O cenário era desolador: bondes tombados, trilhos arrancados, calçamentos destruídos, tudo feito por uma massa de 3 mil revoltosos. A causa foi a lei que tornava obrigatória a vacina contra a varíola.

Na época, a cidade era assolada por varíola, peste bubônica, febre amarela.

Diante do quadro assustador, o governo aprovou uma lei que determinava que a população fosse, compulsoriamente, vacinada contra a varíola

Rui Barbosa estimulou a rebelião de alguns militares e a maior revolta popular do Rio de Janeiro. Tudo em nome dos princípios do liberalismo político.

Rui Barbosa era um liberal que professava as lições de economia política sobre o mercado.

Aliás, é mister lembrar a Lei nº 1.152, de 5 de janeiro de 1904, que, no artigo 1º, § 20, dispôs:

“Não podem a justiça sanitária, nem as autoridades judiciárias, quer federais, quer locais, conceder interditos possessórios contra atos da autoridade sanitária, exercidos rationie imperii, nem modificar ou revogar os atos administrativos, medidas de higiene e salubridade por ela determinadas a nesta mesma qualidade. Fica salvo à pessoa lesada as perdas e danos que lhe couberem, perante a justiça federal, de autoridade sanitária, tiver sido ilegal e promover a punição, se houver sido criminosa. Em caso de desapropriação, esta se fará segundo a Constituição e as leis respectivas”.

Por certo, o ministro Pedro Lessa fez crítica com relação a esse dispositivo legal, pois “permite que um funcionário administrativo, um agente do Poder Executivo, sem recurso para autoridade judiciária alguma, prive injustificável, absurda, caprichosa ou criminosa que seja a ordem da autoridade sanitária, esta, segundo a lei, deve ser cumprida, para depois se processar criminalmente a autoridade arbitrária e criminosa e pedirem-se perdas e danos(Rev. de Dir., volume 17, pág. 114).

No mesmo voto, sustentava o insigne juiz a inconstitucionalidade do dispositivo, em face das garantias outorgadas à propriedade pelo art. 72, 17 §, da Constituição de 1891.

Em 31 de janeiro de 1905, o Tribunal julgou o Recurso em Habeas Corpus 2.244, impetrado em favor de Manoel Furtunato de Araujo Costa, no qual se alegava a ilegalidade de ordem de intimação exarada por inspetor sanitário que requeria fosse franqueado acesso à residência do paciente, para fins de se proceder à desinfecção de febre amarela. Embora a decisão tenha esposado entendimento que se revelaria historicamente restritivo quanto ao cabimento do Habeas Corpus, a Corte considerou que as sanções previstas no art. 172 do mencionado Decreto 5.156, de 23 de julho 1904, deturpavam o mandado de inviolabilidade do domicílio contemplado na Constituição de 1981, uma vez que o dispositivo facultava às autoridades sanitárias a requisição do auxílio de força policial para entrada na residência dos cidadãos. Tal decisão consubstanciou verdadeiro juízo de inconstitucionalidade incidental da previsão regulamentar, conforme se depreende do extrato da decisão, de relatoria do Ministro Hermínio Espírito Santo. Por maioria, o STF declarou a ilegalidade de eventual prisão do paciente por recusa à vacinação, considerando que a Lei da Vacina de 1904 não poderia ter delegado a regulamentação da inviolabilidade de domicílio ao Poder Executivo

Antes, em 1902, a Lei nº 939, em seu artigo 16 estatuiu:

“Não podem as autoridades judiciárias, quer federais quer locais, modificar ou revogar as medidas e atos administrativos, nem conceder interditos possessórios contra atos do governo municipal, exercidos ratione imperii”.

Com o Código Civil de 1916, cujos artigos 499, 501 e 506 não fazem restrição alguma à proteção possessória, cessou essa lei de ser vigente.

Em menos de uma semana a oposição ao presidente Rodrigues Alves lançaria a Liga contra a Vacina Obrigatória. Organizava-se a revolta popular que contaria com o apoio dos positivistas, misto de filosofia e religião secular muito influente na época, sobretudo entre militares. Rui Barbosa discursava contra a vacina.

Determinada a vacinação compulsória, como meio preventivo contra a varíola, ex vi da Lei nº 1.251, de 31 de outubro de 1904, suscitou essa providência alguns descontentamentos, culminando com ameaças de surtos revolucionários.

