Carta aberta aos vereadores de Natal

Foto: Francisco de Assis

Por Zélia Pamplona*

Aos cidadãos, antes comuns, que se colocaram à disposição do serviço público,

Eu pensei muito sobre escrever isto como um apelo. Mas em contemplação da última década, me parece que um apelo seria apenas mais um numa pilha que transborda, como tantas coisas em Natal. Em vez disso, excelentíssimos vereadores, peço um pouco de atenção, o mínimo de paciência e boa vontade para… Digamos… Uma contextualização de uma moradora deste município, que teve a oportunidade de experienciar a vida em mais de uma das periferias da capital.

Acredito que somos um produto do acúmulo de experiências, opiniões, influências e informações que estão disponíveis para nós, e que a análise de qualquer opinião deve também compreender a partir de qual lente ela está sendo formulada. E por isso mesmo acho importante registrar que sou uma pessoa ideologicamente de esquerda, que acredita na espiritualidade, mas que não possuí qualquer inclinação religiosa.

Eu cheguei em Natal em 2010, como tantas e tantos, para completar mais um ciclo da vida acadêmica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Morando na Zona Norte, minha rotina começava acordando às 4h, porque o único ônibus que podia me levar a tempo da primeira aula passava na parada mais próxima entre 5h e 5h30 (pontualidade? Não houve. Não há). O retorno era mais “simples” porque qualquer atraso só afetaria o número de horas de sono e não meu número de faltas. Com a prática cotidiana, muitos usuários de transporte público acabam desenvolvendo o incrível super poder de cochilar e acordar no ponto exato. Eu fui especialista na técnica por anos, com o apoio infalível da superlotação da linha 79 para manter a posição do cochilo do início ao fim apesar dos solavancos… Ou, se eu quisesse uma viagem mais “vaga”, uma combinação de linha 45 até a rodoviária velha e a estação de transferência (ah, as estações de transferência…) para a linha 85 me levar pela Newton Navarro até a Zona Norte novamente.

A linha 45 já não existe, assim como as estações de transferência, a 85 foi fundida, a 79 teve uma redução de veículos em circulação mesmo com aumento de usuários. Mudar da Zona Norte para a Zona Sul me levou a descobrir que era mais fácil ir de ônibus saindo de Santa Catarina (o bairro) para Ponta Negra, do que da Ayrton Senna para o mesmo destino. Da mesma forma, era muito mais fácil pegar um ônibus da Praça Dom Pedro II para a praia de Santa Rita, do que achar um ônibus para a mesma praia passando por Potengi, ou Pajuçara, ou Panatis… Já residindo na Zona Oeste, a mobilidade só é manejável com veículo próprio, e como no resto da cidade, outros problemas se acumulam… Terrenos abandonados ameaçando a saúde pública, bueiros abertos e buracos que se escondem durante os alagamentos anuais. Eu morei em três zonas de Natal, cinco bairros, nunca tive vizinhos que votassem nos mesmos vereadores que eu, mas todos enfrentam, percebem e reclamam dos mesmos problemas que eu. Problemas de responsabilidade da administração pública municipal… Executivo e legislativo.

Agora, caros legisladores e legisladoras municipais, se vocês tiveram a paciência de ler até aqui, eu chamo atenção para uma coisa:

Nesses anos em que eu moro em Natal, quase metade da minha vida, a Câmara Municipal passou por diversas mudanças no perfil de seus ocupantes… Muitos mandatos se renovaram uma ou duas vezes antes de partirem para outras casas legislativas, um número ainda maior gradativamente não conseguiu se renovar… Poucos se repetiram por mais de três vezes, e menos ainda conseguiram transformar essa atuação em resolução de problemas da cidade.

As únicas coisas que, pelos meus olhos, se mantiveram constantes no legislativo municipal, foi o alinhamento com o executivo em cada legislatura, a decadência progressiva na qualidade do debate e na colaboração entre parlamentares, e principalmente o descarte a conta gotas de vereadores governistas em prol da ascensão eleitoral de alguns poucos. Em grupos que defendem o mundo como uma pirâmide, não há lugar para todos no topo. Quando figuras políticas, supostamente mais poderosas do que os excelentíssimos vereadores, incentivam uma disputa silenciosa (ou nem tão silenciosa) por favoritismos para serem “elevados” por sua utilidade e lealdade, eles estão ressecando e esvaziam os apoios que vocês suaram tanto para reunir caminhando nos bairros desta cidade e conversando com a população. O voto para vereador é um dos mais difíceis de conseguir, o de contato mais direto com o povo, e o primeiro a receber as cobranças pelos problemas cotidianos não resolvidos. Foge do meu entendimento porque tantos eleitos, em tantos momentos diferentes, com origens políticas distintas, permitiram que os contrapesos do poder legislativo fossem desativados, aceitando servir como escudo para uma gestão negligente e suas renovações, sem se darem conta de que foram eleitos exatamente para substituir os que já tinham cometido esses erros antes.

Eu confio na política. A política real… A política como a ciência de governar. E na democracia, essa ciência precisa ser ilustrada pelo sistema de contrapesos que mantém os poderes balanceados. Eu não sou especial, nem melhor, mais inteligente ou evoluída do que ninguém… Então eu, e as pessoas como eu, não podem ser as únicas a enxergarem os problemas à nossa volta.  Quero acreditar que a única coisa que diferencia as diversas linhas ideológicas do espectro político, é o caminho que acreditamos ser melhor para resolver as questões da nossa sociedade.

O Estado, com E maiúsculo, é uma máquina poderosa, com capacidade de resolver os problemas mais simples e mais complexos das nossas vidas. Mas uma máquina, até a mais sofisticada inteligência artificial, só pode funcionar se quem a programa usar os controles devidamente. Estar na posição de “escrever os códigos” dessa máquina é um privilégio e uma imensa responsabilidade. O Brasil (assim como os problemas de Natal) transborda de exemplos das consequências de se manipular as ferramentas do Estado para silenciar as demandas do povo em vez de emancipá-lo. Todos os problemas de quinze anos atrás persistem, piorados… Negligenciados ou esquecidos… Nunca foi perfeito. Nunca foi ideal. Mas nunca foi tão ruim. Mais uma vez o verão na Cidade do Sol chegou, e as chuvas logo logo vão vir. Os trabalhadores do turismo em Ponta Negra vão conseguir seu sustento? Teremos deslizamento de casas, ruas e calçadas por falta de manutenção ou ingerência da urbanização sobre dunas de areia que a prefeitura devia guiar? O mercado das Rocas vai ser ocupado? E o da Redinha?  Eu sou a principal cuidadora de uma pessoa autista… Quando os CAPs vão voltar a ter vaga? Os alunos com deficiência na rede municipal vão ter acompanhamento especializado como manda a lei ou continuarão assistidos por estagiários? Os artistas locais já receberam pelo serviço prestado? E os profissionais da saúde? Essas perguntas não são só minhas, elas existem na cabeça de cada cidadão dessa cidade. E quando vocês dão preferência ao apoio dos que querem que seus eleitores se esqueçam dessas perguntas, vocês perdem o poder que o povo deu a vocês através da confiança do voto.

Esse “jogo” tem cartas marcadas, caros vereadores. A maioria de vocês não estão entre os sorteados…

Como eu comecei dizendo, eu não vou transformar isso em um apelo, uma súplica ou um pedido… Apenas espero que os legisladores que se colocaram à disposição do povo com reais intenções de causar um impacto positivo em Natal, em seus bairros, em suas comunidades, consigam enxergar que sacrificar as responsabilidades assumidas em troca de favores do executivo ou notas jornalísticas positivas, não gera a lealdade política ou eleitoral necessária para que os mandatos continuem com os objetivos nobres que levaram vocês a se candidatarem.

A relação de dependência até lota motociatas, festas de aniversário, mas quando não há mais emenda para entidades de familiares, ou para festas particulares em bons restaurantes, só a relação de lealdade construída pela coerência política, pela compreensão que um mandato não pertence a nenhum político e sim ao povo, é que gera comoção popular, acampamento, vigília e defesa para além do próprio eleitorado.

Espero não ter que esperar mais 15 anos para ver a Câmara Municipal de Natal finalmente exercer sua prerrogativa de fiscalizar o executivo.

Respeitosamente,

Zélia Pamplona

*É subsecretária estadual de juventude.

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