As ditaduras no Brasil e o STF

STF foi atacado na ditadura militar (Foto: arquivo/STF)

Por Rogério Tadeu Romano*

I – A ERA VARGAS

As experiências ditatoriais no Brasil demonstraram a atenção daqueles nefastos movimentos antidemocráticos contra o Supremo Tribunal Federal no sentido de mitigá-lo e enfraquece-lo.

Durante a ditadura Vargas e, anos depois, com a ditadura militar, os governos autocráticos, ali formados, fizeram forte intervenção no STF.

Desde sua chegada ao poder, Vargas deixou clara a sua vontade de intervir no Supremo Tribunal Federal (STF). Já no decreto que instituía o governo provisório era prevista a criação de um Tribunal Especial para julgar crimes políticos e outros constantes em sua lei de organização. Em fevereiro de 1931 outro decreto reduziu o número de ministros do STF de quinze para onze.

Alguns dias depois Vargas aposentou compulsoriamente seis membros do Tribunal: Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, Edmundo Muniz Barreto, Pedro Afonso Mibielli, Godofredo Cunha, Geminiano da Franca e Pedro Joaquim Santos, nomeando dois ministros, Joao Martins de Carvalho Mourão e Plínio Casado a intervenção de Vargas no Supremo Tribunal Federal servia para resolver duas questões: primeiramente, fazia parte de seu projeto de livrar os órgãos estatais de pessoas ligadas à elite política da República Velha, podendo-se registrar, ainda, que a aposentadoria compulsória dos ministros poderia servir como um ato de vingança por eles terem votado contra os revolucionários de 1922, 23 e 24; a segunda, sabendo da importância do STF, mesmo diante do esvaziamento de sua competência em virtude da criação de outros tribunais, era do interesse de Vargas nomear pessoas para ocupar os postos no Tribunal, pretendendo que eles julgassem de acordo com o interesse do Executivo.

A Constituição de 1934, por sua vez, também trouxe mudanças para o Supremo Tribunal Federal. O artigo 63 alterou a denominação do Tribunal, designando-o como Corte Suprema.

O artigo seguinte, que versava sobre as garantias dos membros do judiciário, previa a vitaliciedade dos juízes, porém estabelecia a aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade, limitação inexistente anteriormente.

A Constituição de 1937 traria outras limitações e mudanças em relação ao STF.

Em junho de 1936, a Corte já estava quase completamente reformulada. Contando com o falecimento e a aposentadoria de grande parte dos ministros empossados antes de 1930, a Corte Suprema era composta por oito ministros nomeados por Vargas, os já citados Carvalho Mourão e Plínio Casado além de Carlos Maximiliano, Ataulpho de Paiva, Costa Manso, Octavio Kelly, Laudo de Camargo e Eduardo Espínola. Persistiam ainda no Tribunal Bento de Faria, empossado por Artur Bernardes, Edmundo Lins, nomeado por Venceslau Brás e Hermenegildo de Barros, empossado por Delfim Moreira.

Naquele período houve o episódio que permitiu, vencidos os ministros Carlos Maximiliano, Carvalho Mourão e Eduardo Espínola, a entrega de Olga Benário aos nazistas.

Diversos dispositivos constitucionais acabaram por enfraquecer o judiciário, inviabilizando muito de sua atuação. A Constituição de 1937 estabeleceu, por exemplo, que decisão de Tribunal que declarasse a inconstitucionalidade de lei poderia ficar sem efeito caso o Presidente da República considerasse a lei necessária ao interesse nacional. Para isso, bastava o voto de 2/3 dos membros do Parlamento quando o Presidente submetesse a decisão a reexame. Como o Parlamento Nacional nunca foi eleito, a deliberação acabou sendo exclusiva do Presidente.

Além disso, a Constituição estabeleceu que os atos praticados durante os períodos de estado de exceção (estado de emergência ou de guerra) não poderiam ser apreciados pelo judiciário.

A Constituição de 1937 omitiu de seu texto a previsão do mandado de segurança e da ação popular, e não tratou de princípios como o da reserva legal e o da irretroatividade das leis. A tortura foi utilizada durante todo o regime como forma de repressão aos opositores políticos.

Eis a Constituição de 1937 que afrontou e desconheceu direitos individuais e que serve como exemplo do mal que uma ditadura pode cometer à sociedade.

II – A DITADURA MILITAR

Em 1964 veio a ditadura militar encerrando o governo civil de Jango Goulart e começando uma era de afronta ao Estado Democrático de Direito.

