Por Rogério Tadeu Romano*
A discussão sobre a questão da tutela militar no Brasil é antiga.
Lembrou Camila Rocha (O Brasil não tolera mais tutela militar, publicado no portal da Folha, em 24.11.24):
“A questão é antiga. Segundo o historiador Paulo Ribeiro da Cunha, antes da Proclamação da República, que completou 135 anos no último dia 15, o barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, já se preocupava com o tema. Por conta disso, enviou ao visconde de Ouro Preto, último primeiro-ministro, livros vindos da Europa sobre sujeição dos militares ao poder civil para que fossem traduzidos e adotados nas escolas militares. Porém a iniciativa não teve a menor chance de prosperar. Bastou um rumor infundado de que havia a intenção de dissolver o Exército para que um levante militar botasse fim à monarquia.
Desde então, governos civis que se seguiram, à esquerda e à direita, sempre foram tutelados por militares. Segundo o historiador Daniel Aarão Reis, quando Getúlio Vargas instaurou a ditadura do Estado Novo em 1937, os militares estavam entre as principais bases de sustentação do regime. Em 1945, também foram os militares que depuseram Vargas e tornaram-se fiadores da” democracia autoritária “vigente até 1964. Lembrando que, durante esse período, o general Eurico Gaspar Dutra chegou a se tornar presidente e as Forças Armadas continuaram a protagonizar golpes, contragolpes e ameaças de intervenção.”
Trago a lição do ministro aposentado Celso de Mello (Plano de assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes: a história repetindo-se como farsa, in blog do Fausto Macedo):
“A necessidade do controle civil sobre as Forças Armadas – ADVERTEM os estudiosos da matéria (como Eliézer Rizzo de Oliveira , “Democracia e Defesa Nacional: A criação do Ministério de Defesa na Pre- sidência de FHC”, São Paulo, 2005, pág. 84) – busca definir parâmetros e implementar os seguintes objetivos :
“a) O comando inquestionável das Forças Armadas pelo Chefe do Poder Executivo;
- b) Garantir a imparcialidade política das Forças Armadas;
- c) Estabelecer uma estrutura de ordenamento legal das Forças Armadas que as submeta [aos princípios essenciais do] Estado democrático;
- d) Qualquer decisão quanto ao emprego do poder militar deve ter origem exclusiva nas decisões políticas [das autoridades civis] ; e
- e) Reafirmar o caráter nacional das Forças Armadas.”
O artigo 142 da Constituição Federal diz: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
Diga-se que a chamada teoria de que as Forças Armadas detêm o chamado poder moderador é uma falácia.
Lembro que Alfred Stepan (Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira, pág. 1975) apontou que as Forças Armadas teriam desempenhado um papel moderador e atuado como árbitros dos conflitos entre os poderes no período de 1946-1964, tendo em vista as intervenções militares “cirúrgicas” nos momentos de graves crises nacionais ocorridos em 1954, 1955 e 1961. Nessa leitura, as Forças Armadas teriam exercido uma função de agentes estabilizadores da ordem, responsáveis por recompor a normalidade em situações de crise.
Na mesma linha, na Alemanha tinha-se a posição de Schmitt. Para ele, o estado de direito seria suspenso em momentos de crise, não havendo aí senão que o poder da força. Neste estado de exceção, as decisões seriam livremente tomadas pelo soberano, sem qualquer limitação das leis. Às Forças Armadas cumpriria o papel de atuar como fiel da balança do jogo político, dando respaldo às decisões do ditador até que restabelecida a normalidade institucional. O resto da história é conhecido. Milhões de seres humanos inocentes foram assassinados pela fúria bestial do regime nazista.
Ora, como poderiam as Forças Armadas, naquele triste momento da história brasileira, exercer o papel de árbitro, uma vez que defendia nítidos interesses em prol do capitalismo, do anticomunismo, e estava em aliança com as grandes elites econômicas?
As estreitas vinculações entre setores civis e militares, e especialmente entre elites jurídicas e militares, pavimentaram o caminho para a consolidação do regime ditatorial pós-1964, inclusive, levando em conta que as elites econômicas manifestaram seu apoio a edição do AI- 5, pelo governo militar, em expressivo registro daquele período histórico.
A garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas Forças Armadas para definir seu papel.
Em 1976, quando se vivia sob a ditadura militar, sob a égide da Emenda Constitucional nº 1/69, pensou-se em fixar o Poder Moderador.
Os militares já tinham essa ideia de exercê-lo, por via das Forças Armadas.
Tem-se no modelo ditatorial de 1967, com as mudanças outorgadas em 1969, que as Forças Armadas tinham o papel político e policial.
A Constituição de 1988 não admite um poder moderador.
“Concluímos pela inexistência do Poder Moderador atribuído às Forças Armadas, bem assim pela inconstitucionalidade da utilização do aparato militar para intervir no exercício independente dos Poderes da República”, afirma o parecer, assinado pelo então presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz.
O documento também é subscrito pelo presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da entidade, Marcus Vinicius Furtado Coêlho e por Gustavo Binenbojm, membro da comissão.
Para a OAB, a Constituição não confere às Forças Armadas a “atribuição de intervir nos conflitos entre os Poderes em suposta defesa dos valores constitucionais, mas demanda sua mais absoluta deferência perante toda a Constituição”.
“Não cabe às Forças Armadas agir de ofício, sem serem convocadas para esse fim. Também não comporta ao Chefe do Poder Executivo a primazia ou a exclusiva competência para realizar tal convocação. De modo expresso, a Constituição estabelece que a atuação das Forças Armadas na garantia da ordem interna está condicionada à iniciativa de qualquer dos poderes constituídos. A provocação dos poderes se faz necessária, e os chefes dos três poderes possuem igual envergadura constitucional para tanto”, destaca o parecer.
Destaco ainda daquela douta manifestação:
“Ao contrário, como muito bem exposto por Seabra Fagundes (As Fôrças Armadas na Constituição. RDA 9/1947, p. 1-29, jul./set., 1947. p. 12) com apoio no pensamento de Rui Barbosa, as Forças Armadas estão integradas e vinculadas ao comando do seu chefe supremo, o Presidente da República, que, por sua vez, tem o dever de respeito às leis e à própria Constituição. Essa cadeia de comando não abre nenhum espaço para se alçar as Forças Armadas de cumpridoras da lei à condição de intérpretes e fiadoras da própria legalidade.”
A garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas Forças Armadas para definir seu papel.
Esse entendimento levaria ao retorno das ideias de 1937 e dos Atos Institucionais que rasgaram a Constituição de 1946, no sentido de que as Forças Armadas seriam a garantia dos poderes institucionais tendo poder de intervir. Ora, isso não se amolda à Constituição-cidadã de 1988, que renega a ideia de que o poder civil é uma concessão do poder militar. Ficaria a sociedade entregue aos ditames militares, o que é uma afronta à democracia.
*É procurador da República aposentado com atuação no RN.
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