Cerca de 19 horas do dia 14 de novembro de 1904, o General de Brigada Silvestre Rodrigues da Rocha Travassos, sublevando a Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, assumiu-lhe o comando. Prendendo ato continuo o General José Alípio Macedo da Fontoura Contaliat, comandante deste estabelecimento de ensino militar, marchou para o centro da cidade, à frente da tropa, com o fim, segundo ficaria mais tarde apurado, de depor o chefe do Governo, Presidente Rodrigues Alves e entregar a suprema direção do País a um governo de fato.

Em mensagem de 16 de novembro de 1904, pediu o Presidente Rodrigues Alves a decretação do estado de sítio para a Capital Federal e Niterói, apontando ao mesmo tempo ao Congresso os nomes do senador Tte-Cel Lauro Sodré e deputados Major Alexandre José Barbosa Lima e Alfredo Varela(Civil) como implicados no movimento.

Foi autorizada a decretação do estado de sítio, consoante os termos do decreto nº 1.270, de 18 de novembro, sendo encarregado do inquérito o bacharel Antônio Augusto Cardoso de Castro, chefe de polícia do Distrito Federal, vindo o relatório a ser publicado em suplemento ao Diário Oficial de 23 de restrição alguma à proteção possessória, cessou essa lei de ser vigente.

Em menos de uma semana a oposição ao presidente Rodrigues Alves lançaria a Liga contra a Vacina Obrigatória. Organizava-se a revolta popular que contaria com o apoio dos positivistas, misto de filosofia e religião secular muito influente na época, sobretudo entre militares. Até Rui Barbosa discursava contra a vacina.

Em 1907 a febre amarela estava erradicada do Rio (em sua forma urbana a doença desapareceria do Brasil em 1942). No surto seguinte de varíola, em 1908, a população correu para os postos de vacinação.

Estatuto da Criança e do Adolescente afirma que a vacinação de menores de 12 anos é obrigatória “nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. E a lei que estabeleceu as medidas de combate à pandemia, sancionada pelo atual presidente, prevê a “realização compulsória” de “vacinação e outras medidas profiláticas”.

Há a permissão, por lei, de exercício de poder de polícia.

Aliás, o exercício do poder de polícia não é mera providência educativa.

Promulgada em 1975, a lei 6.259, que instituiu o Programa Nacional de Imunizações, já ressaltava a obrigação de se vacinar. Nela, há previsão até mesmo da edição de medidas estaduais — com audiência prévia do Ministério da Saúde — para o cumprimento das vacinações.

Essa obrigatoriedade, explica Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP (Universidade de São Paulo), implica sanções como as previstas na Portaria nº 597, de 2004, que instituiu o calendário nacional de vacinação. Ali, é apontado que o indivíduo, não tendo completado o calendário, não poderá se matricular em creches e instituições de ensino, efetuar o alistamento militar ou receber benefícios sociais do governo.

As medidas tomadas a partir da edição da Lei nº 13.979/2020, serão aplicadas no contexto do poder de polícia. Portanto, não são meras medidas indicativas ou educativas, mas impositivas. Sendo assim os atos administrativos dele emanados são dotados: discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade.

Assim se tem:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)

……

d) vacinação e outras medidas profiláticas;

…….

A questão da vacinação obrigatória tem sido objeto de intensa discussão doutrinária. a doutrina de Sueli Gandolfi Dallari ao pontuar que: Observado como direito individual, o direito à saúde privilegia a liberdade em sua mais ampla acepção. As pessoas devem ser livres para escolher o tipo de relação que terão com o meio ambiente, em que cidade e que tipo de vida pretendem viver, suas condições de trabalho e, quando doentes, o recurso médico-sanitário que procurarão, o tipo de tratamento a que se submeterão entre outros. (…) Examinado, por outro lado, em seus aspectos sociais, o direito à saúde privilegia a igualdade. As limitações aos comportamentos humanos são postas exatamente para que todos possam usufruir igualmente as vantagens da vida em sociedade. Assim, para preservar se a saúde de todos é necessário que ninguém possa impedir outrem de procurar seu bem-estar ou induzi-lo a adoecer. Essa é a razão das normas jurídicas que obrigam à vacinação, à notificação, ao tratamento, e mesmo ao isolamento de certas doenças, à destruição de alimentos deteriorados e, também, ao controle do meio ambiente, das condições de trabalho (…) O direito à saúde ao apropriar-se da liberdade e da igualdade caracteriza-se pelo equilíbrio instável desses valores. (DALLARI, Sueli Gandolfi. O Direito à Saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, n. 22, 1988, pp. 58-59).

A recalcitrância à vacinação constitui não apenas uma recusa terapêutica que coloca em risco a saúde individual. No caso da recusa vacinal, o que está em jogo, em última análise, é a essencialidade do cumprimento da medida para um plano maior de realização de política pública de combate a uma doença infectocontagiosa que põe em risco a vida de todos.

A recusa vacinal, por sua vez, ocorre num quadro em que o paciente não possui a moléstia, pois a vacina ocorre como uma forma de prevenção, não como intervenção. Há impacto na saúde alheia, pois se trata de prevenção de moléstias infectocontagiosas, de modo que coloca em risco a saúde pública e opera contra a lógica de política pública, que é o da prevenção comunitária.

A matéria é bem versada em tutela penal da leitura do artigo 268 do Código Penal. Inspirado no art. 224 do Projeto Alcântara Machado de 1938, o Código contemplou, no seu art. 268, o crime de infração de medida sanitária preventiva, tipificando o ato de “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, ao qual foi cominada pena de detenção de um mês a um ano. Trata-se de norma penal em branco, cabendo ao Executivo Federal colmatar os vazios ali existentes.

III –  O DIREITO COMPARADO

Há a subordinação dos interesses do indivíduo ao interesse geral.

Nos Estados Unidos, por sua vez, foram definidos os limites da compulsoriedade vacinatória pela Suprema Corte no julgamento do célebre caso Jacobson v. Massachusetts, de 1905, em que o Tribunal apreciou pedido de cidadão que queria ser desonerado da obrigação de pagar uma multa por não aceitar receber a vacina contra varíola no Estado de Massachusetts. Na decisão por maioria de 7×2, a Corte rechaçou o argumento de que a imposição da vacina seria contrária ao “direito inerente de todo homem livre de cuidar de seu próprio corpo e saúde”. A decisão da Suprema Corte foi fundamentada na chamada Teoria do Pacto Social e no poder policial dos Estados de proteger a saúde pública e a segurança. O voto condutor do Justice Harlan destacou que o “governo é instituído ‘para o bem comum, para a proteção, segurança, prosperidade e felicidade do povo, e não para o lucro, honra ou interesses privados de qualquer homem'”. A Corte reconheceu uma esfera de liberdades individuais protegidas, mas insistiu que o Estado tinha amplos poderes para invadir essa esfera quando “a segurança do público em geral assim o exigisse”.

Na Alemanha, após diversas experiências com campanhas de vacinação obrigatória no século passado, hoje o regime jurídico sanitário tem suas bases legais bem definias na Lei de Proteção contra Infecções (Infektionsschutzgesetz). A Seção 20 (6) do IfSG declara que o Ministério Federal da Saúde (com a aprovação do Bundesrat) pode “ordenar que setores ameaçados da população participem de vacinações ou outras medidas de profilaxia específicas se uma doença transmissível ocorrer com formas clinicamente difíceis e deve se espalhar epidemicamente ”, com exceções medicamente contraindicadas. O diploma ainda atribuiu ao governo o poder de “tomar as medidas necessárias para evitar os perigos que ameaçam o indivíduo ou o público em geral” quando os fatos indicam a ameaça de doenças transmissíveis.

Em julgado recente da Corte Constitucional, de maio de 2020, o Bundesverfassungsgericht apreciou, em juízo sumário, a constitucionalidade da dispositivos do IfSG cujas redações foram alteradas pela chamada Lei de Proteção ao Sarampo (Masernschutzgesetz). A disposição legal contestada estabelecia que as crianças que são cuidadas em uma cresche coletiva devem ter proteção vacinal suficiente contra o sarampo ou imunidade comprovada a essa doença, a menos que não possam ser vacinadas devido a alguma contraindicação médica (§ 20.8 do IfSG).

Por sua vez, o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos dita:

“1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem – estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros”.

De tudo isso, e ainda diante dos efeitos nocivos advindas da covid-19, na linha do voto do ministro Gilmar Mendes(ARE 1.267.879)), naquele julgamento citado tem-se:

  1. A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, por exigir sempre o consentimento do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas, (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; (II) tais medidas, com as limitações acima expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência.

IV – A COMPETÊNCIA DA UNIÃO FEDERAL PARA EDIÇÃO DE NORMAS GENÉRICAS EM TEMÁTICA DE SAÚDE

Observo o artigo 23 da Constituição:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

…….

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Nessa linha de pensamento trago a elucidativa lição de Dalmo Dallari (Normas gerais sobre saúde: cabimento e limitações:

“No caso da Constituição brasileira de 1988 pode-se dizer que, em linhas gerais, mesmo sem atribuir superioridade à União sobre as unidades federadas, foram estabelecidos critérios que dão ao Legislativo federal a competência para legislar quando se considera conveniente uma disciplina legislativa uniforme para toda a Federação, o que implica certa centralização. Entretanto, não foi esquecida a hipótese de competência concorrente, ou seja, competência que não é exclusiva da União, além de se ter reconhecido que em determinados casos a competência pode ser exclusiva dos Estados ou dos Municípios. Para conhecimento do assunto, convém começar examinando a competência legislativa da União.

