Algumas anotações sobre o impeachment diante da renúncia: um caso específico

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Por Rogério Tadeu Romano*

Alexander Hamilton (1755-1804), um dos pais fundadores dos Estados Unidos e um dos mais influentes promotores da Constituição americana, que ele ajudou a escrever, já havia antecipado que o impeachment seria um julgamento eminentemente político. Em ensaios, conhecidos como “os artigos federalistas”, Hamilton escreveu que um processo de impeachment “dificilmente deixaria de agitar as paixões de toda a sociedade e de dividi-la em partidos mais ou menos amistosos ou hostis em relação ao acusado.”. “Em muitos casos, o processo de impeachment se conectará com as facções preexistentes e mobilizará todas as animosidades, parcialidades, influências e interesses de um lado e de outro.”, escreveu Hamilton. “Nesses casos, sempre haverá o grande perigo de que a decisão será tomada mais de acordo com as forças comparativas dos partidos do que pela real demonstração de inocência ou culpa.”.

Observo, por fim, na lição de Paulino Jacques (Curso de Direito Constitucional, 9ª edição, pág. 307) que “a quase unanimidade dos autores norte-americanos, quer os clássicos, como Story, Cooley, Black e Von Host, quer os modernos e contemporâneos como Munro, Haines, Beard e Rottschaeffer, não cogitaram da controvérsia por se tratar de indagação mais teórica do que prática, avessa ao seu espírito. Munro, entretanto, refere o caso do secretário de Estado Belknap, que, apesar de haver o presidente Grant, em 1878, lhe aceito a demissão, o processo de impeachment prosseguiu no Senado, donde se poderá concluir que era um processo misto (The Government, pág. 288)”.

Adotaríamos assim a tese do impeachment europeu, um processo misto (político-criminal), como notaram Duguit, Esmein, Bryce e Tocqueville, dentre outros, ao passo que o impeachment americano só inflige pena administrativa, pois há um processo meramente político.

Lembro o acórdão do Supremo Tribunal Federal que, por unanimidade, indeferiu o mandado de segurança impetrado pelo ex-presidente Fernando Collor de Melo contra resolução do Senado que o havia declarado inabilitado por oito anos para o exercício de função pública ( Mandado de Segurança n.º 21.689-DF, cujo relator foi o ministro Carlos Velloso).

Disse ali o ministro Velloso, em seu voto:

“Geraldo Ataliba, em artigo publicado na «Folha de São Paulo», de 2-5-93, dissertou sobre o tema. Após registrar que a finalidade do impeachment não é somente remover do cargo o funcionário, mas, também, o de «torná-lo impedido de aceder a outros cargos públicos», compara o impeachment ao ostracismo grego e traz ao debate o magistério de Michel Temer em livro escrito há mais de dez anos. Nesse livro, «Elementos de Direito Constitucional», cuja 1ª edição veio a lume em 1982, leciona o professor paulista: «Se o Presidente da República renunciar ao seu cargo quando estiver em curso processo de responsabilização política, deverá ele prosseguir ou perder o seu objeto, devendo ser arquivado? O art. 42, parágrafo único, fixa duas penas: a) perda do cargo; b) inabilitação, por cinco anos, para o exercício de função pública. A inabilitação para o exercício de função pública não decorre da perda do cargo, como à primeira leitura pode parecer. Decorre da própria responsabilização. Não é pena acessória. É, ao lado da perda do cargo, pena principal. O objetivo foi o de impedir o prosseguimento no exercício das funções (perda do cargo) e o impedimento do exercício — já agora não das funções daquele cargo de que foi afastado — mas de qualquer função pública, por um prazo determinado. Essa a consequência para quem descumpriu deveres constitucionais fixados.» E conclui: «A renúncia, quando já iniciado o processo de responsabilização política, tornaria inócuo o dispositivo constitucional se fosse obstáculo ao prosseguimento da ação. (…) Assim, havendo renúncia, o processo de responsabilização deve prosseguir para condenar ou absolver, afastando, ou não, sua participação da vida pública pelo prazo de cinco anos».(Michel Temer, «Elementos de Direito Constitucional», RT, São Paulo, 1982, págs. 186/187).

Cláudio Pacheco, que escreveu sobre o tema em 1965 — registra o Ministro Celso de Mello, no seu livro, «A Constituição Federal Anotada», Saraiva, 1984, pág. 137 — não destoa do entendimento de Michel Temer, ao lecionar que a renúncia não faz cessar o processo de impeachment, dado que este objetiva, também, a «inabilitação temporária para qualquer função pública. Logo, parece-nos mais acertado não dar ao próprio acusado o direito de eximir-se a uma penalidade cuja aplicação é de interesse público». (Cláudio Pacheco, «Tratado das Constituições Brasileiras», Rio, 1965, vol. V, nº 343, págs. 414/415). As lições de Michel Temer e Cláudio Pacheco, acentuando a existência, no impeachment brasileiro, de duas penas — «perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública» — retira da segunda pena o caráter de acessoriedade que a inicial da presente ação lhe confere. Esse caráter de pena acessória que se empresta à inabilitação decorre, na verdade, da doutrina construída sob o pálio da Constituição de 1891 e das Leis nºs 27 e 30 de 1892.”