Em outubro de 1965, os eleitores do Estado da Guanabara elegeram Negrão de Lima, candidato do PSD, integrante da chapa PSD/PTB; em Minas Gerais, Israel Pinheiro, do PSD, também ascendeu ao cargo de governador do seu Estado. Sendo estes dois partidos ligados a figura de João Goulart, os militares viram que o pleito eleitoral poderia enfraquecer as bases de apoio necessárias ao regime.

No dia 27 de outubro de 1965, a alta cúpula do regime militar e seus ministros se reuniram para discutir a criação de medidas que reforçassem as ações do Poder Executivo. Sendo mais rígido que seu antecessor, o AI-2 veio composto por trinta e três artigos que estipularam o uso definitivo das eleições indiretas para presidente, a dissolução de todos os partidos que atuavam na época e a ampliação do número de ministros do Superior Tribunal Federal. Ainda o AI 2 autoriza a cassação de mandatos parlamentares e a suspensão dos direitos políticos, acabou com o foro especial por prerrogativa de função, terminava com o subsídio dos vereadores a serem eleitos, estabelecia a paridade de salários entre os três poderes e criava a Justiça Federal.

O número de ministros foi aumentado de onze para dezesseis, tendo sido nomeados cinco ministros com militância partidária na UDN, mais adequados, portanto, à política do momento.

Para não cassar ministros do STF, Castello Branco aumentou o número de magistrados do Tribunal de 11 para 16, por meio do AI- 2, de 27 de outubro de 1965. Nomeou cinco ministros: Adalício Nogueira, Prado Kelly, Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro e Carlos Medeiros. Mais tarde, em fevereiro de 1967, nomeou o deputado federal Adaucto Lucio Cardoso, da União Democrática Nacional (UDN), para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria do ministro Ribeiro da Costa. Foi justamente Adaucto Lucio o protagonista de outro célebre exemplo de resistência do STF, o caso da lei da mordaça.

A lei da mordaça, um decreto-lei que instituía a censura prévia de originais de qualquer livro que se quisesse publicar, foi aprovada pelo Congresso no governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). A oposição entrou com um recurso no STF, dizendo que aquela norma era inconstitucional, por atentar contra a liberdade de expressão, mas o Supremo disse que não poderia se intrometer nos interesses da revolução.

Indignado com o posicionamento do Tribunal, o ministro Adaucto Cardoso, que fora nomeado pelos militares, levantou-se, retirou a toga e disse que nunca mais voltaria ao Supremo, solicitando sua aposentadoria nessa sessão de março de 1971, logo após o julgamento do recurso. Na opinião de Carlos Chagas, esse foi um ato libertário.

Em novembro de 1965, o Presidente da República submeteu ao Senado a indicação de Alcino Paulo Salazar para substituir Osvaldo Trigueiro no cargo de Procurador-Geral da República.

Com a linha dura no governo militar, a edição do AI 5, três ministros do STF foram obrigados a se aposentar: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva e dois renunciaram em protesto: ministros Antônio Gonçalves de Oliveira, presidente do tribunal, e Antônio Carlos Lafayette de Andrada.

Podendo nomear cinco novos ministros, Costa e Silva restabeleceu a composição da Corte com 11 ministros, número vigente até hoje.

Em 13 de dezembro de 1968, com o AI-5, a ditadura iniciou sua fase mais autoritária. Com ele, o presidente Artur da Costa e Silva aposentou compulsoriamente os ministros Evandro Lins e Silva, Vitor Nunes Leal, que também seria afastado de seu cargo na UFRJ, e Hermes Lima. Em solidariedade, os também ministros Lafaiete de Andrade e Antônio Gonçalves de Oliveira pediram aposentadoria. Além das destituições, Costa e Silva retirou o poder do tribunal de conceder habeas corpus nos casos de “crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”, dando mais poderes à Justiça Militar.

Hoje todos falecidos, os ministros cassados haviam ocupado cargos de destaque antes da ditadura. Lins e Silva fora procurador-geral da República entre 1961 e 1963, chefe de Gabinete da Presidência em 1963 e ministro das Relações Exteriores, no mesmo ano. Nunes Leal, por sua vez, chefiou o gabinete do presidente Juscelino Kubitschek, entre 1956 e 1959, e se tornou consultor geral da República em 1960. Já Lima, dono de vasto currículo, foi deputado federal pelo Distrito Federal entre 1946 e 1951 (à época, na cidade do Rio de Janeiro), chefe do Gabinete da Presidência nos governos de Jânio Quadros e Jango, entre 1961 e 1962, ministro do Trabalho em 1962 e das Relações Exteriores entre 1962 e 1963, além de primeiro-ministro do país entre 1962 e 1963.

Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva eram considerados de esquerda pelos militares. Ao ouvirem o ato que os cassou – pela Voz do Brasil – outros dois ministros saíram por não concordarem com a aposentadoria compulsória: o então presidente da Corte, Gonçalves de Oliveira, e aquele que seria o seu sucessor na Presidência, Antônio Carlos Lafayette de Andrada.

Os três ministros retirados do Supremo tinham semelhanças: eram juristas, escritores, jornalistas e, sobretudo, políticos. Na década que precedeu o regime militar, eles circulavam no mais alto escalão da República, muitas vezes se revezando em cargos-chave, como de primeiro-ministro, chanceler e chefe da Casa Civil.

Tanto poder somado às ligações que os três tinham com a política anterior à era militar foi a razão maior das aposentadorias precoces. Victor Nunes, por exemplo, foi ministro da Casa Civil de Juscelino Kubitschek de 1956 a 1959.

Essa mesma cadeira foi ocupada em 1963 por Evandro Lins e Silva, já no governo de João Goulart. Entre os dois períodos, Hermes Lima ocupou um cargo também importante do Executivo: o de primeiro-ministro no regime parlamentarista (em 62 e 63, quando o cargo foi extinto). Neste mesmo ano, Evandro assumiu outro cargo deixado por Hermes Lima, o de chanceler do Brasil.

Hermes Lima e Evandro Lins e Silva são imortais da Academia Brasileira de Letras, e Victor Nunes Leal é o autor de uma obra que marcou a Ciência Política brasileira, chamada “Coronelismo, Enxada e Voto”.

A porta se abria para o período mais obscuro da ditadura.

III – OS TEMPOS DE HOJE

Veio a redemocratização, em 1985, e veio a Constituição-cidadã de 1988, que colocou o STF como órgão de cúpula do Poder Judiciário e mais ainda como guardião maior da Constituição.

No entanto, chegamos a um governo de extrema-direita que corteja a ditadura.

Noticiou o site de notícias do Estadão que “o presidente Jair Bolsonaro (PL) não descarta a possibilidade, de caso reeleito, discutir em um eventual próximo mandato proposta de aumento no número de ministros do Superior Tribunal Federal (STF). Essa medida não seria inédita no cenário político brasileiro. Durante a ditadura militar (1964-1985), por meio do Ato Institucional nº 02 (AI- 2), de 27 de outubro de 1965, a quantidade de ministros da Corte passou de 11 para 16, acréscimo mantido pela Constituição de 24 de janeiro de 1967.

“Já chegou essa proposta para mim e eu falei que só discuto depois das eleições. Eu acho que o Supremo exerce um ativismo judicial que é ruim para o Brasil todo. O próprio Alexandre de Moraes instaura, ignora Ministério Público, ouve, investiga e condena. Nós temos aqui uma pessoa dentro do Supremo que tem todos os sintomas de um ditador. Eu fico imaginando o Alexandre de Moraes na minha cadeira. Como é que estaria o Brasil hoje em dia?”, disse o presidente em entrevista à revista Veja.”

Ainda o senador eleito pelo Rio Grande do Sul, o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos), defendeu mudanças no STF. “Nossa Suprema Corte tem invadido aquilo que tem sido atribuições do Executivo e do Legislativo e, muitas vezes, rasgando o devido processo legal. É uma discussão que tem de ser conduzida no Congresso”, disse Mourão à Globonews, como informou o Estadão, em sua edição no dia 8 de outubro do corrente ano.

Segundo o que consta de reportagem da Folha, em 7 de outubro de 2022, o vice-presidente da República e senador eleito, Hamilton Mourão (Republicanos-RS), fez críticas no dia 7.10 ao STF (Supremo Tribunal Federal) e propôs reformas na corte com mudanças no número de magistrados, duração de mandatos e da idade de aposentadoria dos ministros, além de limitações às decisões monocráticas.

Preocupa, sobremaneira, o fato levantado pela imprensa na mudança de composição do STF e nas suas atribuições, tudo moldado como uma forma de “controle”.

Aliás, o Supremo Tribunal Federal não pode se transformar em uma “repartição” do Poder Executivo. Ele é o maior guardião de nossa Constituição-Cidadã, que é democrática por excelência.

Com o STF temos a garantia da ordem democrática e o respeito ao sistema, digno de nossa cultura democrática, de convivência entre os poderes.

Disse bem Oscar Vilhena, em artigo para a Folha:

“Para que não pareça que apenas os autoritários brasileiros se deixaram inspirar por essa ideia torpe, cabe lembrar os casos da Venezuela, Turquia e Hungria; três autocracias contemporâneas, em que a captura dos tribunais constitucionais foi parte central do processo de erosão democrática.”

Mister que se tenha cuidado com movimentos fascistas.

A esse respeito tenha-se a lição de Silvio Almeida em artigo para a Folha, em 14.10.22:

“O fascismo corresponde no plano político-institucional ao desejo orientado pelo assassinato e pelo suicídio. Ele se alimenta das frustrações cotidianas, da ausência de perspectivas, da desesperança, do fracasso e do desespero. Diante de uma sociedade incapaz de suprir as necessidades básicas da maioria das pessoas e de projetar um mundo para além do deserto do real, ficam abertas as portas para o fascismo e, consequentemente, para um modo de vida em que o outro é sempre tido como um obstáculo a ser eliminado.

Não é por acaso que o bolsonarismo, e outras formas contemporâneas de fascismo, estabelecem a liberdade como o ponto de apoio de suas pautas políticas. Não se trata, por óbvio, da liberdade em seu sentido clássico que, de um jeito ou de outro, é moldada por alguma forma de consenso que se realiza na forma do Estado e na relação jurídica.

O bolsonarismo reivindica uma liberdade sem limites ou responsabilidade, que no fim das contas nem é liberdade, mas uma “licença” para fazer o que bem entenderem, sem limites, sem freios morais, sem ter que respeitar outras pessoas, sem se submeter aos constrangimentos da legalidade.”

IV – UMA EVENTUAL MUDANÇA DO STF DIANTE DE CLÁUSULA PÉTREA E A LOMAN

A matéria já está traçada na Lei Orgânica da Magistratura(LOMAN).

O  artigo 2ºda Lei Orgânica da Magistratura dita:

Art. 2º – O Supremo Tribunal Federal, com sede na Capital da União e jurisdição em todo o território nacional, compõem-se de onze Ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

Qualquer mudança, pois, nessa leia complementar, que trata dos órgãos da magistratura, deve ter a iniciativa do próprio Supremo Tribunal Federal sob pena de vicio de inconstitucionalidade formal.

Afonso Arinos de Melo Franco fazia distinção entre “leis complementares por destino”(as que dizem respeito aos órgãos do Estado) e “leis complementares por origem” (as que dizem respeito aos súditos do Estado), admitindo as “chamadas leis orgânicas, que se destinam a estabelecer o mecanismo administrativo do Estado”(As Leis complementares na Constituição, pág. 9), e integram as leis complementares”.

João Mangueira, não obstante, distinguia as leis complementares das orgânicas, embora reconhecesse que estas eram modalidades daquela. Definia as primeiras, as leis complementares, como as que “compõem, complementam, aperfeiçoam e aumentam a lei que a Constituição determina seja feita” e as segundas, as leis orgânicas, as que se referem a órgãos ou serviços do Estado (Parecer como relator geral da Comissão Mista de Leis Complementares, in Jornal do Comércio, Rio, 23.9.1947).

Não há que modificar o número de ministros do STF. A lei orgânica que disciplina o Poder Judiciário já dita: 11(onze) ministros.

Trata-se de Lei Complementar que trata dos órgãos do Poder Judiciário.

Modificar o Supremo Tribunal Federal, seja por emenda constitucional ou lei, é afrontar cláusula pétrea.

As cláusulas pétreas são as que possuem uma supereficácia, ou seja, uma eficácia total, como é o caso dos incisos I a IV do artigo 60 da Constituição. Daí não poderem usurpar os limites expressos e implícitos do poder constituinte secundário.

Tal é o caso da separação de poderes (artigo 60,III, da Constituição), à luz do sistema de freios e contrapesos.

O Sistema de Freios e Contrapesos – chamado também de Teoria da Separação dos Poderes – consiste na ideia do controle do poder pelo próprio poder. Nessa teoria, há a ideia de que as diferentes funções desenvolvidas pelo Estado precisam se autorregularem. Assim, torna-se necessário a criação de três poderes distintos – Executivo, Legislativo e Judiciário – para propiciar uma maior segurança aos cidadãos quanto aos seus desejos em sociedade (site Poitize!).

Essas providências aqui trazidas são de grave repercussão sobre os direitos e garantias constitucionais, porque a Corte Suprema representa a guarda, a defesa da ordem constitucional e ainda preservação de direitos fundamentais, representando um sério perigo para a sociedade que deve atentar na defesa do Estado Democrático de Direito.

*É procurador da República aposentado com atuação no RN.

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Reportagem especial

Canal Bruno Barreto