No artigo 22 são enumeradas as matérias sobre as quais a União tem competência para legislar com exclusividade, ficando, portanto, eliminada a hipótese de legislação estadual ou municipal sobre tais matérias. Abre-se apenas uma possibilidade de exceção, através do parágrafo único acrescentado a esse artigo, dispondo que através de lei complementar a União poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse artigo. O artigo 24 faz a enumeração de matérias sobre as quais a União, os Estados e o Distrito Federal poderão legislar concorrentemente, tendo-se acrescentado alguns parágrafos a esse artigo fixando regras visando prevenir o risco de conflitos que poderiam decorrer da hipótese de haver lei federal e outra dispondo sobre o mesmo assunto. É muito importante o conhecimento dessas regras, sobretudo pelo fato de que a Constituição contém, no artigo 23, uma longa enumeração de matérias que são de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Como é óbvio, aquele que é competente para cuidar de certa matéria será, forçosamente, obrigado a legislar sobre ela, pois toda participação do poder público deve ocorrer nos quadros da lei.

De acordo com o disposto no § 1º, quando se tratar de matéria em que a competência legislativa é concorrente a União somente poderá estabelecer normas gerais, deixando aos demais a legislação sobre pontos específicos. Evidentemente, nesse caso a legislação que tratar de aspectos especiais não poderá contrariar as normas gerais estabelecidas pela União. O § 2o. confere aos Estados uma competência suplementar para legislar sobre as matérias que tiverem sido objeto de norma geral federal e o § 3o. dá aos Estados competência legislativa plena para legislar sobre as matérias que não tiverem sido objeto de norma geral federal. Neste caso, entretanto, dispõe o § 4º que sobrevindo uma norma geral federal a lei estadual já existente que lhe for contrária terá suspensa sua eficácia, passando-se a aplicar a regra do § 1º.”

Como ficariam as normas gerais editadas pela União Federal?

Raul Machado Horta, um dos teóricos brasileiros que mais têm dedicado atenção ao tema do federalismo, considera que o constituinte de 1988 “enriqueceu a autonomia formal, dispondo que a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas, e a competência dos Estados se exercerá no domínio da legislação suplementar”. Complementando essa observação, oferece em seguida uma noção muito precisa: “A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais” (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte, 1995, págs. 419/420).

Para José Afonso da Silva, que integrou a Comissão Afonso Arinos, encarregada de elaborar o anteprojeto de Constituição que serviu de ponto de partida para os constituintes de 1988, pode-se falar com propriedade numa legislação principiológica, na qual se enquadrariam a fixação de normas gerais e a legislação sobre diretrizes e bases (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Ed.Revista dos Tribunais, 1989, pág.434). Para ele, portanto, legislar sobre normas gerais significa estabelecer princípios sobre determinada matéria, deixando para a legislação suplementar o estabelecimento de regras relativas a situações particulares.

Raul Machado Horta, um dos teóricos brasileiros que mais têm dedicado atenção ao tema do federalismo, considera que o constituinte de 1988 “enriqueceu a autonomia formal, dispondo que a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas, e a competência dos Estados se exercerá no domínio da legislação suplementar”. Complementando essa observação, oferece em seguida uma noção muito precisa: “A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais” (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte, 1995, págs. 419/420).

Para José Afonso da Silva, que integrou a Comissão Afonso Arinos, encarregada de elaborar o anteprojeto de Constituição que serviu de ponto de partida para os constituintes de 1988, pode-se falar com propriedade numa legislação principiológica, na qual se enquadrariam a fixação de normas gerais e a legislação sobre diretrizes e bases (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Ed.Revista dos Tribunais, 1989, pág.434). Para ele, portanto, legislar sobre normas gerais significa estabelecer princípios sobre determinada matéria, deixando para a legislação suplementar o estabelecimento de regras relativas a situações particulares.

