A volta do fascismo

Mussolini e Hitler revivem em movimentos extremistas (Foto: Getty Images)

Por Rogério Tadeu Romano*

I – ORIGENS HISTÓRICAS DO FASCISMO
O fascismo é diferenciado das ditaduras militares porque o seu poder está fundamentado em organizações de massas e tem uma autoridade única. Os seus membros são na sua grande maioria provenientes da classe operária e da pequena burguesia rural e urbana, ou seja, dos ameaçados pelos fortes intervenientes do grande capital e do sindicalismo comunista.
Quando o fascismo se estabelece no poder, aceita a presença do grande capital e se impõe de forma disciplinadora, impedindo que as organizações operárias defendam a luta de classes (sindicatos, partidos políticos).
O fascismo é caracterizado por uma reação contra o movimento democrático que surgiu graças à Revolução Francesa, assim como pela furiosa oposição às concepções liberais e socialistas.
O termo fascismo passou a ser usado para englobar tanto os regimes diretamente ligados ao eixo Roma-Berlim e seus aliados, como os sistemas de autoridade que atribuíam ao estado funções acima daquelas que as democracias lhe entregavam. É o caso das referências ao “fascismo” espanhol, brasileiro, turco, português, entre outros.
Em 1945, com a queda dos principais estados fascistas e com a divulgação das atrocidades cometidas, o movimento fascista perdeu possibilidades de grandes mobilizações. Apesar disso, alguns grupos minoritários se mantiveram nos antigos estados fascistas (neofascismo).
O Estado fascista criado por Benito Mussolini, na Itália, em 1922, foi o ponto de partida para o totalitarismo da direita que teve notável incremento na Europa depois do 1º conflito mundial, entre 1914 e 1918, e atingiu a América Latina a par dos movimentos de exaltação nacionalista.
A liberal democracia, em franca decomposição, não podia fazer face à terrível crise social que assolava o mundo, nem podia oferecer a resistência eficaz à ameaça do imperialismo russo, de esquerda. Nessa conjuntura perigosa para a liberdade dos povos e para a sobrevivência da civilização ocidental, foi que se deu o aparecimento dos homens providenciais, ousados condutores das massas que sabiam explorar não só o descontentamento dos proletariado como ainda aos sentimentos nacionalistas, arvorando-se em salvadores das nações. Na lição de Pedro Calmon, em todas as épocas de ruptura do equilíbrio entre um método clássico de governo e a inquietação social que impõe outras formas políticas, proporcionou o advento do que a sociedade chamou como “homens providenciais”.
Assim as novas organizações políticas que surgem inspiradas pela vontade onipotente desses líderes ou detentores eventuais do poder, constituem esse conjunto heterogêneo de Estados Novos, no panorama confuso do pós-guerra, todos eles adaptados arbitrariamente, em cada país, às contingências transitórias de um dado momento histórico.
Nessa situação certas características são comuns encontradas em estados de extrema-direita no poder: a) concentração de toda a autoridade nas mãos de um chefe supremo; b) restrições às liberdades públicas e regime de censura; c) prevalecimento do interesse coletivo sobre o individual; d) partido único; e) dirigismo econômico; f) estatismo, nacionalismo ou racismo, como objetivo moral do Estado.
Valeram-se os ditadores de ideias forças(unificação e grandeza da pátria) para galvanizar os espíritos e polarizar os sentimentos cívicos da comunidade nacional. No setor econômico, postergavam a livre concorrência, o lessez faire, do capitalismo, estabelecendo o primado da coletividade sobre o indivíduo.
Na Itália, com o fascismo, embora surgisse do oportunismo, sem doutrina, depois de consolidado no poder, passou a teorizar um sistema peculiar: o Estado é criador exclusivo do direito e da moral; os homens não têm mais do que o Direito que o Estado lhes concede: o Estado é personificado no partido fascista e este não encontra limites morais ou materiais à sua autoridade; todos os cidadãos e seus bens lhe pertencem; os opositores são considerados como traidores e sujeitos à justiça que é controlada pelo órgão executivo.
