Anotações sobre o mandado de segurança e o processo eleitoral

Mineiro e Beto disputam mandato 

Por Rogério Tadeu Romano 

I – LINHAS GERAIS

É conhecida a lição de que o mandado de segurança não é um recurso, mas uma ação de natureza civil, de rito sumário, destinado a proteger o direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público(artigo 5º, LXIX, da Constituição Federal).

Direito líquido e certo é considerado aquele que não desperta dúvidas, que não precisa ser aclarado com o exame de provas em dilações e que é, em si mesmo, concludente.

Trata‐se de garantia constitucional e que se caracteriza por sua natureza mandamental. Para Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins(Comentários à constituição do Brasil, São Paulo, Saraiva, 1989, 2º volume, pág. 326) é remédio processual cuja decisão é executória, desde logo, traduzida por: a) desnecessidade de um processo específico de execução; b) satisfação in natura, pelo impetrado do dever cominado; c) substituição, em sendo necessário, do próprio ato combatido pelo ato judicial; d) nos demais casos, pela expedição de uma ordem, cujo descumprimento é gravemente apenado(CP, artigo 330).

Como ficará o mandado de segurança contra ato judicial?

A Lei 12.016/2009 disciplinou a matéria, de forma negativa, dispondo que não se concederá mandado de segurança contra ato judicial, nas seguintes hipóteses:   a) de ato de que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo independente de caução, não sendo obrigatório que o impetrante tenha que exaurir as vias administrativas(todavia, ingressando com o recurso administrativo com efeito suspensivo, o cabimento do mandado de segurança ficará postergado até a resolução daquele);   b) de decisão da qual caiba recurso com efeito suspensivo, isto porque o mandado de segurança é ação de índole subsidiária;4 c) de decisão transitada em julgado, como reza o enunciado da Súmula 268 do Supremo Tribunal Federal, que assenta não caber mandado de segurança contra decisão transitada em julgado.

Mas o uso correto do mandado de segurança se dá com relação as chamadas decisões teratológicas causadores de dano irreparável, onde não haja recurso com efeito suspensivo próprio para suspender esses efeitos e onde a ilegalidade é manifesta.

II – O MANDADO DE SEGURANÇA E O PROCESSO ELEITORAL

A regra trazida no caput do artigo 257, caput, e parágrafo é a que segue:

Art. 257. Os recursos eleitorais não terão efeito suspensivo.

Parágrafo único. A execução de qualquer acórdão será feita imediatamente, através de comunicação por ofício, telegrama, ou, em casos especiais, a critério do presidente do Tribunal, através de cópia do acórdão.

No processo eleitoral, a par das decisões interlocutórias, os recursos eleitorais, ao menos em tese, não possuem efeito suspensivo, consoante o disposto no artigo 257 do Código Eleitoral, podendo ser o mandado de segurança utilizado para combater, de forma excepcional, decisões teratológicas ou de manifesta ilegalidade: AgR – MS 4.173/MG, Relator Ministro Arnaldo Versiani, DJe de 25 de março de 2009; AgR – MS 3.845/AM, Relator Ministro Felix Fischer, DJ de 5 de setembro de 2008,dentre outras decisões.

Foi o caso recente, em decisão muito conhecida, discutida no MS 94.527/RN, na Justiça Eleitoral, em que se impôs, sem o devido processo legal, e sem sustentação legal e constitucional, pena de cassação de registro e de mandato eleitoral e ainda inelegibilidade, após declarar‐se a preclusão temporal de recurso ordinário de sentença que impôs outra sanção.

III – AS CHAMADAS DECISÕES TERATOLOGICAS

No leading case, na matéria, no caso do RE 76.909, em 5 de dezembro de 1973, adotou‐se a seguinte tese: caberá mandado de segurança contra ato judicial quando este for impugnável por recurso sem efeito suspensivo e desde que demonstrado que ocorrerá dano irreparável.

Desde julgamento considerado clássico pela doutrina que se debruçou sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal acabou por abrandar a interpretação que até então tinha na matéria para admitir mandados de segurança contra atos judiciais desde que a decisão seja teratológica, assim entendida a decisão clara e inequivocamente errada, e capaz de causar dano irreparável ou, quando menos, de difícil reparação. Tal entendimento continua a ser observado do que se lê dos seguintes julgamentos: 1ª Turma, RMS 25.340/DF, relator Ministro Marco Aurélio, DJ de 9 de dezembro de 2005, pág. 17: Pleno, MS – AGR 22.623/SP, Relator Ministro Sydney Sanches, DJ de 7 de março de 1997, pág. 5.406; Pleno RMS 21.713/BA, Relator Ministro Moreira Alves, DJ de 1º de setembro de 1995, pág. 27.379. Ainda decidiu o Superior Tribunal de Justiça, em casos similares: 4ª Turma, RMS 10.949/RJ, Relator Ministro Massami Uyeda, DJ de 27 de agosto de 2007, pág. 253, CE,AgRg no MS 12.749/DF, Relator Ministro Luiz Fux, DJ de 20 de agosto de 2007, pág. 228; CE, MS 12.339/DF, Relator Ministra Laurita Vaz, DJ de 13 de agosto de 2007, pág. 311; Primeira Turma, RMS 23.972/SP, Relator Ministro José Delgado, DJ de 2 de agosto de 2007, pág. 330; Primeira Turma, RMS 20.979/RO, Relator Ministro Luiz Fux, DJ de 31 de maio de 2007, pág. 320; CE, AgRg no MS 12.017/DF, RelatorMinistro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 16 de outubro de 2006, pág. 274; CE, AgRg no MS 10.436/DF, Relator Ministro Felix Fischer, DJ de 28 de agosto de 2006, pág. 200.

A despeito disso, decidiu o extinto Tribunal Federal de Recursos, no julgamento do MS 115.700, relator Ministro Costa Lima, DJU de 19 de maio de 1988, pág. 11.883, que cabe mandado de segurança contra ato judicial, independente de recurso, se a decisão está contaminada de ilegalidade. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RMS 97, Relator Ministro Athos Gusmão Carneiro, DJU de 11 de dezembro de 1989, pág. 18.140.

Sendo assim o mandado de segurança em matéria eleitoral é cabível para questionar decisões administrativas, decisões judiciais irrecorríveis e decisões judiciais teratológicas, (…).

IV  – O EFEITO SUSPENSIVO E O RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL

Poderá ser ajuizado mandado de segurança eleitoral se o recurso não foi recebido com o efeito suspensivo, como o caso dos embargos de declaração, ou ainda não seja caso de recurso ordinário, que nos casos previstos em lei, tem esse efeito como idôneo.

O recurso ordinário de natureza eleitoral é cabível nas hipóteses previstas nos incisos III a V do § 4º do art. 121 da CF, e nas alíneas ‘a e ‘b do inciso II do art. 276 do Código Eleitoral. Será o caso de mandados eleitorais, por exemplo.

Assim sendo, o recurso que se tenha de intentar sobre o mérito da decisão, cassando registro ou diploma eletivo, comporta reapreciação em segundo grau, por tempestiva iniciativa da parte sucumbente, não tendo de comprovar o seu cabimento, bastando traduzir a sua inconformação com o resultado do julgamento. Nessas situações, funciona o Tribunal Superior Eleitoral como órgão de segunda instância, com competência para reavaliar a decisão promanada do Tribunal Regional. Essa a conformação de um recurso onde direito e fato são devolvidos ao Tribunal Superior Eleitoral.

Observa-se da atual redação contida no §2° do art. 257 do CE que se tem que o recurso ordinário interposto em face de decisões originárias proferidas por Tribunais Regionais Eleitorais, em hipóteses nas quais os casos correspondentes tratarem de cassações ou perda de mandato eletivo, serão recebidos com efeito suspensivo pelo Tribunal ad quem. Trata-se de efeito suspensivo ope legis, segundo a lei e na forma da lei. Esse efeito aí é automático, forçando a não execução dessa decisão que poderá ser recorrida. Disse, a propósito, Guilherme Barcelos (O artigo 257, § 2º, do Código Eleitoral e a controvérsia acerca do efeito suspensivo ope legis inerente ao recurso ordinário de natureza eleitoral, Migalhas):

“O efeito suspensivo é automático, ao fim e ao cabo. E é global. Seja quanto à cassação e quanto à eventual afastamento do exercício do mandato, efeitos primários da decisão, seja quanto à inelegibilidade, que nada mais é do que efeito secundário da mesma decisão, seja na hipótese de sanção de inelegibilidade – que só se justifica com a procedência de AIJE, a partir da imposição da pena de cassação -, seja na hipótese de atração de causa de inelegibilidade reflexa.”

Mas não caberá recurso ordinário se se tratar de tema de pleito de registro de candidatura.

A redação contida no §2° do art. 257 do CE homenageia a aplicação do duplo grau de jurisdição, o que apenas faz reforçar a suspensividade inerente ao mencionado recurso, considerada a sua natureza. A cognoscibilidade deste apelo é plena. Assim como o respectivo efeito suspensivo o é, portanto.

Se não for possível a aplicação desse efeito suspensivo obedecidos os pressupostos já disciplinados será cabível o mandado de segurança contra ato judicial.

Tem-se ainda o artigo 276 do Código Eleitoral onde se diz:

Art. 276. As decisões dos Tribunais Regionais são terminativas, salvo os casos seguintes em que cabe recurso para o Tribunal Superior:

I – especial:

  1. a) quando forem proferidas contra expressa disposição de lei;
  2. b) quando ocorrer divergência na interpretação de lei entre dois ou mais tribunais eleitorais.

No caso desse recurso especial eleitoral seu efeito é apenas devolutivo.

A teratologia junta-se ao justificável risco de dano irreparável nas hipóteses de cabimento do mandado de segurança no processo eleitoral. A propósito leia-se:

MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO DO TRIBUNAL REGIONAL QUE NÃO CONCEDEU EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO ELEITORAL. IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO POR WRIT. TERATOLOGIA E DANO IRREPARÁVEL NÃO EVIDENCIADOS. INDEFERIMENTO DA LIMINAR E DO PRÓPRIO MANDADO DE SEGURANÇA. AGRAVO REGIMENTAL. FUNDAMENTOS DA DECISÃO NÃO INFIRMADOS. AGRAVO DESPROVIDO. – A excepcionalidade para admissão do mandado de segurança contra atos judiciais, só existe diante de decisão teratológica, concomitante a dano irreparável manifestamente evidenciado. […]- Agravo regimental desprovido. (AgR-MS 3723, Rel. Ministro MARCELO HENRIQUES RIBEIRO DE OLIVEIRA, julgado em 05/05/2008, DJ – Diário da Justiça, Volume 1, Tomo I, Data 12/06/2008, Página 14, sem grifos no original).

Mas o limite da impetração do remédio constitucional na defesa de um direito líquido e certo contra ilegalidade praticada é o trânsito em julgado.

Que falar de decisões judiciais onde se fulminam o devido processo legal com o devido contraditório? Nessas hipóteses, a falta de recurso com efeito suspensivo no sentido de evitar afronta a direito líquido e certo e ainda em face de risco de dano irreparável cabe o writ. Será o caso de supressão de provas de impedimento de apresentação de razões no processo, por exemplo.

V – O CASO CONCRETO

A questão da legitimidade para os mandados de segurança no processo eleitoral passa por uma análise fundamental nos dizeres de Aires Filho (O mandado de segurança em direito eleitoral. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 63): “Em matéria de legitimidade, o essencial é que se tenha uma ilegalidade ou um abuso, tolhendo direito líquido e certo. E que o ente, qualquer que seja, tenha prerrogativa ou direito próprio ou coletivo a defender”.

Que dizer da cognição em sede de ação de impugnação de registros de candidatura(AIRC) e sua influência com relação a eventual mandado de segurança que seja assegurado para dar efeito suspensivo a eventual recurso ajuizado em face de eventual sentença de procedência do pedido na AIRC?

O legislador não impõe qualquer limitação das matérias a serem enfrentadas(cognição vertical) nem tampouco acerca da profundidade das questões a serem debatidas(corte horizontal). Assim como no mandado de segurança na AIRC a cognição é exauriente.

Que falar do chamado caso Kerinho, que empolga os estudiosos do direito eleitoral, e que ocorreu perante o TER/RN.

A defesa de Kerinho alega que houve omissão no julgamento com relação a discussão sobre o recálculo do coeficiente eleitoral sem, entretanto, abordar o que determinaria o artigo 218, III, da Resolução 23.554, segundo a qual seriam contados para a legenda os votos dados ao candidato que concorreu sem apreciação do registro de candidatura, cujo indeferimento tenha sido publicado depois das eleições.

Data vênia, esta não é a questão a esclarecer no caso. O que se precisa esclarecer é se Kerinho era ou não elegível.

Há prova documental robusta de que o ex-candidato não se desincompatibilizou de um cargo comissionado na prefeitura de Monte Alegre até dezembro de 2018. Com isso estava inelegível para concorrer a eleição proporcional de deputado federal naquelas eleições. Poderá inclusive, se não tiver trabalhado no período, ser réu em ação penal contra a Administração Pública. Isso foi objeto de ampla discussão naquele julgamento, dando-se ao candidato o contraditório diante de um procedimento sumário, onde há o requerimento, a citação, o contraditório, diante de um julgamento conforme o estado do processo.

Isso basta.

Não há direito líquido e certo da parte da Coligação que ajuizou mandado de segurança com objeto de sustar a decisão do juízo a quo.

Em hipótese alguma a decisão do TRE/RN é teratológica a desafiar a legalidade. Ao contrário a situação do candidato envolvida na coligação impetrante é que vai às raias da ilegalidade.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

 

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto