Por Dão Real Pereira dos Santos*
O ministro da Economia, Fernando Haddad, disse recentemente em uma coletiva de imprensa que “é uma vergonha o que está acontecendo no CARF”. E ele tem toda a razão. Primeiro, vamos esclarecer o que é o CARF. É o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, conhecido também como Conselho de Contribuintes.
O CARF é um tribunal administrativo que julga, em segunda e terceira instâncias, as autuações fiscais, ou seja, os autos de infração lavrados pelos Auditores-Fiscais da Receita Federal para cobrar tributos que deixaram de ser pagos. A peculiaridade é que a metade dos julgadores desse conselho é indicada pelas confederações empresariais e a outra metade são servidores públicos.
Até 2020, quando um desses julgamentos terminasse empatado, o presidente da turma tinha a prerrogativa do voto de qualidade para resolver a questão, decidindo a favor ou contra o autuado.
Com a Lei 13.988, o governo Bolsonaro acabou com o voto de qualidade e os empates passaram a ser decididos sempre em favor do contribuinte autuado. A MP 1.160/2023, publicada em 12 de janeiro, anula aquele dispositivo e faz voltar o sistema que existia antes.
Também é importante esclarecer que os processos julgados no CARF são fruto de um procedimento inicial de seleção que apontou indícios de infrações, seguido por uma auditoria fiscal concluída com a lavratura de autos de infração para cobrança de tributos devidos, cuja impugnação passou pelo julgamento de primeira instância, dentro da Receita Federal, e a autuação foi confirmada.
Depois de todo este trâmite com várias etapas, se o autuado não se conformar com o resultado, pode recorrer, e, só a partir daí, é que o processo passa a ser analisado pelo CARF.
Portanto, os processos que estão no CARF não surgem de uma mera discussão entre o Fisco e o contribuinte sobre dever ou não pagar um tributo, mas sim de um processo administrativo longo e complexo que demonstrou e confirmou que houve, de fato, falta de pagamento de algum tributo devido.
Modelo não existe em lugar nenhum do mundo
A existência de um tribunal paritário para julgar esses débitos já é uma excrescência. Esse modelo não existe em lugar nenhum do mundo. Afinal, trata-se de revisão administrativa de um ato praticado pela administração!
Ainda que a composição paritária pudesse ser justificada por questões de participação social, por que somente as confederações empresariais podem indicar os conselheiros? Por que os consumidores, os destinatários das políticas públicas, os trabalhadores, as universidades, e outras organizações da sociedade não têm assento neste conselho, supostamente paritário?
Outra jabuticaba brasileira é a existência de três instâncias administrativas. Na maioria dos países a revisão administrativa se dá em apenas uma instância!
Neste nosso modelo de contencioso, o voto de qualidade é um voto de equilíbrio, que dá à decisão paritária um caráter de revisão administrativa, apesar da presença dos representantes dos empresários no conselho. Se o voto de qualidade for a favor da Fazenda Pública, o autuado ainda poderá recorrer ao Poder Judiciário. Já as decisões contrárias à Fazenda são sempre definitivas.
O fim do voto de qualidade, portanto, desequilibra completamente o sistema. Melhor seria que o empate fosse resolvido em favor do Estado, pois, diferente deste, o autuado sempre poderá contar com a via judicial para defender seu interesse.
Sem o voto de qualidade, as segunda e terceira instâncias se transformam em revisão empresarial da autuação, pois basta o empate para tornar definitiva a decisão contra a Fazenda Pública.
O fim do voto de qualidade representou, portanto, a captura definitiva do contencioso pelas grandes corporações empresariais. Mas não são todas as empresas nem a maioria dos contribuintes que foram beneficiados com a medida: somente as grandes e mais poderosas.
Como afirma o ministro, “estamos falando de 20 ou 30 empresas que estão se beneficiando do empate para o contribuinte”.
A grande boiada do governo Bolsonaro é o fim do voto de qualidade
Obviamente que a perda do voto de qualidade só afeta os julgamentos de poucos processos que costumam terminar empatados, mas são os que representam os maiores valores em discussão. São autuações na casa dos bilhões de Reais, que decorrem, predominantemente, de planejamentos tributários abusivos realizados com grande sofisticação, que são contestados pela fiscalização tributária, quando percebidos como decorrentes de condutas ilícitas.
Em recente artigo dos pesquisadores Ricardo Fagundes e Wilson Muller ficou evidenciada a dimensão do problema. Os autores estimam que, do estoque atual de R$ 1,2 trilhão, que há no contencioso da União, mais de R$ 880 bilhões poderão ser cancelados, caso a MP 1.160/2023 não seja convertida em Lei.
Analisando os julgamentos ocorridos em 2018 e 2019, anteriores à perda do voto de qualidade, e os julgamentos ocorridos em 2022, já sem este instituto, os autores constataram que, em 2018, 21% do valor total julgado foram decididos em favor dos autuados, em 2019, foram 34%. Já em 2022, os autuados foram vitoriosos em 78% do valor total julgado.
Muitas destas vitórias decorreram de reversões de posicionamentos já pacificados, alguns até mesmo pelo Poder Judiciário. Fagundes e Muller são assertivos ao declarar que o fim do voto de qualidade representa a grande boiada do governo Bolsonaro.
IJF propõe o fim do modelo paritário para o julgamento das dívidas tributárias
O Instituto Justiça Fiscal (IJF) produziu um estudo sobre o Contencioso Fiscal no qual propõe o fim deste modelo paritário para o julgamento das dívidas tributárias. Resumidamente, a proposta é de garantir a revisão administrativa das autuações fiscais em duas instâncias, ambas dentro da própria administração tributária, alinhando o contencioso fiscal brasileiro às boas práticas internacionais.
A MP 1.160/2023 apontou, ainda que parcialmente, que ao ampliar o valor de alçada para recurso ao CARF de 60 para 1.000 salários-mínimos. Ou seja, mais de 70% dos processos passarão a ser julgados em duas instâncias dentro da RFB. Pela proposta defendida pelo IJF, todos os processos deveriam estar submetidos a esta mesma modalidade de julgamento, já que o autuado sempre poderá recorrer ao Poder Judiciário em caso de decisão que lhe seja desfavorável.
Reação das grandes corporações empresariais é reveladora
A reação das grandes corporações empresariais, de alguns advogados tributaristas e da própria OAB contra a volta do voto de qualidade parece exagerada e até incompreensível, pois a MP 1.160/2023 apenas faz retornar à situação que existia há quase 50 anos, até abril de 2020. Ou seja, ela não inova, exceto em relação ao limite de alçada para recorrer ao CARF.
No entanto, essa reação, aparentemente desmedida, é reveladora. De fato, a perda do voto de qualidade significou o sequestro completo do sistema, que já era favorável aos autuados, mas que se transformou num verdadeiro salvo conduto para os setores mais ricos, que passaram a poder planejar e decidir quanto e o que irão pagar de tributos.
O empate favorável é mais do que uma garantia de sucesso nos julgamentos dos litígios, mas também a tranquilidade de não serem mais importunados pelo Fisco, pois não é razoável que a fiscalização continue contestando planejamentos que o próprio CARF passa a referendar. Não se trata, portanto, apenas de uma alteração no controle dos créditos tributários lançados, trata-se de excluir da ação fiscal do Estado os setores mais ricos do empresariado nacional e estrangeiro.
A MP 1.160/2023 não é pouca coisa: ela representa a recuperação do controle do Estado sobre a gestão da política tributária e a garantia de tratamento isonômico na aplicação da legislação tributária a todos os contribuintes, independente do porte ou da sofisticação das suas estruturas de planejamento tributário. Resumidamente, a aprovação da MP 1.160/2023 é um passo importantíssimo e absolutamente necessário para que possamos avançar na construção de um sistema tributário que seja realmente justo.
*É presidente do Instituto Justiça Fiscal e coordenador da campanha Tributar os Super-Ricos.
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