No fascismo, cabe ao Estado dar ao povo uma vontade consequentemente uma existência efetiva. O Estado, dentro da concepção trazida por Hegel, é absoluto, diante do qual os indivíduos e os grupos são o relativo. Daí porque se dizia: “Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado”.
É evidente a afinidade entre o fascismo e a doutrina do famoso secretário florentino exposta no livro, O Príncipe, tanto que o próprio Mussolini, na Itália, como chefe de governo, escrevendo Prelúdios a Maquiavel, em 1924, mencionou que na atualidade italiana o maquiavelismo estava mais vivo do que na época de seu aparecimento. Para o príncipe, para que haja respeito é preciso que se tema.
O partido que assume o poder não é um órgão de representação política, mas depositário único da confiança nacional e o intérprete exclusivo da vontade do povo.
É a própria nação italiana, sob o fascismo, que integra no partido e se deixa dirigir pela vontade incontrastável do homem providencial. O partido era ao mesmo tempo, Estado, nação, governo e organização produtiva.
No final de 1921, nasceu o Partido Nacional Fascista (PNF), cujo símbolo era exatamente o “fascio littorio”. Menos de um ano depois, Mussolini assume o poder. Ele fortaleceu sua influência na Itália angariando o apoio de industriais, empresários e do Vaticano, e tornou-se referência para regimes autoritários mundo afora – Francisco Franco na Espanha, António Salazar em Portugal e, sobretudo, Adolf Hitler na Alemanha (que por muito tempo manteve um busto do Duce italiano em seu escritório) tiveram em Mussolini e no seu regime uma grande fonte de inspiração.
Regime totalitário baseado num partido único, a característica fundamental do fascismo foi a militarização da política, que era tratada como uma experiência de guerra: além do projeto de expansão imperial, com a supremacia fascista imposta no Estado e na sociedade, o regime tratava os adversários como inimigos que deveriam ser eliminados. No mês passado, a Itália lembrou os 80 anos da chamada lei racial, aprovada contra os judeus e que estava em consonância ao regime nazista de Hitler.
“O fascismo sempre negou a soberania popular, enquanto o nacionalismo populista de hoje reivindica o sucesso eleitoral. Esse políticos de agora se dizem representantes do povo, pois foram eleitos pela maioria. Isso o fascismo nunca fez”, comenta Emilio Gentile.
II – O NOVO FASCISMO
Umair Haque, em texto sobre o novo fascismo, afirmou:
“Acredito que o Novo Fascismo, em sua individualidade, é o acontecimento político mais importante de nossas vidas. Trata-se de um momento crítico para a sociedade global – um momento decisivo. E, como todo momento decisivo, é um teste. Um teste que avalia o melhor de nós: se as sociedades civilizadas podem, de fato, continuar civilizadas, no sentido mais essencial dessa expressão – ou se corremos o risco de mergulhar, outra vez, numa era de guerra mundial e genocídio.”
E ainda disse:
“O fascismo é sempre um produto de uma inconveniência econômica. A inconveniência cria uma sensação ardente de injustiça. O bolo da riqueza encolhe, desmorona e se deteriora. As sociedades começam a disputar a quem pertencem as fatias, que vão ficando cada vez mais finas, cada vez mais emboloradas.”
E aqui vem a segunda etapa do fascismo: vamos chamá-la demagogia, como concluiu Umair Haque:
Surge uma briga entre os líderes no sentido de fazer alguma coisa em relação ao problema da estagnação. Tanto a esquerda quanto a direita vão ficando mais extremadas. E aí acaba o centro. O vácuo que o centro ocupava dá espaço para um tipo de político inteiramente novo – um tipo de político que normalmente era freado pela esquerda em sua luta contra a direita, mas agora livre para combinar o que há de pior na esquerda e na direita.
Logo aparece um demagogo, que grita: o bolo pertence ao povo – e só ao povo! Ele sintetiza o que há de pior, tanto na esquerda quanto na direita. É um socialista, mas só para as pessoas certas. Mas também é um nacionalista e não reivindica apenas domínio e recursos, como terra: ele reivindica a superioridade, pelo sangue ou por deus, de um povo, para além dos recursos. Daí a expressão, paradoxal, “nacional socialismo”.
A perigosa apelação do demagogo é a seguinte: ele localiza a fonte de estagnação naqueles que não têm pertencimento, que são inferiores – não apenas moral, mas existencialmente – e os aponta com o dedo, aponta o veneno dentro da sociedade. É muito mais fácil acreditar que a sociedade está sendo envenenada por um conjunto de pessoas corruptas que não pertencem a ela, do que acreditar que o contrato social acabou e deve voltar a ser escrito – e assim se abre o caminho do demagogo para o poder.
E chegamos ao terceiro estágio do fascismo: a tirania.
Mas quem é “o povo”? Quem é, de fato, inferior e quem é superior? Quem merece os frutos do nacional socialismo – o direito a consumir fatias do bolo que encolhe, que é do que trata toda esta ideologia? E aí vem à tona a noção de volk: os verdadeiros moradores da terra, os herdeiros do destino, o direito de nascer, a superioridade. E como os definiríamos? Afinal, essa é uma pergunta traiçoeira, que não admite certezas óbvias. Você merece os recursos da Nação-Sociedade simplesmente por ter nascido ali? Ou porque você viveu ali? Ou seria porque seus avós já nasceram ali? É justamente a essas perguntas que a Nação-Sociedade, Na-Zi, começa a dedicar seus recursos. Imensas burocracias são organizadas, trilhas de papel são criadas, investigações são realizadas.
Sob o enfoque econômico, já se disse que o fascismo é o sistema de governo que opera em conluio com grandes empresas (as quais são favorecidas economicamente pelo governo), que carteliza o setor privado, planeja centralizadamente a economia subsidiando grandes empresários com boas conexões políticas, exalta o poder estatal como sendo a fonte de toda a ordem, nega direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos (como a liberdade de empreender em qualquer mercado que queira) e torna o poder executivo o senhor irrestrito da sociedade.
Não se pode criar um index totalitário que enxerga no professor alguém que está proibido de passar informações aos alunos, seja da natureza que for (ideológica, política, cultural, credo).
Ensinar é viver e conviver com renovações, na velocidade em que vierem.
III – DECISIONISMO
Essas teses antidemocráticas têm origem no decisionismo.
De fundamental importância nesse fenômeno sob o ponto de vista juridico foram as ideias de Carl Schmitt, na concepção de uma teoria decisionista.
Schmitt distinguia quatro conceitos básicos de Constituição: um conceito absoluto (a Constituição como um todo unitário) e um conceito relativo(a Constituição como uma pluralidade de leis particulares), um conceito positivo(a Constituição como decisão de conjunto sobre o modo e a forma da unidade política) e um conceito ideal (a Constituição assim chamada em sentido distintivo e por causa de certo conteúdo).
Na visão decisionista, uma Constituição é válida enquanto emana de um poder constituinte e se estabelece por sua vontade. Assim era a vontade do povo alemão que dava fundamento a sua unidade político e jurídica.
A Constituição em sentido positivo surgia mediante um ato do poder constituinte. Este ato não continha, como tal, quaisquer normas, mas sim, e precisamente por ser um único momento de decisão, a totalildade da unidade política considerada na sua particular forma de existência; e ele constituía a forma e o modo da unidade política, através do titular do poder constituinte, adota por si própria e se dá a si própria.
Nesse conceito decisionista a essência da Constituição não residia, pois, numa lei ou numa norma; residia na decisão política do titular do poder constituinte(do ditador, numa ditadura e do povo, numa democracia).
Com Carl Schmitt não se visa encontrar uma substância ou uma axiologia; procura-se o critério, o princípio identificador do político. Ele consiste na distinção – a que reconduz a atos e móveis políticos – entre amigo e inimigo.
Carl Schmitt via a POLÍTICA COMO SUPERIOR ao direito, ele teoriza que a política é quem toma as decisões e institui o direito. Quem elabora o direito é a política sendo o direito um mero instrumento da política.
A Alemanha estava em Estado de exceção, e a única forma de solução executar o poder de decidir do governante. O governante, nesse sentido, toma as decisões com o objetivo de manter a homogeneidade social, o funcionamento do sistema e garantir a preservação da unidade estatal. Por isso o governante deve ser soberano, porque é ele que decidirá sobre um Estado de exceção.
Ao povo cabe obediência em troca da habilidade decisiva governamental. Para Schmitt, todo governo capaz de ação decisiva deve incluir um elemento ditatorial na sua Constituição. o Estado de Emergência é limitado (até mesmo em posteriori, pela lei), para “soberania da ditadura”, onde o Direito foi suspenso, como em clássico Estado de Exceção, não para “salvar a Constituição”, mas para criar outra. Foi assim como ele autorizou a suspensão contínua de Hitler da ordem constitucional legal durante o Terceiro Reich (A Constituição da República de Weimar nunca foi ab-rogada, como citou Giorgio Agamben; particularmente, foi “suspensa” por quatro anos, sendo a primeira em 28 de fevereiro de 1933 pelo Decreto de incêndio do Reichstag e a suspensão era renovada a cada quatro anos, similiando-se a um – contínuo – Estado de Emergência).
Hà de se ver o normativismo de Hans Kelsen e o decisionismo de Carl Schmitt. Em síntese, poderia-se dizer que o normativismo impõe uma derrota à racionalidade buscada pelo Direito Natural, ao afirmar que só haveria uma espécie de lei, a lei positiva, posta pelo Estado, que deveria governar este e os cidadãos, concluindo que haveria tão somente uma “ordem jurídica normativa”. E a partir daí, se poderia falar legitimamente de uma Teoria Pura do Direito.
Doutro giro, para Schmitt, as coisas não se davam bem assim. Para ele, Kelsen escamoteava o pressuposto de qualquer norma jurídica, que é a decisão, ou seja, haveria uma verdadeira subordinação do normativo ao elemento decisionista, presente no Direito, dado que a Teoria Pura do Direito, “esquece ou finge esquecer” “que uma norma não saberia produzir, por si própria, as condições de sua efetuação”, ou melhor, “ignorando, ou fingindo ignorar” que “a ideia do direito não pode efetuar-se por si mesma”.
A posição decisionista tem, assim, de culminar num relativismo que afirma o pluralismo dos valores últimos, que não passam de atos de crença, resignando-se em aceitar a possibilidade de rompimento desses pluralismos através de atos de violência ou de imposição violenta que não pode ser racionalmente contraditada, tendo de ser admitida como um fato. A posição de Kelsen é trazida aqui à colação, no sentido de que o direito nazista, embora criticável do ângulo das boas intenções moralizantes seria direito.
O discurso decisionista não suporta o diálogo, mas apenas um esquema unitário do que supõe verdade.De um lado haveria alguém do bem; do outro lado, alguém do mal.
A pragmática, dentro dos estudos de semiótica, faz a distinção entre a discussão-com e a discussão-contra. Na primeira, as partes que discutem são homólogas(que mantém com outro elemento similar uma relação de correspondência); na segunda, heterólogas. Na primeira, apenas, a busca da verdade como condição do consenso é possível; na segunda, o consenso é possível, mas não em razão da verdade(que ali se torna função do consenso), mas em razão de uma decisão. Na situação homológica, a possibilidade de verdade por si só garante uma passagem da estrutura dialógica para a monológica, pois a discussão-com vive dessa tentativa que o orador conseguir que o ouvinte se renda(se convença).
Na situação heterológica não se instaura uma perspectiva privilegiada dessa natureza, mas apenas um esquema unitário que coordena a pluralidade dos pontos de vista que continuam a se determinar mutuamente, um em oposição ao outro. A língua e a fala num mundo de subordinação politica e económica se distinguem claramente. Há a fala que, para Saussure, é um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1o) as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2o) o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar essas combinações”. [SAUSSURE, 2002: 22]
“Não é possível conceber um Direito legítimo no nazismo”, explica o advogado André Rafael Weyermüller. Para ele, “o Direito não era mais Direito. Era, sim, mais um instrumento de controle e legitimação da ideologia de um regime baseado, sobretudo, nas idéias de alguns poucos homens que não tinham a menor consideração por um mínimo de senso de humanidade”. Em sua opinião, “é muito difícil afirmar qual foi o fator mais importante que levou uma nação de filósofos e músicos célebres a gerar, acolher e seguir um homem extremamente limitado e perturbado com uma vida pessoal extremamente obscura e confusa, com idéias radicais e agressivas”. Mas Weyermüller pondera que, “além de músicos e filósofos, a Alemanha tinha um antecedente histórico guerreiro e militarista prussiano e um forte senso de respeito à autoridade e a disciplina. Se o Direito daquela época tinha mecanismos capazes de legitimar a ascensão do nazismo, esse senso de dever e obediência não permitia a transgressão ou a rebeldia, pelo menos foi assim para a maioria do povo”. Felizmente, conclui, “à luz do Direito hoje, principalmente do Direito Internacional, não seria possível conceber a ascensão de um poder tão absoluto e tão perverso”.
Prosseguiu Weyermüller:
“À luz do Direito hoje, principalmente do Direito Internacional, não seria possível conceber a ascensão de um poder tão absoluto e tão perverso, pois todos nós carregamos um pouco dessa e de outras experiências negativas que servem como uma espécie de freio que mostra que algo pode estar muito errado. Além do mais, a Declaração dos Direitos do Homem de 1948 e os instrumentos internacionais que se seguiram, estabelecem parâmetros, legais inclusive, que não permitem a assimilação por parte de um sistema jurídico de um regime a exemplo do nazista. Não esqueçamos, porém, que após o nazismo tivemos no mundo vários regimes que se diziam e se dizem “legais”, mas que cometem graves atrocidades contra minorias políticas, étnicas e religiosas. É contra esses embriões que precisamos lutar impondo o Direito supremo, esse sim das garantias do ser humano independentemente de sua origem ou crença. Um Direito com coerência e humanidade, com limites e fundamentos éticos e morais de defesa de direitos individuais e humanos.”
No Brasil, nossa Constituição-cidadã, fruto do legado deixado por Ulisses Guimarães, nos traz um modelo de convivência de forma a assegurar a efetividade de liberdades fundamentais, direitos sociais e dos direitos humanos.
Uma corrente política poderá sobreviver, a trazer uma ruptura democrática?
Na matéria observo excelente artigo de Ingo W. Sarlet(Proibição e dissolução de partidos políticos na Lei Fundamental da Alemanha) onde diz:
“… alguns Estados optaram por prever — inclusive nos respectivos textos constitucionais — o instituto da proibição e dissolução de partidos políticos que atentarem contra a ordem democrática, justamente como meio de defesa contra movimentos radicais e antidemocráticos, que buscam, valendo-se dos próprios instrumentos disponibilizados pelo Estado Democrático de Direito (como justamente a liberdade partidária, o direito de manifestação, entre outros), justamente colocar em cheque e mesmo fazer ruir a democracia e suas instituições.
Dentre os países que previram um procedimento dessa natureza (proibição e dissolução de partidos políticos), situa-se a República Federal da Alemanha, cuja Lei Fundamental, no artigo 21 item 2º, prevê que mediante requerimento por parte do Conselho Federal (Bundesrat) — a Casa do Parlamento Federal que assume uma posição similar ao Senado —, da Câmara de Representantes (Bundestag) ou do governo federal, o Tribunal Constitucional Federal analisa e decide sobre a inconstitucionalidade e dissolução do partido político cujo programa e cujas ações forem tidas como atentatórias à ordem livre e democrática.
Nesse contexto, calha sublinhar que a razão histórica que motivou a inserção de tal disposição na Lei Fundamental (1949) reside precisamente numa tentativa de correção de evidentes fragilidades da Constituição da República de Weimar, em especial para salvaguardar o Estado Democrático de Direito de uma corrosão e mesmo desconstrução interna por parte de agentes e movimentos de natureza autoritária e manifestamente antidemocrática, como ocorreu, precisamente, com o Partido Nacional-Socialista.
De qualquer sorte, cuida-se de medida excepcional e acionada quando estritamente indispensável, já que do contrário também poderia ser manejada para o seu efeito contrário, inibindo fortemente a liberdade política e partidária e mesmo para afastar do jogo democrático-deliberativo formações partidárias tidas como inconvenientes aos interesses das grandes agremiações. Já por tal razão a Lei Fundamental prevê que o requerimento ao Tribunal Constitucional seja inicialmente deliberado no Parlamento, passando por um duplo controle.
Assim, ao longo de toda a história da República Federal da Alemanha, antes e depois da reunificação, o Tribunal Constitucional reconheceu a inconstitucionalidade e determinou a dissolução de apenas dois partidos políticos, formados na fase imediatamente posterior ao final da 2ª Guerra Mundial, num contexto marcado pelo início também da polarização entre o bloco soviético (socialista) em formação e o bloco formado pelos países ocidentais liderados pelos aliados que, juntamente com a União Soviética, saíram vencedores do conflito.
Cuidava-se, na ocasião, do SRP (Partido Social Imperial) e do KPD (Partido Comunista), ambos de caráter extremista (direita e esquerda) e com programas e ações políticas tidas como flagrantemente contrárias ao modelo democrático concebido pela Lei Fundamental. No caso, evidencia-se também — como já adiantado — o contexto de polarização que já se havia estabelecido na ordem mundial, mas também os precedentes do período que permeou as duas grandes guerras, onde a extrema direita (representada em especial pelo Partido Nacional-Socialista) e a extrema esquerda revolucionária (representada pelo Partido Comunista) se digladiavam com violência ostensiva.
Mais recentemente (2003), o Tribunal Constitucional Federal foi provocado conjuntamente pelos três órgãos legitimados para decidir sobre a extinção, nos termos do artigo 21, item 2, da Lei Fundamental, do Partido Nacional-Democrata Alemão (NPD), agremiação de direita, tendo rechaçado o pleito, na ocasião em virtude da violação de garantias essenciais ao Estado de Direito na obtenção de elementos para fundar a acusação.
Em 2013, foi então formulado novo pedido, agora apenas pelo Conselho Federal (Bundesrat), o qual foi objeto de julgamento pelo Tribunal Constitucional, tendo a decisão sido publicada na terça-feira (17/1). A decisão já tem gerado controvérsia, pois o Tribunal Constitucional novamente julgou a ação improcedente, desta feita adentrando o mérito propriamente dito.
Num primeiro passo, o tribunal admitiu que o NPD, que adota uma postura similar à do Partido Nacional-Socialista, de fato expressa e defende uma concepção política contrária à ordem constitucional livre e democrática, objetivando substituí-la por um Estado autoritário, nacionalista e caracterizado como uma comunidade etnicamente definida, de modo a advogar um conceito de povo excludente (em relação a minorias religiosas, estrangeiros e imigrantes) e que ofende a dignidade humana, sendo, ademais, favorável à derrubada da democracia representativa e parlamentar.

Bolsonaro revive o fascismo no Brasil (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

A despeito desse reconhecimento, o tribunal entendeu que ainda não é possível ter como perfectibilizado o suporte fático da regra constitucional justificativa da proibição do partido, pelo fato de que ainda (e é conveniente frisar o ponto) faltam elementos concretos de suficiente peso (gravidade) que permitem constatar e real viabilidade de efetivação dos objetivos anticonstitucionais do NPD.
Por um lado — argumenta o tribunal —, o NPD não possui condições reais de alcançar isoladamente uma maioria ou mesmo dispõe da possibilidade efetiva de participar de uma coalização partidária que lhe permitisse alcançar os seus objetivos. Da mesma forma, o NPD não apresenta condições de atingir os resultados pretendidos fora da esfera de ação parlamentar, em virtude de seu pequeno número de militantes (menos de 6 mil em toda a Alemanha) e da baixa capacidade de organização, mobilização e mesmo de influenciar de modo relevante o processo de formação de opinião. Além disso, o tribunal recorre ao princípio da proporcionalidade, entendendo que eventuais e pontuais ações criminosas cometidas por integrantes do partido ou simpatizantes, ainda que registradas, não têm o condão de inquinar a agremiação como tal, podendo e devendo ser combatidas, em caráter preventivo e repressivo, por meio do exercício do poder de polícia e da persecução criminal pessoal.”
Mas sendo assim, o Estado Democrático deve se preocupar com adoção de medidas alternativas para conter o autoritarismo, o fundamentalismo, a xenofobia, o racismo e a intolerância em geral.
IV – CONDUTAS FASCISTAS
Mas o fascismo não morreu.
Traço abaixo o que foi publicado no site do Estadão, em data de 30 de outubro de 2018:
“O Ministério Público Federal, em Chapecó (SC), recomendou às universidades da região e gerências regionais de educação, ‘que se abstenham de qualquer atuação ou sanção arbitrária e, mesmo, que impeçam qualquer forma de assédio moral a professores, por parte de estudantes, familiares ou responsáveis’. A recomendação atende representações recebidas pela Procuradoria da República sobre um canal anônimo de denúncia contra professores criado pela deputada estadual eleita em Santa Catarina Ana Caroline Campagnolo (PSL), aliada do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL).
Após a vitória do deputado nas eleições 2018, Ana Caroline abriu um canal informal de denúncias na internet para fiscalizar docentes em sala de aula a partir da segunda-feira, 29. A deputada eleita pede que vídeos e informações sejam repassados para o seu número de celular com o nome do professor, da escola e da cidade.
“Garantimos o anonimato dos denunciantes”, diz a imagem compartilhada pela deputada em uma rede social.
Ana Caroline conclamou alunos a filmar o que ela denomina de “professores doutrinadores”. Segundo a deputada eleita, os docentes “inconformados e revoltados” com o resultado da eleição para presidente da República, fariam das salas de aula “auditório cativo para suas queixas político-partidárias”, insuflando os estudantes a filmar e gravar todas as manifestações que, em seu entendimento, seriam “político-partidárias ou ideológica (sic)”.
A Recomendação do Ministério Público, se ignorada, pode implicar em responsabilização, mas não significa ato de autoridade que venha a delinear o ajuizamento de mandado de segurança.
O poder de recomendação do Parquet é um instrumento útil de provocação extrajudicial da constitucionalidade. Sabemos que o Ministério Público é um dos principais agentes de defesa da democracia, daí a recomendação.
Essas recomendações não gozam de coercibilidade, tendo um forte valor moral e político.
Na Recomendação, a Procuradoria aponta que pesquisas realizadas no Facebook ‘denotam que efetivamente a deputada estadual catarinense, eleita no recente pleito, manifestou-se nesse sentido’. O Ministério Público anexou à Recomendação cópia de imagens da aliada de Bolsonaro nas redes sociais. Em uma delas, Ana Campagnolo aparece empunhando uma arma.
Na avaliação do Ministério Público Federal, a conduta, ‘além de configurar flagrante censura prévia e provável assédio moral em relação a todos os professores do estado de Santa Catarina – das instituições públicas e privadas de ensino, não apenas da educação básica e do ensino médio, mas também do ensino superior – afronta claramente a liberdade e a pluralidade de ensino’.
Assédio moral é a exposição de alguém a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções.
Na Recomendação, a Procuradoria da República destaca a abertura de inquérito civil, ‘que objetiva apurar suposta intimidação a professores do Estado de Santa Catarina, por parte de deputada estadual eleita no último pleito’.
Historiadora, Ana Campagnolo processou a professora Marlene de Fáveri, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), e sua ex-orientadora no mestrado, em 2016, por suposta “perseguição ideológica”. O caso, que marcou as discussões acerca do movimento Escola Sem Partido, foi julgado improcedente em setembro deste ano pelo 1º Juizado Especial Cível de Chapecó (SC), mas a atual deputada recorreu.
O chamado “dedodurismo” é umas das chagas do fascismo.
A aprovação do projeto Escola Sem Partido no Congresso é uma das principais bandeiras de Jair Bolsonaro. O movimento, por sua vez, já foi contestado pela Advocacia-Geral da União (AGU), Ministério Público Federal (MPF) e associação de professores.”
Tempos difíceis que estão a surgir, com trovoadas, temporais, um ar asfixiante, tal como o ingresso no ordenamento nacional do AI – 5, em dezembro de 1968.
Esse movimento tem tentáculos pelo mundo afora.
Na Itália, como se vê das perseguições de caráter nacionalista apoiadas pela Liga.
Na Itália, Liga, CasaPound, M5S e todos os movimentos populistas, nacionalistas e fascistas italianos se unem na defesa dos direitos dos trabalhadores a salários “dignos”, dos contratos estáveis e na luta contra a precarização. A base eleitoral deles é a mesma de Trump e dos grupos ultranacionalistas europeus: os trabalhadores brancos que se sentem prejudicados pela globalização.
Na Hungria, na Polônia, como exemplo.
Na Hungria vive-se uma situação de proto-fascismo, onde nem os aspectos formais da democracia estão já salvaguardados, quanto mais os valores da liberdade e do pluralismo substanciais.
A Hungria é, talvez, para alguns, um país distante – mas interessa muito às nossas próprias liberdades, porque não vivemos dentro da casca de um ovo, porque as dinâmicas regressivas começam nuns países e alastram a outros… e porque nada do que é humano nos é indiferente.
Isto questiona a União Europeia, que prega uma Europa sem fronteiras e ainda uma Europa congregada.
Para alguns, a União Europeia devia ser só uma união de interesses, um mercado. Mas, para os socialistas, não faz sentido uma União Europeia onde há metas e sanções para os domínios económicos e financeiros e não há a mesma exigência para proteger os direitos sociais e as liberdades.
Por isso nos temos batido para que a União Europeia atue em relação aos países onde o Estado de Direito está em perigo, porque se não nos mobilizamos pelo Estado de Direito não fazemos sentido como comunidade.
O Parlamento Europeu votou uma proposta para sancionar a Hungria por desrespeitar as regras da UE sobre democracia, direitos civis e corrupção. É um passo novo e importante.
O governo da Hungria alinha pelo partido dominante da direita europeia, o PPE. Vergonhosamente, o PPE não deu uma orientação clara para apoiar a medida, porque há deputados da direita europeia, no PPE, que enchem a boca com a democracia mas dão prioridade a proteger aqueles que consideram seus amigos (embora amigos vergonhosos).
O chefe da pasta de Economia da União Europeia, o francês Pierre Moscovici, abriu a primeira saia justa para Bruxelas em relação ao Brasil. Em declarações nesta manhã, o comissário para Assuntos Econômicos do bloco criticou a eleição de Jair Bolsonaro e pediu que as lideranças no mundo “acordem”.
“Bolsonaro é evidentemente um populista de extrema direita”, disse o ex-ministro francês em diferentes governos socialistas em declarações à TV do Senado francês. “Atrás dele, vemos a sombra dos militares que estiveram por um longo tempo no poder no Brasil, constituindo uma ditadura terrível”, declarou. “Ele mesmo é um ex-militar e seu vice-presidente é um militar”, destacou o comissário.
V – BOLSONARISMO
No Brasil, desgraçadamente, há o fenômeno fascista do bolsonarismo.
Seu empenho está voltado para afirmar a prevalência do direito sobre o poder.
Isso é a essência do pensamento de Schmitt.
Schmitt dedica-se a subordinar o direito ao poder.
Schmitt é o “guardião do arbítrio”, como observa Michelangelo Bovero.
Lúcida e orientadora a abordagem de Celso Lafer, em artigo para o Estadão, no dia 19 de setembro de 2021, quando disse:
“Há muita sintonia relacionada ao mal ativo na convivência política em nosso país entre os paradigmas schmittianos e o instinto da ação do presidente Jair Bolsonaro.
O presidente está sempre propenso a afirmar a prevalência do seu poder sobre a Constituição, da qual se considera, independentemente do STF, o seu guardião; a construir a sua conduta política pela ascensão aos extremos da distinção amigo/inimigo; a buscar no seu decisionismo a soberania de declarar a exceção e a exasperar-se com a normalidade; e a postular a sua legitimidade de chefe em detrimento da legalidade das normas.”

*É procurador da república com atuação no RN aposentado.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto