As faces do mito

Por Lira Neto*

Seja nas historietas populares tradicionais, nas mais distintas mitologias, nos contos de fadas infantis ou em Hollywood, há um padrão que se repete, por trás da aparente multiplicidade de enredos e narrativas. É a alusão a um mundo comum inicial, ameno e familiar, paraíso terrestre e cotidiano subitamente assolado por uma força maligna, que chega soturnamente para desestabilizar o curso brando dos dias e a ordem natural das coisas. Estabelece-se uma situação de crise que possibilita a assunção de um herói dotado de voluntarismo e agudo senso moral.

Nestes 130 anos de República, também é manifesta a recorrência de certas mitologias políticas, sempre as mesmas, embora revistas, reinventadas e amoldadas ao sabor dos tempos. Uma repetição de estratégias e discursos facilmente identificáveis, a serem postos em ação de modo bem pouco surpreendente — mas que seguem produzindo efeitos desastrosos à maturidade de nossa cidadania.

“O primeiro dos quatro ingredientes básicos dessa fabulação ideológica é o alarmismo. Dissemina-se a ideia da existência de uma ameaça vil e maliciosa, uma força do mal e das sombras, a espreitar os justos e a conspirar contra os ditos cidadãos de bem”

Fabrica-se assim a figura do oponente deletério, a ser desmascarado e combatido, um inimigo a ser subjugado, exterminado, destruído. Por isso, é necessário desumanizá-lo, emprestar-lhe ares de besta-fera, satanizá-lo. A depender do contexto de época, atribuem-se várias fisionomias a esse ser. A fórmula mais recursiva é a do apelo a certa fantasmagoria tão pueril quanto eficaz: o “perigo vermelho” do qual falava Getúlio para impor o Estado Novo, a “República sindicalista” citada pelos militares e empresários que derrubaram Jango, os “comunistas” denunciados ainda hoje com alarde pelos bolsonaristas.

Se há um vilão a ser aniquilado, é preciso construir a figura de um herói corajoso e íntegro, escolhido pelo destino para a missão redentora. Ao alarmismo, justapõe-se então o salvacionismo. O almejado salvador da pátria pode ter o sorriso protetor de Getúlio, a circunspecção de Castello, o arrojo olimpiano de Collor ou até mesmo a “espontaneidade” disruptiva e imponderada de Bolsonaro, suposta antítese das liturgias palacianas, atributo que o identificaria com os valores do homem médio de uma sociedade hetero-patriarcal.

O que interessa é que o herói fabricado seja honesto e destemido, tenha força e disposição para agir. Importa é que restaure a ordem antiga, devolva ao povo suas “mais caras tradições cristãs”, recupere um passado idealizado, promova o retorno a um cenário paradisíaco, anterior à chegada do Mal. Por mais que fale em nome do progresso, sua ação é regressiva, reacionária e conservadora. Rejeita a transformação dos tempos. Tenta enquadrar a forma de pensar e viver de minorias a um único sistema valorativo.

Impõe-se o terceiro ingrediente histórico dessa reincidência narrativa: o moralismo. O discurso da “probidade” moral se faz acompanhar da presumida cruzada contra a corrupção. Getúlio chegou ao poder em 1930 denunciando a devassidão política e financeira da Primeira República. O mesmo argumento que se voltou contra ele quando os udenistas, Lacerda à frente, entoaram a ladainha de que éramos um país “governado por ladrões”. Collor prometeu caçar marajás e terminou cassado. A seletividade lavajatista tem rastros antigos.

O quarto ingrediente é o nacionalismo. É com base nele que se incita o patriotismo mais ingênuo, o ufanismo mais pedestre. O Estado Novo getulista buscou forjar um sentido de “identidade nacional”, proibindo os símbolos regionais. A ditadura militar apropriou-se da própria bandeira brasileira como insígnia do arbítrio. Os marqueteiros de Collor pintaram-lhe a logomarca de verde e amarelo. Hoje, há quem vista a camiseta da CBF para ir a manifestações contra a corrupção.

A encenação das mitologias políticas tende a reiterar fórmulas prontas, invocar emoções cegas e crenças fáceis, já devidamente lavradas no imaginário coletivo. Por isso, precisa da estridência, do dedo em riste, da eterna excitação pela pantomima. Portanto, é contra a força do argumento, do raciocínio equilibrado, das sensibilidades tecidas nos territórios da arte, da ciência e da cultura. Sem as quais os mitos prosperam, mudam de face, disfarçam a própria perfídia.

*É autor das biografias “Castello — A marcha para a ditadura” e “Getúlio”, esta editada em três volumes pela Companhia das Letras

Comments

comments

Reportagem especial

Canal Bruno Barreto