Fernanda Dias Menezes de Almeida, professora de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, em seu livro Competências na Constituição de 1988 (São Paulo, Atlas, 1991) alertou que foi positivo o alargamento da competência legislativa concorrente, uma vez que favorece a descentralização federativa, não se devendo esquecer, entretanto, que resta um núcleo de centralização normativa, através da competência conferida à União para editar normas gerais. A par disso, ressalta que haverá dificuldades para a identificação das normas que devam ser reconhecidas como gerais, fazendo as seguintes ponderações:

É mister lembrar o ensinamento de Pontes de Miranda, para quem as normas gerais se caracterizam como sendo normas fundamentais, restritas a estabelecer diretrizes, sem possibilidade de codificação exaustiva.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto,(Competência concorrente limitada. O Problema da conceituação das normas gerais, publicado na Revista de Informação Legislativa, número 100, de outubro/dezembro de 1988) cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estados-Membros na feitura das suas legislações, através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às relações e situações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos”. Embora não exista aí uma conceituação sintética, há uma indicação de características e parâmetros que será de grande utilidade para a orientação dos legisladores e o esclarecimento de dúvidas em casos concretos.

Concluiu Delmo de Abreu Dallari, naquele artigo citado:

“Em vista de tudo o que foi exposto, e tendo em conta, de modo especial, as questões relativas à saúde, pode-se concluir que a União tem duas espécies de competência legislativa. Uma delas é a competência para legislar sobre o que se pode dominar”sistema federal de saúde”, cuja existência decorre do disposto no artigo 23 da Constituição, segundo o qual”é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II. Cuidar da saúde e assistência pública…”. A par disso, a União pode legislar fixando normas gerais, tanto para todo o conjunto do sistema nacional de saúde, denominado sistema único. Com efeito, de acordo com o que foi estabelecido no artigo 24 da Constituição,”compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XII. Previdência social, proteção e defesa da saúde;” No tocante ao exercício dessa competência pela União, o § 1o. do artigo 24 dispõe que “no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais”.

Da combinação desses dispositivos pode-se concluir que é possível a existência de leis federais tratando de aspectos particulares do sistema federal de saúde, mas essas leis não têm qualquer interferência na legislação dos Estados e dos Municípios sobre os respectivos sistemas de saúde. A par disso, a União pode legislar sobre normas gerais de saúde, fixando princípios e diretrizes genéricas que serão de observância obrigatória pelos legisladores estaduais e municipais.”

O que dizer de recentes medidas legislativas, editadas por medidas provisórias, no necessário regime de urgência e relevância para o caso da coronavírus?

Estamos diante de normas gerais que são as editadas pelos poderes federais, vigorando em todo o território nacional. As normas particulares são emitidas pelos poderes estaduais e municipais tendo eficácia apenas em seus territórios e dizem respeito a seus especiais interesses locais.

V –  O ENTENDIMENTO DO STF

O Estado pode determinar que a vacinação da população seja obrigatória, inclusive contra a Covid-19, sendo afastadas medidas invasivas como o uso da força para exigir a imunização.

O entendimento foi firmado pelo Supremo Tribunal Federal, na discussão envolvendo: ADIs 6.586 e 6.587 e ARE 1.267.879.

Ficaram definidas as seguintes teses:

“(I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e

i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes,
(ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes,
(iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas,
(iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e
(v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente;

(II) tais medidas, com as limitações acima expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência.”

A tese fixada, de repercussão geral, foi a seguinte: “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no programa nacional de imunizações; (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei; (iii) seja objeto de determinação da união, estados e municípios, com base em consenso médico científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.

VI – REPERCUSSÃO GERAL

Objetiva a repercussão geral delimitar a competência do STF, no julgamento de recursos extraordinários, às questões constitucionais com relevância social, política, econômica ou jurídica, que transcendam os interesses subjetivos da causa.

– Uniformizar a interpretação constitucional sem exigir que o STF decida múltiplos casos idênticos sobre a mesma questão constitucional.

Há quem pense numa eficácia normativa para eventual decisão em que se busque uma tese a ser seguida em futuros julgamentos. Assim poder-se-ia falar numa repercussão geral.

Tratar-se-ia de Instituto processual pelo qual se reserva ao STF o julgamento de temas trazidos em recursos extraordinários que apresentem questões relevantes sob o aspecto econômico, político, social ou jurídico e que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. Foi incluído no ordenamento jurídico pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e regulamentado pelos arts. 322 a 329 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e pelos arts. 1.035 a 1.041 do Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015).

Diante de tudo isso o caminho óbvio é a vacinação maciça da população brasileira, a bem do país e da cidadania.

A eficácia normativa da decisão do Supremo Tribunal Federal ao tema em todos os demais julgamentos, sob pena de ajuizamento do writ constitucional da reclamação parece clarividente. A isso se soma a voz e a experiência da ciência a quem cabe a voz da razão.

Sendo assim, vamos todos à vacinação contra o vírus da covid-19.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto