Abrindo o jogo sobre o aborto

Aborto está em discussão no STF (Foto: Getty Images)

Por Hermes C. Fernandes*

O aborto voltou a ser tema de acalorados debates depois que a sua descriminalização em qualquer circunstância até a 12ª semana de gestação tornou-se pauta no STF.  A análise virtual havia começado na última madrugada. Agora, o julgamento será reiniciado em sessão presencial, ainda sem data marcada a pedido do ministro Luís Roberto Barroso. Antes do destaque, a relatora, ministra Rosa Weber, havia votado a favor da descriminalização do aborto até as 12 primeiras semanas. Em seu voto, a presidente do Supremo explicou que os direitos sexuais e reprodutivos da mulher se baseiam em um conceito amplo de saúde, no qual estão incluídos o controle e a redução da mortalidade materna e de suas causas.

O artigo 124 do Código Penal prevê pena de prisão, de um a três anos, para quem “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. Já o artigo 126 pune quem “provocar aborto com o consentimento da gestante” com um a quatro anos de prisão. Pela legislação, o aborto só não é crime em caso de estupro ou quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Além disso, a jurisprudência do STF permite o aborto nos casos de fetos anencéfalos.

Pelo amor de Deus! Quem em sã consciência seria a favor do aborto? Só um ser desprovido de sentimento seria a favor que se interrompesse a gestação de um ser indefeso. Mas quem em sã consciência seria a favor de que mulheres pobres, desesperadas, vítimas de estupro, fossem penalizadas por não quererem dar prosseguimento a uma gravidez? Quem em são consciência preferiria que tais mulheres morressem em clínicas clandestinas ou fossem tratadas como criminosas?

Não é preciso ser a favor do aborto para admitir que sua criminalização só faz aumentar o lucro exorbitante dos carniceiros que agem na penumbra, locupletando-se do desespero de muitas meninas. Se uma delas me procura em busca de ajuda, meu conselho é que não aborte. Mas caso o faça, não serei eu a condená-la.  Além da morte de um ser que não tem culpa de vir ao mundo, o aborto é uma agressão ao corpo da mulher e, geralmente, deixa sequelas, sobretudo, emocionais, dentre as quais, a síndrome pós-abortiva.

E por favor, vamos evitar clichês e argumentos rasos. A questão não é se há vida em Marte (bactéria é vida e ninguém se sente culpado de exterminá-la). A questão é se há algum nível de consciência no feto. Há vida em cada espermatozoide e ninguém é acusado de ter cometido um genocídio depois de se masturbar ou interromper um coito.

Genocídio é o que tem acontecido em milhares de clínicas clandestinas ao redor do mundo. Segundo a ONU, pelo menos 70 mil mulheres perdem a vida anualmente em consequência de abortos realizados em condições precárias.

Agora preste atenção num dado importantíssimo: Em janeiro de 2012 uma pesquisa realizada pela Organização Mundial de Saúde revelou que a prática do aborto é maior nos países em que ele é proibido e quase metade de todos os abortos feitos no mundo é realizada com altos riscos para a mulher. Entre 2003 e 2008, cerca de 47 mil mulheres morreram e outros 8,5 milhões tiveram consequências graves na sua saúde, decorrentes da prática do aborto.

A criminalização do aborto NÃO REDUZ o número de abortos. Se o aborto é descriminalizado, ou mesmo legalizado, o número de abortos NÃO AUMENTA.

Sabe aqueles abortos feitos no banheiro, com agulha de tricô, cabide e galhos? Eles causam a morte de pessoas, tanto da criança, quanto da mãe. Abortos com médicos incapacitados e mal equipados, em condições extremas, matam pessoas. Rasgos uterinos e perfuração de órgãos causados pelas agulhas de tricô e cabides usados provocam hemorragia interna, infecções, esterilização e mortes de pessoas.

A equação é simples. O aborto ilegal e inseguro mata pessoas. Digo, pessoas além do número X de fetos que já iriam morrer (estatisticamente). Então, se o aborto é legal e seguro, X fetos morrerão, nem mais, nem menos. Em contrapartida, se o aborto é ilegal e inseguro, X fetos continuarão morrendo, mais um número Y de pessoas que morrerão pelas consequências de terem tentado fazer um aborto sem a mínima condição de higiene e salubridade. Sejamos sinceros: qual opção salva mais vida? Ou ainda: Qual opção mata menos?

Eu reconheço que a equação é simples, mas a questão é complexíssima.

Dizer tudo isso não significa ser a favor do aborto. É tão-somente buscar atenuar um problema sério que já existe e não pode ser varrido para debaixo do tapete.

A recente decisão do STF que descriminaliza o aborto até a 12.ª semana de gravidez está pautada em argumentos sobre os quais precisamos refletir antes de sair por aí emitindo opiniões ou simplesmente nos omitindo.

Os atributos que nos caracterizam como humanos não são ter um rim funcionando, nem um coração batendo, mas ter um cérebro em atividade. Isto é razoavelmente estabelecido porque é a morte cerebral que é considerada o critério para dizer quando uma pessoa morreu, e não a falência de outros órgãos.

Se a morte do cérebro é o critério médico que o Estado aceita para considerar o indivíduo humano como morto, o início do cérebro deveria ser o critério para considerar o início do indivíduo, e não a fecundação.

O cérebro não tem sua arquitetura básica formada no mínimo até o terceiro mês da gestação. Isso significa que o embrião não percebe o mundo, não tem consciência, é um conjunto de células como qualquer pedaço de pele. Partindo desta premissa, podemos inferir que não é moralmente condenável que as mães tenham direito de escolher não continuar a gestação antes deste período (obviamente, que tal decisão não deveria ser por motivos banais, como defende Edir Macedo em um dos seus vídeos, alegando que o aborto deveria ser aceito como um método de planejamento familiar).

Argumentar que o embrião tem o potencial de dar origem a um ser humano não vale, pois seria como tentar proteger os óvulos que se perdem logo antes das menstruações em todas as mulheres, ou os espermatozoides que são descartados na masturbação masculina, na polução noturna ou no coito interrompido. Além disso, hoje a ciência sabe que toda célula humana, até as células da pele, tem o potencial de dar origem a um ser humano inteiro, bastando para isso alguns procedimentos de clonagem.

A vida, em sentido mais amplo, que inclui os outros animais, as plantas e até os microorganismos, é um processo ininterrupto que começou neste planeta há aproximadamente 4 bilhões de anos. Por isso é importante reiterar: não é o início da vida que está em debate aqui, e sim o começo do indivíduo humano como ser consciente, dotado de uma mente e, portanto, apto a receber a proteção do Estado.

Permitam-me repetir: Ser a favor da legalização do aborto não é ser necessariamente a favor do aborto. Sou e sempre serei contra o aborto. Mas também sou e sempre serei contra a hipocrisia com que tratamos temas morais como este, fazendo vista grossa a milhares e milhares de mulheres que perdem suas vidas ou são tratadas como criminosas por interromperem uma gestação indesejada.

Independentemente de nossa postura com relação ao tema, sugiro que nos disponibilizemos para prestar atendimento às vítimas de estupro e às futuras mães de crianças anencéfalas para aconselhá-las e acolhê-las, bem como ajudá-las a enfrentar o desafio que terão pela frente. Respeito opiniões divergente, mas sei que parte de vocês não respeitará à minha e ainda a usará para me desqualificar. Tudo bem. Não se pode agradar a todos.

Levando a questão para o lado teológico, o que a Bíblia diz sobre o odioso procedimento? Haveria algum mandamento específico acerca do aborto? Ou deveríamos incluí-lo no “não matarás”? O fato é que existe sim um mandamento sobre o aborto. Pena que poucos se atentem para ele.

O que você acharia de uma lei que penalizasse com a morte a quem matasse uma grávida, mas aplicasse apenas uma multa a quem provocasse um aborto? Seria a vida da mãe mais valiosa do que a do feto? Pois é justamente isso que diz o único mandamento bíblico sobre o aborto.

Em Êxodo 21:22-23 lemos que se alguns homens pelejarem “e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, porém não havendo outro dano, certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher e julgarem os juízes. Mas se houver morte, então darás vida por vida.” Repare nisso: por mais embaraçoso que isso nos soe, o aborto é tratado como dano cuja penalidade não passa de uma multa. A única morte considerada no texto é a da mãe. Neste caso, valeria a lei de talião: olho por olho, dente por dente, vida por vida. Se a vida do feto tivesse a mesma importância que a da mãe, a penalidade seria a mesma. À luz deste texto em particular, não faz sentido classificar um aborto como homicídio (principalmente até o terceiro mês), penalizando as mulheres que o praticam como criminosas.

O Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) autoriza os países a adotar medidas para regular a interrupção voluntária da gravidez, mas não permite que tais medidas violem os direitos das mulheres. As restrições não podem, por exemplo, colocar em risco suas vidas, sujeitá-las a dor e sofrimento ou interferir na sua vida privada.

Ou seja, os Estados precisam “proporcionar um acesso seguro, legal e eficaz ao aborto sempre que esteja em risco a vida e saúde da mulher”, para que as gestantes não tenham de fazer abortos inseguros. O Comitê expressamente diz que os países não devem aplicar sanções penais às mulheres que recorrem ao aborto ou aos médicos que lhes prestam assistência.

*É pastor, psicólogo, escritor e doutor em ciências da religião.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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