Então se entendeu:

“A renúncia ao cargo, apresentada na sessão de julgamento, quando já iniciado este, não paralisa o processo de impeachment”.

O ministro Celso de Mello também afirmou então no seu voto que “(…) há uma única sanção constitucionalmente estabelecida, que compreende, na abrangência do seu conteúdo, a destituição do cargo com inabilitação temporária. A unidade constitucional da sanção prevista torna-a indecomponível, incindível, impedindo, dessa forma, que se dispense tratamento jurídico autônomo às projeções punitivas que emanam da condenação senatorial”.

Por outro lado, naquele mesmo mandado de segurança ficou claro – como em recentes precedentes do Supremo Tribunal Federal – que o mérito do impeachment é, obviamente, a condenação ou absolvição pela prática de crimes de responsabilidade. O ministro do Supremo Tribunal Teori Zavascki observou não ser cabível juízo de mérito “sobre a ocorrência ou não dos fatos ou sobre a procedência ou não da acusação (…)” (vide Mandado de Segurança n.º 34.193-DF). e em relação a isso o Supremo não se pode pronunciar, por se tratar de julgamento político realizado pelo Senado Federal.

Já se entendeu que deve o Supremo Tribunal Federal, contudo, exercer o controle de constitucionalidade quanto à aplicação da sanção do impeachment na sua inteireza, conforme dispõe o artigo 52, parágrafo único, da Constituição federal. Como acentuou, mais uma vez, o eminente decano do Supremo, ministro Celso de Mello, em trecho do seu voto: “(…) a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal jamais tolerou que a invocação do caráter político das resoluções tomadas pelas Casas Legislativa pudesse configurar (…) manto protetor de comportamentos abusivos ou arbitrários, praticados à margem da Constituição”.

No passado havia disciplina anterior, Leis nº 27 (que disciplinava as infrações) e nº 30 (que disciplinava o procedimento), ambas de 1892 – sobre as quais se debruçaram muitos dos comentaristas sem que mais assim o fizessem diante da nova disciplina da Lei nº 1.079/50), onde a sanção de inabilitação guarda autonomia (observe-se que na CF de 34 o art. 58, § 7º chegava ao ponto de usar o termo “somente” a perda de cargo, com inabilitação até….”, enquanto na atual a redação não usa esses termos peremptórios). Por outro lado, no caso da inabilitação, a sanção diz respeito a qualquer investidura pública, ou seja, é mais abrangente do que a própria perda do cargo.

No RMS 4928/AL, disse o ministro Nelson Hungria:

“(…) o ‘impeachment’ é processo marcadamente político, eminentemente político, e não judicial. Com toda propriedade, na Argentina, onde se evita o empréstimo de vocábulos estrangeiros, o nome que se emprega na espécie é ‘juicio político’. Trata-se, realmente, de um processo essencialmente político, por isso mesmo que tende, apenas à destituição e subsequente inabilitação funcional temporária do acusado, sem prejuízo – prestem bem atenção os eminentes colegas – da ulterior ação penal no juízo comum. Disse o nobre patrono da Assembleia Legislativa alagoana, com apoio do eminente Sr. Ministro Ary Franco, que, tratando-se de processo que diz respeito a crime de responsabilidade, não podia deixar de ser processo penal. O argumento, data venia, é vicioso. (…) O ‘impeachment’ não conduz à aplicação de pena criminal. A pena criminal só existe no Código Penal. A lei n. 1.079 cuida, tão somente, da aplicação de medida político-administrativa, que é o afastamento do acusado do cargo que ocupa e sua subsequente inabilitação temporária para a função pública”.

Somo a isso o HC nº 38338/SP , Pleno, Relator Ministro Cândido Motta, DJ de 29.6.1961 : Voto do Ministro Victor Nunes: “No impeachment , o que temos é sanção política: afasta-se o condenado, definitivamente, da função que vinha exercendo, ficando inabilitado para as funções públicas, por certo, se for o caso. Qualquer constrangimento de natureza penal a que esteja exposto, virá, como disse o eminente relator, posteriormente, se o impeachment for procedente e se, além disso, o fato imputado ao Prefeito configurar, também, crime comum”

Trago à colação o entendimento do ministro Alexandre de Moraes no julgamento apontado em que a casa legislativa, Senado Federal, manteve os direitos políticos da ex-presidente Dilma Roussef, apenas de condená-la à perda de mandato:

“Ocorre que não se admite o controle jurisdicional em relação ao mérito da deliberação empreendida pelo Senado Federal no curso do processo de impeachment, sendo vedado ao Poder Judiciário, substituindo-se ao próprio Legislativo, ampliar o âmbito de cognição que lhe é cabível para avançar, de maneira indireta, sobre o resultado do julgamento, sob pena de ostensivo desrespeito à Separação de Poderes, por intromissão política do Judiciário no Legislativo (Direito constitucional. 38. Ed. Atlas, 2022. Cap. 12, item 9.1.5). A análise da acusação e a conclusão sobre o cometimento ou não de crime de responsabilidade serão do Senado Federal, atuando como órgão jurisdicional, não sendo possível a revisão judicial do mérito da decisão senatorial; não cabe, portanto, ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL modificar a conclusão de mérito resultante da manifestação dos Senadores, sob a alegação de inobservância do procedimento previsto para o processo de impeachment.”

Trago a lição do ministro Paulo Brossard no julgamento em que se discutiu o impeachment do ex-presidente Collor de Mello:

“A minha conclusão não decorre do fato de tratar-se de questão política, como por vezes se diz, ou interna corporis. Embora o processo seja marcadamente político, a sanção política, as infrações políticas, isto não importa em associar-se o impeachment às questões meramente, puramente ou exclusivamente políticas, segundo o sentido que essas expressões têm na linguagem do Direito Constitucional. O meu entendimento se funda no fato de a constituição haver reservado ao Senado toda a jurisdição a respeito da matéria, e excluído, por conseguinte, a interferência do Poder Judiciário. Não fora assim e a última palavra, direta ou indiretamente, seria dada pelo STF e não pelo Senado. (…) Pode o STF interferir no mérito do julgamento que compete ao Senado fazer, e reformar sua decisão, como pretende o impetrante, sob o fundamento de que ela decorre de uma exegese menos feliz e de uma orientação doutrinária menos louvável? Não me parece que isto possa ser feito. (…) Em verdade, as leis não concebem recurso algum da decisão do Senado para qualquer outra Corte, nem mesmo para o próprio Senado; nem a rescisória é admitida; o judiciário, originariamente ou em grau de recurso, não pode conhecer da matéria, dado que a Constituição, bem ou mal, reservou para o Senado e exclusivamente para ele conhecer e decidir acerca do assunto. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, firmada de 1895 a 1937, O impeachment , n. 57, p. 83-85, n os 127 a 136, p. 155-162, assim como a lição dos nossos maiores constitucionalistas, Rui Barbosa, Comentários à Constituição , III, 176; Barbalho, Constituição Federal brasileira , 1902, p. 100 e 240; Felinto Bastos, Manual do direito público e constitucional , 1914, p. 395; Maximiliano, Comentários , 1929, nos 391, p. 643, n o 282; p. 398-9, nota 5; n o 455, p. 796; Lacerda, Princípios do direito constitucional , 1929, II, n o 631, p. 470; Hely Lopes Meirelles, Direito municipal brasileiro , 1964, II, 566 e 567. É que o Senado, quando julga o Presidente da República, não procede como órgão legislativo, mas como órgão judicial, exercendo jurisdição recebida da constituição, e de cujas decisões não há recurso para nenhum tribunal. Isto nada tem de inaudito. Da decisão do STF nas infrações penais comuns em que figure como acusado o Presidente da República (bem como o Vice-presidente, os membros do Congresso, os seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República), art. 102, I, a , da CF, também não há recurso algum, nem para outro tribunal, nem para o Senado. Por mais eminentes que sejam as atribuições do STF, e o são, ele não é curador do Senado e sobre ele não exerce curatela. No particular, a constituição traçou, com nitidez matemática, as atribuições privativas do Senado e do Poder Judiciário. Aliás, penso não ser inoportuno lembrar que o Senado e só o Senado pode processar e julgar os Ministros do STF nos delitos de responsabilidade. Os Ministros do STF, o Procurador-Geral da República e o Advogado Geral da União, art. 52, II, da CF. (Pleno, MS 21.689-1, DJ, 7-4-1995).“

Fala-se de caso recente envolvendo a deputada Carla Zambelli que renunciou ao cargo de deputado federal após condenação em ação penal pelo STF.

A perda do mandato e a inelegibilidade são efeitos extrapenais da condenação criminal, diante do impedimento do ocupante do cargo.

Ninguém pode renunciar a um mandato que já não existe. A Constituição é inequívoca no sentido de que é incompatível o exercício do mandato com pena privativa de liberdade por mais de 120 dias (art. 55, III), condenação criminal transitada em julgado (art. 55, VI) e pena superior a 4 anos com suspensão dos direitos políticos (art. 15, art. 55, IV).

A renúncia pela ex-deputada não causa qualquer alteração na sua situação.

A renúncia não tem qualquer efeito nos casos de perda mandato. Cabe ao presidente da Casa Legislativa declarar a perda do cargo e convocar suplente para assumi-lo.

Disse bem o professor de Direito Constitucional Gustavo Sampaio, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que o STF deverá considerar inócua a renúncia de Zambelli para efeito de preservação de direitos políticos, e a deputada permanecerá inelegível por oito anos:

— Como a deputada está manifestando renúncia depois de uma ordem judicial determinando que num prazo de 48 horas a Mesa de Diretora da Câmara se pronuncie para a perda mandato, o STF considera inócua a renúncia da Zambelli. Com a perda de cargo, e a condenação criminal transitada em julgado, ficam suspensos os direitos políticos da deputada, e ela não pode mais se candidatar.”

É mais um exemplo de que a renúncia, ato unilateral, de abdicação, não tem qualquer efeito quando se trata de perda do cargo por impedimento ao seu exercício.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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